Currículo

Educação integral: potências e desafios da BNCC

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê, entre outras diretrizes, a integralidade enquanto princípio orientador do ensino, cujo objetivo principal é o desenvolvimento holístico dos estudantes de modo complexo e não meramente linear. Muitas vezes confundido com o ensino em tempo integral, esse paradigma não se resume a um simples aumento na carga horária. A educação integral propõe romper com perspectivas reducionistas que dão enfoque a uma única dimensão, compreendendo assim todos os aspectos do desenvolvimento e considerando ainda a inclusão, a equidade e a diversidade de maneira transversal.

Não devemos confundir a integralidade enquanto princípio pedagógico e o ensino em tempo integral, que envolve a expansão ou justaposição de turnos, uma vez que a política de educação integral não se resume a uma ampliação no tempo de permanência na escola. Para que a integralidade aconteça, é preciso que a intencionalidade das práticas pedagógicas seja transformada, notadamente através de três princípios: a visão do estudante, o desenvolvimento pleno e a integração curricular. Previstos na BNCC, esses princípios orientam a construção de práticas pedagógicas e políticas públicas articuladas às múltiplas realidades locais e regionais.

Incorporar a visão do estudante significa romper com o paradigma do ensino passivo, no qual o currículo é um conjunto de conteúdos a ser absorvido por um sujeito despersonalizado. A BNCC introduz a compreensão das individualidades e das especificidades culturais, sociais, econômicas e territoriais dos estudantes e das comunidades nas quais estão inseridos. Compreender a dimensão subjetiva e plural dos estudantes implica reconhecer seu protagonismo no processo de aprendizagem, bem como a necessidade de um currículo que dialogue com subjetividades em desenvolvimento.

Trata-se de formar sujeitos com capacidades desenvolvidas para além da absorção de um volume X de conhecimento adquirido. Incorporar a visão do estudante é também desenvolver junto à comunidade escolar a escuta ativa e o diálogo que permitam qualificar o conjunto base de competências cognitivas e socioemocionais previstas na BNCC, de modo articulado às múltiplas realidades vivenciadas pelo corpo discente. De acordo com o texto da BNCC, a visão do estudante é um princípio que prevê:

“(…) visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem, a fim de promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades. Considerando a relevância de serem estabelecidos processos educativos que incluam as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir” (BNCC, 2017, p. 14).

O princípio do desenvolvimento pleno, por sua vez, enfrenta a falsa dualidade entre a esfera intelectual e a emocional. Por vezes interpretadas como dimensões hierarquicamente justapostas, elas são compreendidas pela BNCC  como campos articulados e que, por conseguinte, desempenham papéis igualmente fundamentais. Dessa forma, todas as competências gerais previstas pela BNCC incorporam tanto aspectos cognitivos quanto socioemocionais, assimilando elementos flexíveis e maleáveis do desenvolvimento de maneira transversal.

Por fim, a BNCC prevê que o ensino integral agencie uma educação não fragmentada, na qual os elementos do currículo tenham sentido para os estudantes, estabelecendo ligações concretas entre o conhecimento e a vida. O chamado princípio da integração curricular valoriza o protagonismo do estudante nos processos de aprendizagem, contribuindo para a construção do seu projeto de vida. Para formar um sujeito pleno, é preciso investir em formas contínuas de construção do conhecimento, integrando os componentes curriculares não apenas entre si, mas sobretudo aos contextos vividos pelos estudantes. Dessa forma, é necessário investir em uma concepção relacional do conhecimento, na qual as áreas curriculares, seus conteúdos e métodos são introduzidos e explorados de maneira integrada.

A BNCC é responsável pela definição das diretrizes curriculares que devem ser contempladas nos referenciais de cada ente federativo – estados e municípios –, permitindo que os princípios pedagógicos sejam implementados de acordo com as realidades regionais e locais. Dessa forma, os currículos devem ser desenvolvidos por cada unidade escolar a partir desses referenciais, que são utilizados na constituição dos seus projetos políticos pedagógicos – incorporando dialogicamente a perspectiva tanto da gestão quanto dos educadores, estudantes e de toda comunidade escolar. Os princípios da educação integrada permeiam assim todos os níveis do planejamento e da gestão, podendo orientar as redes de ensino de maneira transversal e democrática.

Educação integral em tempos de crise

No contexto atual, é importante refletir de que maneira os princípios da educação integral podem auxiliar na busca de respostas para os desafios impostos pela covid-19. Em 2020, o Centro de Referências em Educação Integral promoveu um webinário sobre os desafios enfrentados pela educação integral em tempos de crise, debatendo como as redes estão trabalhando para garantir o direito à educação de todos os estudantes.

