Currículo

Centenário Paulo Freire: a educação como prática de liberdade

Em 2021, comemoramos os cem anos do nascimento de Paulo Freire, um dos brasileiros mais homenageados e reconhecidos no mundo. Natural de Recife, Freire nasceu em uma família de classe média baixa e, desde a adolescência, se dedicou à formação e à alfabetização de jovens e adultos. Sua dialogicidade, empatia e engajamento em causas humanitárias, tanto no Brasil quanto na América Latina e na África, inspiram práticas pedagógicas inovadoras em diversos países até o presente. No atual contexto, marcado por uma crise sanitária global com implicações políticas, econômicas e sociais, refletir sobre a vida e a obra deste pedagogo nordestino é uma oportunidade para imaginar cenários e práticas democráticas que construam um futuro possível e mais inclusivo.

 

O caminho se faz caminhando

 

Formado em Direito, Freire nunca exerceu a advocacia. Já nos primeiros anos após sua graduação, ele se dedicou à docência, lecionando Língua Portuguesa e trabalhando com turmas de educação popular e alfabetização. Em uma época em que a educação para jovens e adultos era pensada como uma transposição simplificada dos conteúdos trabalhados com as crianças e os adolescentes, Freire propôs estratégias pedagógicas específicas, aliando a experiência vivida e as trajetórias dos estudantes com o conteúdo escolar. Para entender a abordagem freiriana, é preciso reconhecer o contexto no qual ela foi elaborada: o Nordeste brasileiro no início da década de 60, onde cerca da metade dos 30 milhões de habitantes não sabiam ler ou escrever.

Em Angicos, cidade do interior do Rio Grande do Norte, Freire conduziu uma das primeiras experiências do seu método, alfabetizando 300 trabalhadores e trabalhadoras rurais em 45 dias. Ao romper com a oposição entre conteúdo e método, o pedagogo introduziu elementos que conectavam as matérias estudadas com o contexto vivido pelos trabalhadores, dando não somente maior celeridade ao processo de aprendizagem, mas também uma profundidade política inovadora. A leitura e a escrita deixam de ser apenas competências de um currículo e se tornam ferramentas de transformação da realidade na medida em que possibilitam que o estudante não só leia as palavras, mas também seja capaz de ler a sua realidade.

O sucesso do seu método em Angicos chamou a atenção do governo federal, e o educador foi convidado pelo então presidente, João Goulart, para reestruturar a alfabetização em nível nacional. O golpe militar de 1964 pôs fim ao projeto e Paulo Freire passou a ser perseguido político, uma vez que sua proposta de educação libertária foi considerada subversiva e perigosa. O pedagogo saiu do Brasil e só retornou na década de 80, após conduzir projetos de alfabetização em dezenas de países, contribuindo inclusive com processos de independência e descolonização em várias nações africanas e latino-americanas, como Guiné-Bissau, Angola, Chile e Cuba.

Ao retornar ao Brasil, Freire contribuiu com o processo de redemocratização, inclusive atuando na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo durante a gestão da prefeita Luiza Erundina. Considerado o brasileiro mais citado em publicações acadêmicas e aquele que mais recebeu homenagens e títulos honoris causa, em 2012 Paulo Freire foi ainda nomeado, através de um projeto de lei assinado pela então presidente Dilma Roussef, como o Patrono da Educação no Brasil. Seu caminho se fez, como ele costumava dizer, caminhando, no diálogo transdisciplinar e transnacional.

 

Educação como prática da liberdade

 

Ainda que Freire tenha alcançado notoriedade no meio científico, entre especialistas da educação, educadores e gestores, os valores democráticos do método freiriano não são bem-vistos por governos autoritários, que preconizam modelos pedagógicos engessados e para os quais o exercício pleno da cidadania ativa e questionadora significa uma verdadeira ameaça.

