A experiência das pessoas trans na Educação
A experiência de pessoas trans e travestis na sociedade brasileira, se, por um lado, revela a força potente da diversidade, por outro é uma história marcada por exclusões e violências muitas vezes produzidas e reforçadas no espaço escolar. Nesse sentido, cabe perguntar quais papéis a educação desempenhou para a manutenção de estruturas excludentes e como a escola pode se transformar em um espaço de inclusão, defesa e garantia de direitos para pessoas trans e travestis.
Maria Clara Araújo se assumiu travesti aos 16 anos, ainda no Ensino Médio. Recifense e primeira aluna trans do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ganhou projeção nacional ao refletir sobre a institucionalização da violência e da exclusão contra pessoas trans e travestis na escola. Em entrevista para o canal Afros e Afins, a pedagoga em formação compartilhou um pouco da sua trajetória escolar como mulher travesti:
Quando eu entro [no curso de] Pedagogia, é muito em um movimento de entender meu processo de escolarização e tudo ao que eu fui submetida. Naquele momento, não havia uma portaria de nome social. Inclusive quando cheguei à direção escolar para falar do meu nome social, eles perguntaram: “Mas o que é isso?”. Eu expliquei para eles que era um nome pelo qual eu queria ser chamada e que isso seria importante para minha escolarização. Eles disseram que Maria Clara não existia, que não havia por que me chamarem por aquele nome quando na minha certidão de nascimento era outro nome.
O primeiro passo para a celebração da diferença é sua compreensão. As violências narradas por Maria Clara são amplamente comuns nos espaços de Educação Básica em todo o nosso país, culminando em um processo de exclusão cíclico e brutal, reproduzido pela comunidade escolar de forma geral. Toda pessoa, ao nascer, tem um sexo (biológico) pelo qual é designada. Alguns, ao longo da vida permanecem reconhecendo-se e identificando-se com essa designação: essas pessoas são chamadas cis gênero. Em contrapartida, algumas pessoas, ao longo da infância, da adolescência, da juventude ou da vida adulta, não se reconhecem nessa identificação: essas são as pessoas trans. Travesti é uma categoria específica relacionada à experiência de mulheres trans no Brasil. Esta é uma questão, portanto, de identificação, relacionando-se à identidade de gênero dos sujeitos, que podem ser tanto homens como mulheres, cis ou trans.
Nome social, por conseguinte, é nome de tratamento escolhido por pessoas trans e travestis em oposição àquele registrado em seus documentos e certidão de nascimento. O nome social é um direito, uma garantia mínima de dignidade e respeito a como alguém se identifica e existe no mundo. Ao narrar o processo de exclusão vivido durante o Ensino Médio, no qual o uso do nome social lhe foi negado diretamente, Maria Clara descreve o impacto dessa violência em seu processo educacional:
Eu não via na instituição da escola tudo aquilo que havia sido difundido para mim, que a escola nos aceita, que é um espaço de convivência, de criar laços, de crescer e formar o humano. Mas, ao compreender que a escola forma o humano, talvez [possamos entender que] a escola também construa essa não humanidade, a partir do momento em que ela nega certas demandas para certos corpos, por exemplo cotas raciais, nome social e banheiro para pessoas trans e travestis. Era muito complicado para mim me sentir minimamente digna no ambiente escolar, quando minhas demandas não eram vistas como demandas legítimas, que tinham relação com minha permanência dentro daquele ambiente. Acabei meu terceiro ano com muito suor e com depressão.”
O respeito ao nome social e a garantia ao uso do banheiro próprio à identidade de gênero das pessoas trans e travestis são medidas mínimas que podem auxiliar o enfrentamento à transfobia no espaço escolar. A transfobia caracteriza-se como todo ato, discurso, preconceito, política ou postura discriminatória contra pessoas trans e travestis. Pesquisa realizada pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estima que no Brasil 82% das pessoas trans e travestis tenham abandonado os estudos ainda na Educação Básica.
A gravidade dos índices de evasão da população trans é um dos indicadores utilizados por pesquisadores para definir esse processo como uma verdadeira exclusão fruto de uma pedagogia da violência. O conceito de pedagogia da violência foi elaborado pela pesquisadora Luma Nogueira de Andrade, primeira pessoa trans a concluir o doutorado em rede pública no Brasil. Em recente entrevista para a revista Capitu, do grupo Estado, a especialista abordou a exclusão das pessoas trans do espaço escolar enquanto processo de evasão involuntária:
Por não nos enquadrarmos dentro dessa ordem, passamos por um processo de exclusão tão bárbaro que passei a nomeá-lo na minha tese como pedagogia da violência. É um tipo de pedagogia que vai tentar ensinar as pessoas a ter uma forma de comportamento de acordo com os padrões conservadores, nem que precise usar de violência física, psicológica, moral e todos os outros seus aspectos. Quando fui a campo entender por que as meninas não iam à escola, descobri que aquilo se dava por elas não terem a oportunidade de ser elas mesmas. Nos dados da Secretaria de Educação, esses casos constam como evasão, o que culpabiliza a pessoa. Então, eu utilizo o conceito de ‘evasão involuntária’, porque não é algo desejado pela estudante, mas sim imposto.”
