Introdução

O conceito de educação integral tem como princípio o desenvolvimento pleno de crianças, adolescentes e jovens em todas as suas dimensões, ou seja, física, cognitiva, emocional, social e cultural, além de considerá-los como sujeitos de direitos, inseridos em determinado contexto socioeconômico.

Para tanto, a escola e as políticas públicas de educação são centrais, mas necessitam de diálogo, complementariedade e suporte das instituições de outras áreas e suas respectivas políticas públicas. Sendo assim, torna-se incontornável uma gestão intersetorial, que possibilite e promova a articulação entre os diferentes setores da administração pública para garantir o direito ao desenvolvimento pleno.

A intersetorialidade é caracterizada pela descentralização, ou desterritorialização, dos diferentes setores responsáveis pelas políticas públicas. Segundo as pesquisadoras Giselle Monnerat e Rosimary de Souza, a gestão neste modelo é a que consegue minimizar as características históricas das políticas sociais. Com a crescente complexidade da “questão social”, isto é, o conjunto das expressões que definem as desigualdades sociais, como fome e pobreza, raça, etnia, desemprego, violência e discriminação de gênero, mais desafios se apresentam ao sistema de proteção social – por isso, é necessário encontrar formas inovadoras de formular e implementar tal modelo.

O que se observa na gestão pública é a divisão por áreas de conhecimento e instâncias administrativas, herança das ciências modernas, as quais atuam por meio da organização parcial do saber e de intensa especialização. Adotando essa perspectiva, as práticas sociais podem ser tornar fragmentárias e, consequentemente, não dar conta da necessária análise global das diferentes realidades e desafios de um país desigual na promoção do direito à educação. Na percepção das pesquisadoras, na Educação, é essencial reconhecer que os problemas estruturais que afetam as famílias repercutem diretamente nas condições de aprendizagem, para fomentar a articulação com os demais setores.

Neste especial, você será apresentado a um panorama sobre intersetorialidade e sua importância para a promoção do desenvolvimento integral dos estudantes, em que são discutidas as relações entre educação e as outras instâncias, além da necessidade de políticas públicas na área, e terá acesso a outros materiais do Observatório de Educação para se aprofundar sobre o tema.

A importância e os desafios da intersetorialidade nas políticas públicas

A intersetorialidade possibilita uma síntese de práticas ao reconhecer limites de poder e atuação de setores. No entanto, Costa, Pontes e Rocha apontam que “este reconhecimento de insuficiência não é propriamente uma facilidade para humanos, especialmente para quem goza das condições oferecidas pelo poder institucional”.

Considerando o histórico de ordenação da gestão de políticas públicas, é interessante observar as causas da desarticulação institucional e da falta de integralidade. A Constituição Federal de 1988 teve como preceito o compartilhamento e a descentralização de ações, antes controladas pelas instâncias estaduais e federais, em direção às municipais, as quais foram fortalecidas na tomada de decisões. Com essa disposição, além do ganho de autonomia local, o pressuposto era de que houvesse melhor aproveitamento da distribuição de recursos e maior agilidade na gestão das políticas econômicas, sociais e educacionais, como citam Flávia Góes e Lucília Machado.

Para garantir a oferta de bens e serviços públicos básicos com os recursos distribuídos entre os municípios, contudo, não é possível ignorar a coordenação entre os setores, mas sim superar tensões e disputas locais decorrentes da divergência de interesses de determinados grupos e classes sociais. Um dos obstáculos para essa integração, ainda segundo as autoras, é a perspectiva de que a gestão intersetorial seja uma política de governo e não de Estado, o que não ajuda na continuidade dos programas, pois eles passam a depender de cada agenda eleitoral.