Juliano Peroza, professor do Instituto Federal do Paraná e especialista em Filosofia da Educação, propõe uma metáfora para a compreensão do pensamento político pedagógico freiriano, como “sementes esperançosas” para a transformação social. Com efeito, Peroza interpreta a ditadura militar como “terra árida”, enquanto Freire seria um verdadeiro semeador da educação como prática da liberdade. O legado freiriano, de construção de práticas pedagógicas democráticas, possui, nesse sentido, uma relação pungente com os desafios atuais da educação em nosso país. A promoção da convivência democrática no espaço escolar é fundamental para garantia da aprendizagem, para Peroza:

“O seu método possibilitava a continuidade entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, estabelecendo um vínculo entre a bagagem existencial de homens e mulheres com a consciência sobre essa experiência e uma decodificação alfabética do mundo. É por isso que o próprio método foi exitoso no sentido de possibilitar  uma semente utópica. (...) O golpe militar sufoca essa experiência e impede que ela germine.”

Nos últimos anos, o recrudescimento de valores fascistas e intolerantes transformou o nome de Paulo Freire em um sinônimo de “comunismo” ou “esquerda”, ignorando a contribuição inegável das suas propostas para o avanço da educação e para a ampliação do direito à aprendizagem. O atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, por exemplo, em consonância com os posicionamentos do governo federal, desconsidera as contribuições de Paulo Freire, qualificando suas propostas pedagógicas como uma estratégia para “transplantar valores do marxismo” para dentro das salas de aula. Muitos grupos que atacam a qualidade do seu método afirmam que, quanto mais Freire é estudado nas universidades, menos a educação avança. Essa aparente contradição não apenas deixa de fora as experiências e boas práticas de ensino e aprendizagem espalhadas pelo país que se valem da metodologia freiriana como também ignora fatores políticos, econômicos e sociais. Em uma entrevista que concedeu à Folha de S.Paulo em 1994, o próprio Paulo Freire comentou as razões pelas quais a sua abordagem pedagógica não foi capaz de erradicar o analfabetismo em nosso país:

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60, fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas.”

Freire desenvolveu seu método no contexto do Movimento de Cultura Popular na década de 50, no Recife, através da criação dos chamados círculos de cultura, de maneira que sua prática pedagógica estava investida de um sentido político democrático. Os círculos eram atividades coletivas que não estabeleciam programação ou agenda prévia e cuja metodologia valorizava a multiplicidade de perspectivas, provocando cada sujeito a se posicionar em uma circularidade dialógica. Freire transpôs essa estrutura para dentro das salas de aula, desfazendo a rigidez que separa educador de educando e investindo na aprendizagem como um processo circular e mútuo.

O educador deixa de ser a pessoa que detém um conhecimento e o transfere, quase como em uma transação comercial, ao estudante. Esse modelo, chamado por Freire de “bancário”, engessaria a aprendizagem ao não considerar os saberes adquiridos pelos estudantes fora dos muros da escola. Os círculos de cultura promovem a escuta, o diálogo e, sobretudo, a troca e o intercâmbio de saberes, qualificando a aprendizagem e resultando em maior efetividade do processo educacional. Para o pedagogo, a troca é o método central de apreensão do conhecimento e aumento da consciência de si no mundo, formando docentes e estudantes mutuamente para o exercício da cidadania.

Nessa proposta, o educador não perde seu papel de liderança no processo de aprendizagem – seja no preparo das aulas ou no domínio dos conteúdos –, mas se coloca numa relação mais horizontal em relação aos estudantes. Essa circularidade promove o autorreconhecimento do estudante enquanto sujeito capaz, munido de agência para ler o mundo e transformá-lo. Os debates atuais, presentes na reformulação da Base Nacional Comum Curricular, em torno do protagonismo dos jovens e do desenvolvimento de competências socioemocionais estão em grande consonância com as discussões introduzidas por Paulo Freire na educação e podem ser qualificadas pelo seu método.