De acordo com Natacha Costa, pesquisadora e diretora executiva da Associação Cidade Escola Aprendiz, uma política universal de amplo alcance se faz necessariamente no diálogo entre secretarias e escolas, pautado não no controle, mas na confiança e no trabalho colaborativo entre os profissionais e gestores de uma rede. Dessa forma, é importante incorporar não apenas o ponto de vista das secretarias, mas sobretudo dos gestores e profissionais da educação, uma vez que a educação integral não é uma mera modalidade que amplia a jornada ou a carga horária dos estudantes:

“A educação integral é uma concepção de uma educação que se compromete com uma formação integral, contextualizada, democrática, inclusiva e transformadora, que se preocupa com a formação de sujeitos capazes de construir conhecimento e não apenas sujeitos instruídos em um processo passivo de escolarização.”

Nessa perspectiva, a construção curricular pressupõe a colaboração entre os profissionais de toda a rede de ensino, descentralizando o trabalho das equipes técnicas das secretarias e da gestão. Educadores são mais do que executores de planos de aula, eles são agentes de formulação do currículo em contato direto com a realidade cotidiana das comunidades. Por conseguinte, a implementação democrática da BNCC depende da articulação com esses profissionais capazes de responder aos diferentes contextos, sobretudo em um cenário de crise, seja ela econômica, política ou sanitária. A fim de construir uma agenda para a educação integral, é preciso, dessa forma, compor com as perspectivas de todos os sujeitos implicados, desde estudantes até gestores, educadores e profissionais da rede, sobretudo frente aos desafios impostos pelo contexto atual. Ainda de acordo com a pesquisadora:

“A educação integral está lidando com o momento de crise que estamos vivendo, um momento com muitos desafios de ordem econômica e social. Sabemos que isso tem impactado a vida das pessoas, não é um problema que está lá fora, ele está nas nossas casas. O contexto tem nos desafiado a reinventar formas, a lidar com altos e baixos e todo tipo de pressão. Falando em educação pública, é preciso pensar que vivemos em um país extremamente desigual. A gente ainda tem mais de 50 milhões de pessoas vivendo com menos de R$ 420/per capita/mês. Segundo o UNICEF, metade das nossas crianças e adolescentes, 27 milhões deles, vivem sob múltiplas privações, de modo que a escola é para elas um fator de proteção.”

A suspensão das atividades econômicas, devido às medidas sanitárias necessárias para o controle da pandemia, sobrecarregou a rede de proteção social, colocando ainda mais pressão sobre as instituições de ensino. Uma vez que o trabalho e a renda de boa parte da população sofreram o impacto das medidas restritivas, os órgãos públicos de assistência social se viram num processo contínuo de sobrecarga, evidenciando ainda mais as lacunas estruturais das políticas estatais de garantia de direitos. Nesse contexto, sobretudo no primeiro ano da pandemia, as modalidades de ensino a distância e híbrido foram utilizadas, o que gerou questionamento de gestores e especialistas a respeito da equidade na garantia do direito à aprendizagem. Além das dificuldades enfrentadas para o acesso a equipamentos e internet, ainda há a considerar a necessidade de treinamento e preparo para os profissionais e famílias na mediação dos processos de aprendizagem remota e com apoio de recursos tecnológicos.

Cristiana Berthoud, secretária municipal de Educação em Tremembé (SP), sublinhou que a grande estratégia da gestão foi a construção dialógica entre família, comunidade e escola, fortalecendo os laços da comunidade escolar através de busca ativa e consolidação de grupos de familiares em redes sociais:

“Ficarmos juntos, esse foi o carro-chefe. Agora a gente vai lidando de outra forma, mas no início era um momento de muita incerteza, muito pânico. Mas uma coisa que sempre ficou forte como certeza, desde que foi lançada a BNCC, é que temos uma oportunidade para transformar a educação, mudar não apenas o conteúdo, mas também a estratégia. Ninguém desejou essa pandemia, mas, como toda crise, ela é oportunidade de mudanças.”

O papel da gestão

Para o gestor escolar Tom Doratiotto, diretor da Escola em Período Integral Municipal Maria Antônia Benelli de Tarumã (SP), o apoio da secretaria de Educação e a articulação com o restante da rede de ensino foram essenciais para atravessar os desafios impostos pela pandemia. Esse trabalho articulado permitiu que a escola mapeasse já no primeiro momento da crise as condições das famílias e estudantes para o acompanhamento das atividades não presenciais, como acesso a computadores, smartphones e internet.

“A escola fez um levantamento junto à comunidade escolar, possibilitando que a gente desenhasse uma estratégia para enfrentar as dificuldades. Como chegar aos alunos que não têm internet ou computador? Fizemos parcerias com outras secretarias para levar materiais impressos para esses estudantes. Sem transformar a casa do aluno numa extensão do espaço escolar, mas trabalhando para possibilitar ao estudante uma rotina com momentos dedicados à educação.”