Como parte de uma estratégia para promover a articulação, faz-se necessário um planejamento de ações, além da negociação de interesses, isto é, uma área em comum para os diferentes setores precisa ser definida a cada ação integrada. A dificuldade é que, além das diferenças de regiões geográficas de atuação, há barreiras comunicacionais. Nesse sentido, a negociação de interesses auxiliaria na construção de sinergias entre diferentes atores e áreas das políticas públicas para que exista uma síntese de conhecimentos diversos, mesmo que ainda permaneçam as atribuições individuais de cada setor.

O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o modelo utilizado para operacionalizar as ações de assistência social, demonstra a preocupação com a promoção da intersetorialidade, expressa historicamente em programas já implementados, como o Programa Bolsa Família. O sucesso do programa, de acordo com o cientista político Fernando Abrucio, se explica pelo fato de ter sido uma política de transferência de renda condicionada: as famílias precisavam assumir condicionalidades em educação, saúde e outros setores, como, por exemplo, garantir que as crianças e adolescentes estivessem regularmente matriculados nas escolas do ensino básico e com a carteira de vacinação em dia.

Além disso, o benefício impactava as famílias a longo prazo, uma vez que não era apenas uma disponibilização imediata de renda, que ajudava no tocante à alimentação e à pobreza, mas que também abriu possibilidades de desenvolvimento e escolaridade para as gerações seguintes. Daí a importância das ações intersetoriais como mecanismo que aumenta a escala de resolução dos problemas, de maneira integrada.

No que se refere à área da Educação, a escola tem sido vista como um dos serviços públicos de maior relevância e capilaridade – sua presença por todo o território, por mais diverso que ele seja, demonstra a potência de conseguir dialogar com as outras áreas. Além disso, ela permite que os alunos tenham maior compreensão da realidade local e de suas capacidades de buscar soluções e promover mudanças quanto aos problemas vividos por suas famílias e comunidades das quais fazem parte. Outra questão é que a comunidade escolar também é afetada por questões sociais que precisam de um olhar integrador para o pleno funcionamento, a exemplo das condições de trabalho dos professores e gestores.

Embora se reconheça a emergência da intersetorialidade entre a Educação e, principalmente, as áreas da Saúde e da Assistência Social, há enormes desafios. Para citar o principal, é necessário reconhecer a contradição entre a necessidade de integração e o aparato de Estado setorializado para propor soluções. Nesse sentido, há um choque entre o aprofundamento do processo descentralizador nos municípios e a fragmentação produzida por esse mesmo sistema na gestão de cada política setorial. Além desse dissenso, na prática, é necessário construir objetos e objetivos em comum para evitar a simples sobreposição de ações setoriais.

O impacto dos grupos sociais e econômicos

O Brasil é um país heterogêneo em termos de distribuição de renda e aproveitamento de recursos da União. Por conta disso, as escolas presentes nas diferentes regiões geográficas e administrativas possuem realidades que refletem não só o entorno, como também as dificuldades enfrentadas pelos alunos e suas famílias no acesso e permanência no ensino. Neste cenário, a centralização não dá conta da diversidade e das necessidades individuais de cada realidade. Ao mesmo tempo, sem uma padronização, algumas regiões podem ser prejudicadas na qualidade do ensino, por exemplo, em decorrência de diferenças na distribuição de verbas.

No episódio 4 do podcast “Artigo 205”, do Instituto Unibanco, há uma ponderação sobre essa questão e sobre o modelo federativo do país. Embora ele apresente algumas vantagens quando se considera a heterogeneidade citada, o arranjo político e administrativo pode dificultar a solução dos complexos problemas sociais que atravessam o país, provocando desigualdade. Isso porque, mesmo que as políticas públicas possam ser concebidas de modo a atender às necessidades locais, no Brasil elas ainda parecem funcionar em “caixinhas separadas”, o que implica tratarem separadamente os problemas de uma criança que frequenta determinada escola em relação à saúde, segurança e questões familiares.