A grande aplicabilidade da obra de Paulo Freire se dá sobretudo pela contestação que o autor elabora a respeito da falsa dicotomia entre teoria e prática, realizando uma verdadeira aliança entre as duas esferas. De acordo com Moacir Gadotti (1996):

“Paulo Freire não pensa pensamentos. Pensa a realidade e a ação sobre ela. Trabalha teoricamente a partir dela. É metodologicamente um pensamento sempre atual e vem ganhando mais força nos últimos anos pela sua compreensão da política que nunca foi orientada por qualquer cartilha. Ele descobrira que a forma de trabalhar, o processo do ato de aprender, era determinante em relação ao próprio conteúdo da aprendizagem. Não era possível, por exemplo, aprender a ser democrata com métodos autoritários.”

Incluir o “sujeito da aprendizagem” no processo contínuo de construção do conhecimento não apenas fortalece os valores democráticos na educação, mas também implica maior eficácia. A gente aprende mais e melhor quando tem nossa perspectiva incluída e valorizada. Para além de “respeitar a diferença”, o método freiriano celebra a diversidade enquanto elemento fundamental para a garantia do direito de aprender.

 

Ensinando a transgredir

 

Freire mobilizou reflexões e debates de maneira transversal, um diálogo que segue cheio de possibilidades mesmo após 24 anos da sua morte. Sua proposição da educação como um processo de tomada de consciência, que deve reconhecer as diferentes perspectivas, encontra grande ressonância com os debates da descolonização do currículo, de equidade racial e de gênero e da educação inclusiva. A sua colaboração, em vida, com importantes autores e autoras afrodescendentes, tanto em países africanos quanto na América Latina e nos Estados Unidos, corrobora a pertinência de incorporar sua perspectiva na elaboração de práticas pedagógicas mais democráticas.

Leitora ávida de Paulo Freire, a feminista negra norte-americana bell hooks vê no método uma forma de construir uma educação humanista, que promova a equidade de gênero e raça e não exclua pessoas LGBTQIAP+. Para a autora, o que Freire considera como “tomada de consciência” é um verdadeiro processo de descolonização, na qual os sujeitos que têm sua história e sua cultura invisibilizados podem finalmente se reconhecer como capazes de transformar a sua realidade. Esse processo reinventa a educação, que deixa de ser apenas um modelo de transmissão de conteúdos e passa a ser um processo que, ao estimular a liberdade, ensina a transgredir. A importância da educação e da aprendizagem na construção de um mundo mais igualitário encontra no método freiriano uma expressão potente, nas palavras de Bell Hooks (2013):

“A ênfase na educação como necessária para a libertação, que os negros afirmavam na época da escravidão e depois durante a reconstrução, informava nossa vida. E por isso a ênfase de Freire na educação como prática da liberdade fez sentido imediatamente para mim. Consciente desde a infância da necessidade da alfabetização, levei comigo para a universidade a lembrança de ler para as pessoas, de escrever para as pessoas. Levei comigo as lembranças de professoras negras no sistema escolar segregado que tinham sido pedagogas críticas e tinham nos proporcionado paradigmas libertadores.”

Freire não é apenas atual. A sua insistência na valorização do diálogo e da troca através das diferenças e não apesar delas possibilita que sua obra influencie debates em todos os campos que promovem valores democráticos e equidade. Aprender com o outro é uma ferramenta poderosa no enfrentamento às desigualdades.

 

Pedagogia da esperança

 

Em recente webinário promovido pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a especialista em educação Rilva Uchôa apresentou sua pesquisa-intervenção sobre a aplicabilidade de Paulo Freire na práxis escolar. Professora desde a adolescência e atuante na rede municipal de ensino de Recife, Uchôa identifica na pedagogia freiriana um arcabouço metodológico para enfrentar os desafios cotidianos da Educação Básica, compreendendo que cada contexto irá ditar como as ferramentas propostas por Freire podem ou não auxiliar os processos de aprendizagem. Com efeito, a educadora reorganizou a estrutura da sala de aula na forma de um círculo de cultura, fomentando as trocas entre docente e estudantes através de processos contínuos de aprendizagem.