Para Andreia Lais Cantelli, professora e presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (ITBE), também entrevistada pela revista Capitu, os dados de evasão involuntária demonstram como a educação brasileira é estruturada a partir de uma heteronormatividade compulsória, ou seja, todos os corpos que fogem ao padrão cis e hetero não estão habilitados para ocupar os espaços escolares. A transfobia, portanto, se traduz em todo esse aparato institucional destinado a excluir e alijar de direitos as pessoas que não se adequam à chamada “norma”. Assim, enfrentá-la no espaço escolar é por demais urgente.
Ouvindo a diversidade: a experiência de pessoas trans na escola
Durante o mês de junho celebra-se o orgulho LGBTQIA+. Neste ano, duas professoras e ativistas trans, Amara Moira e Duda Salabert, organizaram um webinário, intitulado Visibilidade Trans na Educação, que refletiu sobre a diversidade trans nos espaços de ensino. Duda Salabert é professora de literatura, ambientalista e ativista e foi a primeira pessoa trans a se candidatar ao cargo de senadora da República. Segundo a educadora, o desafio de acesso à educação para pessoas trans é tríplice:
A educação é uma das fronteiras que ainda temos que atravessar. A gente sabe que, no campo da educação, nós, pessoas travestis e transexuais, fomos retiradas da sala de aula, seja como alunas, seja como professoras, seja como tema. A escola tradicional é mais um dos espaços desse higienismo social.”
A percepção do corpo trans e travesti como abjeto e hipersexualizado promove atitudes e até políticas educacionais voltadas a retirá-lo tanto como estudante, quanto como professor ou mesmo enquanto tema. A educadora e ativista defende que a escola deve atuar como instrumento de transformação da realidade e não de reprodução de um projeto excludente de sociedade. Segundo Duda, é necessário ampliar o debate em sala de aula sobre identidade de gênero, transfobia, diversidade e democracia. Além disso, é imprescindível discutir cotas para pessoas transexuais, pois ocupar as universidades é central para a construção, no imaginário popular, de uma figura positiva e menos estigmatizada dos corpos trans.
Amara Moira, travesti, doutora e professora de literatura, defendeu durante o webinário a criação de condições efetivas para o ingresso e a permanência da população trans no ensino básico. O processo de transição, isto é, de adequação do corpo e da apresentação de si no mundo de acordo com o gênero com o qual se identifica muitas vezes marca também o momento de exclusão da pessoa trans da escola. De acordo com a professora, pessoas trans e travestis que fazem a transição mais cedo, como na adolescência, são expulsas do espaço escolar antes de completar o Ensino Médio. Nesse processo, há, de um lado, muitas vezes a naturalização de violências interpretadas como brincadeiras inocentes pela comunidade escolar e, de outro, a caracterização de certas brincadeiras como perigosas. Assim, se uma criança criada para ser um menino brinca de boneca, essa brincadeira pode ser considerada um “perigo”; no entanto, se essa mesma criança é perseguida por colegas e professores, essa perseguição é interpretada como uma simples brincadeira. A zombaria e a humilhação em decorrência de um comportamento de gênero que não condiz com o que se espera é recorrente e, por vezes, culmina na exclusão da população trans do espaço escolar.
Promovendo a diversidade: pela vida e pela educação de pessoas trans!
Defender a diversidade trans na educação é compreender sua presença em todos os níveis: enquanto estudantes, professores, gestores e como tema a ser debatido em sala de aula. No especial do Conexão Futura sobre evasão LGBT, o educador Toni Reis considera que, apesar de a escola reproduzir o comportamento geral da sociedade – as violências e as discriminações contra pessoas trans e travestis –, é no espaço escolar que esses comportamentos podem ser transformados através da educação para a diversidade. Uma iniciativa que impulsiona essa potência do espaço escolar é o curso de extensão Gênero e Diversidade na Escola (GDE), voltado para a formação de educadores e gestores. O GDE é uma experiência piloto, liderada pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), que já formou milhares de educadores em todo o Brasil.