No mesmo episódio, são citados exemplos de diferentes regiões do país, como o Ceará e o Acre, em que políticas de desenho intersetorial foram aplicadas. No primeiro caso, a integração entre a escola e os CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) e CAS (Comissão de Assistência Social) ajudou a buscar soluções para conflitos e problemas de aprendizagem que estavam relacionados a casos de violência. Isso foi possível em função de um programa do governo estadual para estimular as diferentes áreas da administração pública a trabalharem juntas. No Acre, a organização em territórios de desenvolvimento que coincidiam com os territórios da educação ajudou a mapear zonas de atendimento prioritário onde seriam dedicados mais recursos em relação aos programas de todas as áreas.

Caminhos intersetoriais para a promoção da Educação Integral

Conforme discutido, a oposição entre as premissas da gestão intersetorial, ou seja, a descentralização e integração de políticas públicas de diferentes setores, e a unificação desses mesmos setores para garantir equidade de decisões gera um embate que merece destaque, ainda mais pensando na heterogeneidade territorial do país. Tal oposição se reflete na criação de um sistema e na aplicação de uma base curricular que tenham como princípio a promoção da educação integral, como se discute adiante.

Os princípios da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Uma das diretrizes da BNCC é a integralidade do ensino, ou seja, o desenvolvimento holístico dos estudantes de modo complexo e não meramente linear. A ideia por trás da educação integral não é um aumento da carga horária, confusão que advém da definição de “ensino em tempo integral”, mas sim romper com perspectivas reducionistas para compreender, além dos aspectos citados de desenvolvimento dos jovens estudantes, a inclusão, a equidade e a diversidade. Para isso, três princípios orientam as práticas pedagógicas: a visão do estudante, o desenvolvimento pleno e a integração curricular.

De acordo com o texto da BNCC, a visão do estudante é um princípio que prevê:

“(…) visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem, a fim de promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades.”

Quanto ao desenvolvimento pleno, o foco é combater a falsa dualidade entre a esfera intelectual e a emocional. Essas duas dimensões são compreendidas pela BNCC como campos articulados, sem hierarquização, desempenhando papéis igualmente fundamentais. Por esse motivo, “todas as competências gerais previstas pela BNCC incorporam tanto aspectos cognitivos quanto socioemocionais, assimilando elementos flexíveis e maleáveis do desenvolvimento de maneira transversal.”

Já o princípio da integração curricular “valoriza o protagonismo do estudante nos processos de aprendizagem, contribuindo para a construção do seu projeto de vida.” Dessa forma, o ensino integral pode agenciar uma educação não fragmentada, na qual os elementos do currículo tenham sentido para os estudantes e possibilitem estabelecer ligações concretas entre o conhecimento e a vida.

Assista ao episódio 19 - “Currículo para a vida”, da série Nunca me sonharam do Observatório da Educação. Nele, se discutem possibilidades de um currículo mais humano e solidário, que faça sentido para os estudantes, e não somente que atenda aos conteúdos dos vestibulares. Renato Janine, ex-ministro da Educação, propõe no vídeo um ensino que seja significativo, interdisciplinar e customizado, com um currículo adaptado em “focos” a serem escolhidos pelos alunos. Sua fala reflete a maneira como a BNCC organiza os percursos formativos e o projeto de vida.

O Sistema Nacional de Educação

Para mitigar possíveis diferenças no ensino entre as várias regiões, a Emenda Constitucional nº 59/2009 propôs o projeto para a criação de um sistema unificado – o Sistema Nacional de Educação (SNE), o qual também é uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) para o ciclo atual, que vai até 2024.

Ele prevê cooperação e colaboração interfederativa em benefício da educação, para que haja coerência entre os diferentes sistemas de ensino, quaisquer que sejam a localização geográfica ou as condições educacionais. Mas sua implementação ainda não se efetivou, mesmo sendo essa uma demanda histórica. Com efeito, foram mais de dois anos de debate até chegar ao texto final, o Projeto de Lei Complementar 235/2019, aprovado no Senado em 09 de março de 2022.