O gestor aponta para um dos princípios da educação integral, presente também nas diretrizes da busca ativa, que é a atuação articulada junto à comunidade e aos demais setores do serviço público. Ao compreender os estudantes como sujeitos ativos da aprendizagem, a educação integral permite criar estratégias em diálogo com as necessidades e circunstâncias impostas pela crise, incorporando nas respostas da gestão escolar os dilemas e desigualdades sociais. Nesse sentido, podemos observar como a aplicação prática dos princípios da educação integral envolvem a transformação de paradigmas, orientando práticas pedagógicas dialógicas e transversais.

Educação integral e diversidade

Ao compreender os estudantes enquanto sujeitos ativos do processo educacional, a integralidade considera também a diversidade étnica, cultural, econômica, social e de gênero que compõe a comunidade escolar. Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista Macaé Evaristo abordou como uma política de educação integral pode incluir a diversidade, dialogando com os diferentes contextos:

“Uma política de educação integral não nasce desvinculada de uma ideia de direito. E o direito à educação hoje nos pede que a gente dialogue com outros direitos. Quando falamos de educação escolar indígena, o direito a uma educação específica e diferenciada que dialogue com a organização social e política daquela sociedade, é claro que nós estamos falando também dos jeitos de viver e morar, do direito à terra daquelas comunidades. Pensar uma política de educação integral para crianças que moram em comunidades ribeirinhas ou em uma aldeia indígena é bastante distinto de pensar educação integral para um jovem que mora em área urbana. Portanto, o gestor precisa ter uma percepção muito clara da população com a qual ele trabalha e qual a possibilidade, como ver as potencialidades que estão em seu território para, a partir de um diálogo com esses diferentes sujeitos e seus territórios, realizar um arranjo para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e adultos. (...) Precisamos promover diálogos para que a gente construa uma agenda de educação integral que tenha a cara do nosso país, e a cara do nosso país é a diversidade.”

Seja a Educação para Jovens e Adultos, no campo, para comunidades ribeirinhas, quilombolas ou povos indígenas, a integralidade orienta práticas dialógicas que constroem em conjunto respostas curriculares e rotinas pedagógicas apropriadas para cada contexto. Nesse sentido, é fundamental a prática da escuta ativa e do fortalecimento das relações entre a escola e a comunidade em que está inserida, de modo que o papel do gestor enquanto articulador é central. Esse processo pode inclusive fortalecer o protagonismo dos jovens e do corpo estudantil como um todo, através do desenvolvimento de cartografias ou do mapeamento sociocultural, como explica Evaristo:

“A melhor maneira de o gestor saber o que tem no entorno da comunidade é deixar-se guiar pelos estudantes. Muitas vezes o jovem conhece melhor a comunidade do que o professor ou o gestor escolar. Trabalhar com cartografias participativas, em que os professores e estudantes construam esse mapeamento, identificando o potencial não apenas de equipamentos públicos, mas de equipamentos privados também.”

Evaristo destaca ainda que as inciativas de articulação comunitária e cartografia participativa para fomentar o diálogo e a diversidade em uma política de educação integral necessitam de um papel de fomento e apoio ativo das secretarias municipais e estaduais. É sua responsabilidade, por exemplo, promover a formação de educadores e gestores para a educação integral de forma continuada, garantindo outrossim as condições sistêmicas para a implementação dessas diretrizes pedagógicas. Dessa forma, não se trata apenas da iniciativa dos diretores e educadores, mas sobretudo de uma agenda mais ampla que consiga apoiar a rede de maneira transversal, envolvendo também a sociedade civil. Evaristo citou o Programa de Educação Integral da Secretaria Municipal de Belo Horizonte (MG), no qual, através de uma parceria com os clubes esportivos da cidade, a prefeitura concedeu descontos tributários àqueles que permitissem a entrada de estudantes da rede pública de ensino.

O desenvolvimento desse programa orientou-se pela perspectiva do conceito de “cidade educadora”, como explica Evaristo, no qual o município assume como compromisso de todas as suas ações públicas a agenda da educação para o desenvolvimento integral das pessoas:

“A potencialidade muitas vezes não está instalada na escola pública, pode estar em um outro espaço, público ou privado, mas essa expertise precisa dialogar com a educação, esse é o princípio que orienta a integralidade.”

Nesse sentido, se os equipamentos de cultura desenvolvem ações para a infância, toda a comunidade é beneficiada, não apenas o público-alvo direto. A educação integral pode abrir caminhos para uma rede de ensino em diálogo com a comunidade e sua diversidade cultural, contribuindo para o desenvolvimento não apenas dos estudantes, mas da sociedade como um todo.

A BNCC, ao incorporar os princípios da integralidade, estimula a valorização da relação entre a escola e os territórios nos quais ela atua, ressaltando a importância dos vínculos com as comunidades e as famílias, bem como os ganhos em reconhecer a perspectiva dos sujeitos implicados no processo de aprendizagem. Para além de um documento obrigatório e burocrático, a BNCC revela oportunidades de revisão das práticas pedagógicas, com ênfase em metodologias democráticas e dialógicas, rompendo com a reprodução de estratégias que alienam docentes e estudantes do processo educativo.