Nos últimos anos, o movimento LGBTQIA+ conseguiu algumas conquistas no campo da educação na forma de políticas públicas instituídas a fim de reverter o atual quadro de exclusão. Em 2016, foi sancionado o Decreto nº 8.727, que garante o direito ao nome social, e, em 2018, Resolução do Conselho Nacional de Educação, homologada pelo Ministério da Educação, autorizou o uso do nome social nos registros escolares da Educação Básica. Ademais, algumas universidades públicas no país passaram a adotar cotas para a população trans e travesti em seus sistemas de ingresso, como pode ser observado neste mapa elaborado pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação (ITBE):
Fonte: ITBE, 2018
Entretanto, essas políticas não são suficientes para garantir a permanência das pessoas trans na escola, uma vez que a transfobia, o assédio e as violências (como a não aceitação do nome social ou o uso do banheiro) ainda são muito recorrentes. O enfrentamento a condutas intolerantes, ao preconceito e à discriminação começa também com práticas pedagógicas dispostas a visibilizar e celebrar a diversidade. É o caso da experiência da professora Maria Gabriela Abreu, responsável pela elaboração de um projeto de oficinas extraclasse para trabalhar temáticas relacionadas à diversidade. O projeto focou na diversidade das pessoas trans e na violência e vulnerabilidade a que estão submetidas. Os grandes efeitos percebidos ao longo do projeto foi a mudança de postura da comunidade escolar, que começou a denunciar os episódios de transfobia e discriminação. Segundo a educadora, as oficinas colaboraram com a criação de um vocabulário de defesa dos direitos das pessoas trans, que passou a ser acionado sempre que esses direitos são violados.
O exercício contínuo do enfrentamento à violência e à intolerância e a defesa dos direitos da população trans pela comunidade escolar como um todo pode ter efeitos muito concretos nas trajetórias escolares de pessoas trans e travestis. Em reportagem da TV UFMG sobre os desafios da comunidade trans, Gabriel Dante Silva, homem trans e estudante de Publicidade e Propaganda, falou sobre como o apoio dos colegas e do corpo docente foi fundamental para sua permanência no espaço escolar:
Os meus colegas foram muito receptivos, a maioria deles começou a se referir a mim no masculino sem eu falar nada. Eles foram percebendo e automaticamente foram fazendo a mudança, meus professores também. Um dos professores me orientou a fazer a retificação do meu nome, me deu a folha para eu ir fazer a mudança.”
A Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG) possui, desde 2015, uma portaria que regulamenta a retificação para o uso do nome social. Isto é, toda pessoa tem o direito de usar o nome social no conjunto de unidades e serviços que a universidade presta, viabilizando o ingresso e a permanência de pessoas trans, como relata o professor Paulo Henrique: “O nome social permite o ingresso das pessoas, várias que eu entrevistei disseram isso. Algumas dessas pessoas adiaram a entrada na universidade até o nome social ser reconhecido. A universidade tem um papel nisso, e também o grupo no qual ela está inserida.”
Já a educadora Duda Salabert conta como um episódio de transfobia que sofreu durante a campanha para senadora da República em 2018 revelou a importância de as pessoas trans ocuparem todos os espaços escolares. Ao ser alvo de uma onda de manifestações de ódio e ameaças direcionadas tanto ao seu perfil nas redes sociais quanto à escola na qual trabalha como professora de literatura em Belo Horizonte, Salabert se surpreendeu com o apoio recebido. O medo de perder seu emprego só foi aplacado quando centenas de estudantes do colégio fizeram atos em demonstração de apoio à professora:
Apesar da transfobia, que é estrutural, é atávica, ela faz parte do DNA da sociedade brasileira, apesar disso, há uma galera nova muito boa vindo. Essa galera está comprando nossa briga, e a forma disso se amplificar somos nós [pessoas trans e travestis] em sala de aula. Nosso corpo se faz também como uma ferramenta pedagógica. Como há um silenciamento do nosso tema, da nossa identidade, dos debates que envolvem nossa vivência, as pessoas não sabem como tratar, como falar, como conversar. Sala de aula é o momento de aprendizado, do erro. Muita gente em sala de aula me trata no masculino e eu percebo que não é por maldade, eu explico, a pessoa pede desculpa e bola para frente. Isso tem que acontecer em sala de aula, não é em outro espaço.”
A professora contou ainda sobre a licença-maternidade que tirou, de 120 dias, para ficar com a filha recém-nascida: “Quando falamos em nenhum direito a menos, é disso que se trata”. À época, alguns colegas comentaram que seria “demais” ela fazer essa requisição, já que a escola tinha sido “muito boa” para ela. Essa lógica vai na contramão do avanço dos direitos das pessoas trans, que devem ser considerados, respeitados e defendidos em todas as esferas.