De acordo com a Agência Senado, “A ideia é universalizar o acesso à educação básica e garantir seu padrão de qualidade; erradicar o analfabetismo; garantir equalização de oportunidades educacionais; articular os níveis, etapas e modalidades de ensino; cumprir os planos de educação em todos os níveis da Federação; e valorizar os profissionais da educação, entre outras ações.”

O texto também inclui questões relacionadas à decisão quanto a práticas pedagógicas em estado de calamidade (a exemplo da pandemia de covid-19) e propostas quanto a territórios etnoeducacionais indígenas, além de apresentar diretrizes para garantir uma educação voltada para a “promoção da cidadania, da diversidade sociocultural, da sustentabilidade ambiental, dos direitos humanos e do combate a qualquer tipo de preconceito, discriminação ou violência.”

A implementação desse sistema é importante quando se pensa nas relações intergovernamentais entre as três instâncias federativas. Isso porque não há uma hierarquia clara entre elas, ou seja, municípios não respondem a estados e estes à União, mas mantêm relativa autonomia, ainda que a coordenação de políticas e programas específicos fique a cargo de alguma instância específica.

Essa coordenação se mostra tão importante quanto a autonomia de cada região ou órgão local, haja vista que a necessidade de centralização de decisões no que se refere à garantia de um ensino de qualidade para todas as redes de ensino do país não subtrai a urgência de estabelecer um currículo de desenvolvimento integral, que leve em conta a realidade local e o projeto de vida do estudante, como proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para saber mais sobre o SNE, leia o especial da sessão “Em Debate”, do Observatório de Educação, que discute sobre o tema.

Educação e Assistência Social

A Assistência Social está relacionada a práticas da chamada “proteção social”. Esta diz respeito a uma série de garantias oferecidas aos cidadãos para reduzir vulnerabilidades, fragilidades e riscos de ordem social, política, econômica e natural que possam afetá-los ao longo da vida. Isso significa que é obrigação do Estado oferecer segurança e condições dignas para uma vida sem incertezas. Essas ações podem incluir desde a proteção à gestante e ao recém-nascido até o trabalhador desempregado e o idoso, e devem contribuir para o bem-estar de toda a população, além de possibilitar a inserção de grupos historicamente excluídos como beneficiários diretos das políticas públicas.

A proteção social não se desvincula da educação, uma vez que esta é um dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal, junto à saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Por promoverem o acesso a tais direitos, as ações de proteção integram o dia a dia de crianças e adolescentes na educação regular. Além disso, a articulação entre Educação e Assistência Social pode ser vista como uma forma de enfrentar as expressões da questão social nas escolas.

O enfrentamento das questões sociais no espaço escolar

Cristiane Carvalho, em artigo sobre a articulação entre as duas frentes de políticas públicas afirma que “pensar as expressões da questão social neste campo [o ambiente escolar] nos remete a questões que estão postas na realidade social, política, econômica e cultural, mas que nem sempre são identificadas no cotidiano escolar e por muitas vezes distante das políticas educacionais.”

Entre as expressões usadas como exemplos estão o baixo rendimento escolar, a evasão escolar, o desinteresse pelo aprendizado, problemas com disciplina ou insubordinação a qualquer limite ou regra escolar, vulnerabilidade às drogas e atitudes e comportamentos agressivos e violentos – como assinala o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). Isso remete ao reconhecimento de que as políticas de educação são gestadas em um espaço comprometido pela exclusão social, pela desigualdade, pela fome, pela miséria e pela violência, fatores esses que devem ser levados em consideração.

Sem políticas públicas articuladas, ocorre o agravamento das expressões da questão social. Carvalho admite que, apesar do desenvolvimento de um conjunto de ações governamentais e não governamentais para incentivo e manutenção da criança na escola, ainda há uma fragmentação que mostra a urgência da prática intersetorial. Ademais, a autora aponta para a política educacional como “um modo historicamente determinado de oferta e regulação dos serviços educacionais, que organiza diferentes formas de trabalho coletivo e modalidades de cooperação entre os profissionais que atuam nessa área, cujas práticas e seus sujeitos envolvem processos que embora se relacionem com a política educacional, a ela não necessariamente se circunscrevem.” Ou seja, a colaboração entre a Educação e os demais setores não só agrega, como é necessária para o desenvolvimento do estudante.