A iniciativa de Uchôa se iniciou pela apresentação da vida e obra do educador aos estudantes, abrindo a possibilidade para que as próprias crianças e adolescentes compreendessem os círculos de cultura e escolhessem conjuntamente os conteúdos por essa metodologia a partir da proposta da educadora:

“Eu tinha que mostrar para eles como iríamos trabalhar no círculo. Nossa prática era construir os projetos iniciados por eles, eles diziam o que queriam aprender da forma delas. Eu interpretava esses desejos nas formas do currículo e do método científico, da organização dos conteúdos que estavam postos.”

Nesse sentido, a prática docente influenciada por Freire abre possibilidades de fortalecer valores de convivência democrática, estimulando o diálogo e a cooperação na relação entre docentes e estudantes. Há um eixo de trabalho, por conseguinte, voltado à superação do chamado modelo “bancário”, no qual aquele que aprende é mero receptáculo passivo do processo educacional. A própria forma pela qual Uchôa introduz a mudança pedagógica já implica, por si só, uma práxis dialógica e que investe no protagonismo estudantil:

“Nossa prática era de acolhimentos, dos estudantes se perceberem, se respeitarem e reconhecerem suas habilidades. É a questão do protagonismo, respeitando o que cada estudante traz como saber, experiência e conhecimento para dentro da sala de aula.”

Além disso, a educadora reforça que a perspectiva, quando aplicada à Educação Básica, não significa abandonar conteúdos ou orientações curriculares. Pelo contrário, o rigor metodológico se aprofunda, pois qualifica o processo de ensino garantindo a aprendizagem, ainda que esbarre em dificuldades de se adequar aos calendários tradicionais:

“Vivenciar o círculo de cultura não é perder de vista a rigorosidade metódica do processo de ensino e aprendizagem. Muito pelo contrário, exige muito mais cuidado e cautela. A maior dificuldade é o tempo. Os tempos estabelecidos pelos sistemas não são convenientes para práticas diferenciadas.”

Nos círculos, a diversidade de perspectivas e experiências não apenas é valorizada, como também se torna um dos grandes focos da formação. Temas que estão atravessando a vida e o cotidiano dos estudantes são valorizados e utilizados como ganchos de aprendizagem. Uchôa compartilhou como, por exemplo, o racismo cometido contra religiões de matriz africana no Brasil foi um tema que atravessou um processo formativo sobre a história do nosso país, sua diversidade étnica e a importância da descolonização do currículo:

“Fizemos uma atividade no pátio da escola em homenagem a Xangô. Foi uma discussão na sala de aula sobre religiosidade, dançamos Xangô de Clara Nunes tanto no círculo quanto para toda a escola, fortalecendo a necessidade de respeitar a diferença de cada um.”

Se, no início, os estudantes tinham muita dificuldade para se expressar e precisavam de estímulos constantes, ao final a experiência fomentou diversas capacidades socioemocionais, culminando na criação do Conselho de Estudantes Representativos (CEP), com leituras de textos de Paulo Freire a fim de inspirar a redação do próprio regimento do grupo. Segundo Uchôa:

“No conselho escolar não tem estudantes representados, pois eles não têm idade para tal. Mas não queríamos deixar os estudantes fora das decisões da escola, então criamos o CEP. Foram eleitos estudantes do terceiro e quarto ano e da turma acelera. Trabalhamos Paulo Freire com os alunos para criar as normas do CEP, e cada um teve a oportunidade de expressar o que significava ter trabalhado com Freire na escola.”

Como vimos, muitas são as possibilidades de diálogo com a obra de Paulo Freire. Desde a gestão até os currículos e a prática pedagógica em sala de aula, toda a educação pode ser influenciada pelas ideias do pedagogo pernambucano. Nesse sentido, a proposição de salas de aula como círculos de cultura é uma das suas mais significativas contribuições, possuindo relação direta com a melhoria da aprendizagem. Ao introduzir elementos do cotidiano dos estudantes, o círculo valoriza os diferentes contextos culturais, econômicos e sociais presentes na comunidade escolar, inserindo todos – inclusive o professor – no processo educativo.