O direito das crianças e dos adolescentes na Educação

Uma das principais expressões da questão social, a evasão escolar é bastante frequente na rotina escolar. Ela é considerada negação do direito à educação, mesmo quando atribuída unicamente à decisão do estudante. Isso porque se opõe à permanência na escola, elemento inserido no direito à educação (conforme previsto no artigo 208 da Constituição Federal e no artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente). Portanto, elaborar maneiras de garantir a permanência estudantil é dever do Estado e deve ser observado pela sociedade civil.

O desenvolvimento integral da criança e do adolescente também é reconhecido pelo ECA, no qual se estabelece a necessidade de uma forma específica de proteção para determinada faixa etária, o que implicaria um sistema articulado e integrado de atenção, em que não apenas a escola faz parte. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/96), Artigo 1º, também se remete às ações intersetoriais, visto que a educação é tida como aquela que “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

Portanto, uma gestão intersetorial entre Educação e Assistência Social, além de outras frentes de políticas públicas, pode e deve se constituir como uma importante intervenção para a proteção social. Com ela, pode-se atuar na prevenção a situações de violação de direitos da criança e do adolescente, incluindo a manutenção da permanência estudantil, além de melhorias em relação ao desempenho escolar, principalmente em territórios mais vulneráveis.

Educação e trabalho

Existe, na legislação que regulamenta os currículos no país, um histórico de inserção de práticas educativas voltadas para o desenvolvimento profissional. A defesa do EPT (Ensino Profissional e Técnico) baseia-se na premissa de que ele abre mais oportunidades para o jovem ser introduzido no mercado de trabalho, assim como possibilita mitigar questões como a evasão escolar e o baixo rendimento por estimular mais os estudantes na aprendizagem de habilidades específicas, escolhidas por eles. A longo prazo, ele ajuda a promover o desenvolvimento econômico, como acontece em outros países, e a atenuar desigualdades sociais.

Um relatório produzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), baseado em experiências internacionais, mostra desafios e oportunidades para expandir a EPT considerando o setor produtivo e as políticas intersetoriais. Como resume o Observatório da EPT, “o material discute assuntos como currículo, recrutamento de professores, apoio às escolas, envolvimento das empresas, aprendizagem baseada no trabalho, modelo de governança e o papel de parceiros sociais, além de avaliação e certificação da EPT com a participação direta dos empregadores”, o que demonstra a importância das práticas integradas entre educação e setor produtivo.

O desenvolvimento da educação profissional com as políticas públicas

Tendo em vista o histórico da EPT na legislação brasileira, é possível perceber como as políticas públicas nesse campo atualizaram a relevância que a sociedade atribuiu a essa modalidade de ensino ao longo das últimas décadas. Em comparação com o ingresso nas universidades, o ensino profissionalizante foi muitas vezes considerado de menor prestígio e, além disso, apenas como uma possibilidade de ingressar no mundo do trabalho.

Esse paradigma é exemplificado por dados significativos: no Brasil 1 em cada 10 jovens cursam EPT, enquanto em países de economia desenvolvida esse número aumenta para 1 em cada 2 jovens. O estudo, de autoria de Marcelo Feres e publicado pela editora Movimento pela Base, mostra, além do histórico da EPT, exemplos internacionais e a possibilidade de articulação com o Ensino Médio através dos percursos formativos.

Embora a EPT tenha recebido mais investimentos nos últimos anos, o estudo evidencia “a necessidade de mudar o paradigma que sustenta a EPT no Brasil como uma modalidade assistencialista e criar um novo, capaz de vinculá-la ao desenvolvimento dos indivíduos, da sociedade e do país.”

Leia mais sobre o assunto no artigo do blog do Instituto Unibanco que trata da EPT.

As articulações com o Ensino Médio

O estabelecimento de itinerários formativos é essencial nesse contexto de articulação entre ensino profissionalizante e ensino regular. O Novo Ensino Médio não só providencia meios para abranger a diversidade, como também para propiciar flexibilidade curricular. Além disso, no projeto se entende que para além de promover a integração entre escola e vida/sociedade, e aí se incluiria a escolha da profissão, também é necessária uma agenda de inovação educacional que dê conta das transformações tecnológicas vivenciadas na atualidade.

Para Marcelo Feres, não é suficiente que a preparação para o trabalho se delimite apenas no itinerário de formação técnica e profissional, mas sim em todos os itinerários formativos do Ensino Médio. Deve-se desenvolver conhecimentos sobre ciência, tecnologia e cultura, tendo no trabalho um princípio educativo. Como exemplos de propostas similares, aplicadas em alguns países, ele cita:

1. Ensino Médio Vocacional (Brasil, México, Colômbia, Coreia do Sul e Rússia)

2. Educação para o trabalho (Brasil, Alemanha, Índia, México, Marrocos, Turquia, Arábia Saudita, Inglaterra e EUA)

3. Aprendizagem baseada no trabalho – Work-based learning (países não especificados)

O autor também destaca a Base Nacional Tecnológica Comum (BTNC), que deve ser ofertada tanto pelas escolas de ensino técnico quanto pelas escolas de Ensino Médio. Dessa forma, seria criada uma área curricular comum de formação entre as duas escolas e seus cursos. O interessante nessa modalidade é que o estudante tem opções por eixo: “ao cursar a BTNC de um eixo tecnológico, seja de curso técnico ou de curso superior de tecnologia, caso o estudante deseje fazer outro curso que pertença ao mesmo eixo tecnológico, ele poderá avançar para a parte específica do curso que deseja, sem a necessidade de fazer o curso completo.”

Educação e Cultura

O texto da BNCC prevê, em conformidade com a noção de educação integral, o respeito às individualidades e às especificidades culturais, sociais, econômicas e territoriais dos estudantes e das comunidades nas quais estão inseridos. Nesse sentido, é necessário que sejam estabelecidos processos educativos que incluam as diferentes culturas juvenis, considerando diferentes e novas formas de existir nos respectivos meios sociais. Como benefício complementar a essa premissa de ensino, há maior incentivo ou estímulo para que os alunos compareçam à escola, o que consequentemente diminui a evasão.

Escola: um lugar de construção da cultura pública

Quando se pensa na escola como um lugar de construção, e não de imposição, de uma cultura, a discussão sobre o tipo de currículo se mostra relevante. É frequente que professores e gestores examinem o ensino em termos de duas posições divergentes: ementas “conteudistas” – com excesso de memorização de informações e conceitos – ou o que é denominado “aprendizagem significativa”.

Essa última é uma concepção criada pelo psicólogo da educação estadunidense David Ausubel, que chama a atenção para a importância dos conhecimentos prévios do estudante quando este é apresentado a um novo conceito ou ideia. Isso significa que o novo conhecimento não pode ser armazenado de forma isolada, sem relação com a condição do aluno. Ou seja, essa noção é confrontada com a da aprendizagem “mecânica” e “conteudista”, que não é revisitada e ressignificada ao longo da vida.

A aprendizagem significativa não se furta da compreensão do entorno do aluno, de seu repertório de vivências culturais e, por esse motivo, está diretamente associada à percepção da escola como espaço destinado à atualização e debate constante sobre essas vivências. Em virtude da atenção à dimensão plural dos alunos, suas experiências são base para o desenvolvimento das subjetividades, e o diálogo e as relações interpessoais são base para a noção de cultura pública no ambiente escolar.

Como ações de incentivo ao aluno podem impactar a cultura

Algumas ações elaboradas pela comunidade escolar juntamente aos alunos podem estabelecer uma troca intercultural interessante e produtiva, além de se mostrarem mais estimulantes e significativas para os estudantes. Esse é o caso dos currículos interdisciplinares, que possibilitam o desenvolvimento individual e coletivo.

Um exemplo de ação desse tipo é apresentado no episódio “Envolver com arte” da série Nunca me sonharam, em que um projeto artístico foi usado como mecanismo para melhorar o desempenho escolar. Os educadores consideram que não basta a aprendizagem de conteúdos individualmente, mas sim a aquisição de competências e habilidades voltadas para as interações entre alunos. Ademais, atividades culturais e artísticas podem ajudar em aspectos como comunicação, repertório, participação e desenvolvimento emocional.

Educação, participação e democracia

O diálogo e a troca de opiniões, com a introdução dos alunos nas tomadas de decisão, ajudam a perceber como funciona o exercício da democracia e os inserem no contexto do currículo para a vida, defendido pela BNCC. À educação integral interessa compreender os estudantes enquanto sujeitos ativos do processo educacional. Métodos como a escuta ativa e a gestão participativa podem inclusive fortalecer o protagonismo dos jovens e do corpo estudantil como um todo. E essas questões se aproximam da interface entre educação e cultura, pois podem ajudar a elaborar uma espécie de “mapeamento sociocultural”.

Confira abaixo mais dois episódios da série Nunca me sonharam, que trazem reflexões sobre o tema com o posicionamento de alunos e profissionais da educação.

Como a voz dos jovens e grupos sociais influenciam a gestão pública

No episódio “Diálogo e participação”, professores comentam como é importante para os alunos o convívio na escola, tanto em relação aos amigos que encontram lá como em relação às referências de vida que a comunidade escolar representa para eles. O diálogo oferece a oportunidade de troca de experiências entre alunos e gestão, além de dar espaço para a reivindicação deles, que constituem a maioria no ambiente escolar e para quem o ensino é pensado. Essa é uma maneira de possibilitar a apropriação pelos alunos das decisões, sem dar margem para o autoritarismo e a centralização, e possibilitando transformações duradouras baseadas na coletividade.

No episódio “Gestão participativa”, algumas das ideias de cooperação e coletividade também são apresentadas, pois nesse modelo não há coadjuvantes: todos trabalham para o mesmo fim. Os entrevistados comentam que quando todos são ouvidos, a chance de identificar o que não está funcionando aumenta, e que o sucesso dos projetos é compartilhado por todos e deixado como legado para os próximos alunos ingressantes.

Educação e Saúde

Questões relacionadas à área da saúde não se dissociam do dia a dia escolar de crianças e adolescentes. Exemplos de articulação entre as áreas incluem não apenas a alimentação, o bem-estar e a saúde física, como também a segurança, a saúde mental e a educação emocional. E a Assistência Social, para alguns casos, tem um papel importante de centralizar algumas das ações que possibilitam o diálogo entre Educação e Saúde.

Ações intersetoriais produzem reflexo na educação e ajudam a lidar com momentos de crise, como na pandemia de covid-19, por exemplo, em que uma das urgências foi pensar na saúde mental de alunos e comunidade escolar. Confira abaixo as discussões sobre a necessidade de ações intersetoriais para lidar com a questão e na sequência um exemplo que envolve educação sexual.

Intersetorialidade e a educação mental de crianças e adolescentes

A integralidade no ensino, prevista pela BNCC, considera a esfera emocional como uma das bases do desenvolvimento pleno do estudante. Nesse sentido, há necessidade de implementar um currículo que inclua o que os especialistas denominam de Aprendizagem Social e Emocional (ASE). Segundo a Rede Interinstitucional para a Educação em Situações de Emergência (INEE), a ASE é “o processo de adquirir competências centrais para reconhecer e gerir emoções, definir e estabelecer metas, avaliar as perspectivas das outras pessoas, estabelecer e manter relações positivas, tomar decisões responsáveis e tratar de situações interpessoais construtivamente.”

Nas escolas, as estratégias de ASE podem ser implementadas a partir de políticas e práticas promovidas pela gestão, advindas de iniciativas em serviços de apoio ao estudante, por exemplo. Além disso, a integração entre escola e comunidade também pode beneficiar o desenvolvimento das habilidades socioemocionais. Para isso, não basta essa vertente de ensino estar prevista nas bases curriculares, mas que ações integradas entre os diferentes setores facilitem a introdução dessas práticas nas escolas.

O Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), em colaboração com o Instituto Unibanco, comenta o documento da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) sobre a contribuição de crises anteriores à covid-19 para o cultivo do bem-estar social e emocional de estudantes.

Assista ao vídeo que sintetiza as ideias do GEPEM sobre os efeitos psicológicos da pandemia, disponibilizado pelo Observatório de Educação.

Leia também o boletim Aprendizagem em foco nº 51, “Gestão: emoção e aprendizagem caminham juntas”. E para conhecer mais sobre comunidades afetadas por questões de saúde mental, considerando aspectos intersetoriais, assista ao vídeo da live “Juventude negra e educação: repercussões na saúde mental”, uma realização do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT.

Saúde e educação sexual nas escolas

Os pesquisadores Aldrin Pinheiro, Lucia Rejane da Silva e Maria Berenice Tourinho, em artigo publicado na revista “Trabalho, Educação e Saúde”, da Fundação Oswaldo Cruz, apontaram a introdução da educação sexual em escolas como exemplo de ação intersetorial necessária entre Educação e Saúde. Após ouvirem professores, alunos, profissionais de saúde e familiares em um município da Amazônia, os autores concluíram que escolas e unidades de saúde poderiam trabalhar juntas. Isso porque ao mesmo tempo em que os professores não se sentem preparados para tratar do tema na sala de aula, de forma isolada, nas unidades de saúde as dúvidas dos estudantes podem ser tratadas apenas como questões da esfera biológica. Por esse motivo, há necessidade de interação e cooperação entre as áreas. O foco desse tipo de aprendizagem não se resume à prevenção de doenças ou da gravidez precoce, por exemplo, mas também nas construções sociais de sexo e gênero, ambos conceitos previstos no currículo. Eles já são discutidos em âmbito de bases curriculares desde a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1998, em que a noção de “temas transversais” aparecia como premissa da educação voltada para a formação cidadã – um de seus compromissos é a “compreensão da realidade social e dos direitos e responsabilidades em relação à vida pessoal e coletiva e a afirmação do princípio de participação política”.

No entanto, segundo os autores, a legislação que trata da formação inicial de professores não aborda este tema entre os seus requisitos, o que confirma a falta de preparo citada pelos professores do estudo. Além disso, famílias e instituições religiosas também influenciam a disseminação do tema em determinadas comunidades, o que pode representar mais um obstáculo à questão.

Considerações finais

Conforme visto, a articulação entre diferentes setores da sociedade e a área da educação é crucial para promover ações integradas que possibilitem o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. Além das áreas apresentadas aqui, a segurança, a alimentação, o transporte, a moradia, entre outras, também devem ser consideradas na elaboração de políticas públicas voltadas para os alunos atendidos pelo ensino básico.

Para contornar os muitos desafios que se interpõem no desenvolvimento da gestão intersetorial, é necessário romper com o modelo de interação vertical, que predomina na administração pública brasileira, derivada de uma organização institucional estabelecida historicamente no país. A urgência em instaurar o modelo intersetorial também se coloca devido à possibilidade de enfrentar as questões sociais no espaço escolar como discutido anteriormente – mitigar as desigualdades sociais e garantir o acesso à educação é uma forma de materializar os direitos fundamentais da criança e do adolescente.

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