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Convivência democrática no espaço escolar: fundamental para garantia da aprendizagem

Promover valores democráticos enquanto prática de convivência no espaço escolar é fundamental para o respeito às diversidades e para garantia do direito à aprendizagem. Enquanto um dos primeiros locais de encontro das diferenças, a escola pode tanto atuar no fortalecimento do respeito ao outro quanto reproduzir práticas e discursos autoritários presentes em nossa sociedade. Dessa forma, uma agenda para a convivência democrática, focada no protagonismo juvenil, na relação com a comunidade e no combate às desigualdades sociais, pode tanto impactar positivamente o clima escolar quanto os níveis de evasão e abandono.

Em 2018, a pesquisa Teaching and Learning International Survey (Talis), promovida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelou que o Brasil é um dos países com os mais altos índices de “bullying” entre estudantes. O foco da Talis é avaliar a aprendizagem no cenário internacional, considerando as condições de trabalho de professores e gestores em mais de 40 países. No Brasil, a Talis contou com o apoio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para aplicação e tratamento de dados, concluindo que as situações de intimidação ou bullying entre os estudantes do nosso país têm ocorrência semanal em 28% das escolas de Ensino Fundamental, o dobro da média da OCDE.

Especialistas definem o bullying como um comportamento ou atitude recorrente de caráter interpessoal que tem por objetivo constranger, humilhar, ferir e/ou violentar o outro. É certo que, em ambientes autoritários, onde a convivência é hostil e as normas são impostas de maneira unilateral, sem a possibilidade de diálogo, o sentimento de pertencimento acaba sendo baixo, os conflitos têm alta ocorrência e problemas como violência e bullying acabam atingindo maiores proporções.

Os índices da pesquisa Talis revelam, desta forma, certa deficiência da institucionalização de valores democráticos na convivência escolar em nosso país. As altas taxas de intimidação e agressão, tanto entre estudantes quanto entre estudantes e educadores, indicam uma naturalização da violência nos conflitos cotidianos e um baixo índice de diálogo e respeito às diferenças.

Além da Talis, uma pesquisa realizada na Fundação Carlos Chagas (FCC) pelos pesquisadores Tavares e Menin, em 2015, analisou como os estudantes brasileiros da Educação Básica aderem ou não a valores sociomorais, como: justiça, respeito, solidariedade e convivência democrática. A maior parte dos estudantes respondeu de maneira favorável aos valores de convívio democrático, no entanto as respostas partiam de um ponto de vista altamente individualista. Deste modo, os participantes identificavam a forma mais ética e democrática de conduzir um conflito, mas orientados, na maior parte das vezes, pelo ganho individual que teriam naquela ação, para escapar de uma punição ou para serem bem-vistos pela coletividade.

A pesquisa da FCC demonstrou, por conseguinte, fragilidade no desenvolvimento de competências socioemocionais indispensáveis à convivência democrática, como a valorização da diferença e a empatia. Em sua grande maioria, os estudantes não se colocavam no lugar do outro ou mesmo consideravam os impactos de suas ações para outras pessoas, indicando baixo reconhecimento de outras perspectivas e pontos de vista diante de uma mesma situação. A prevalência de uma visão de mundo autocentrada indica, em muitos casos, a incapacidade de perceber nossas responsabilidades, deveres e direitos coletivos, dificultando a consolidação de uma agenda democrática na educação.

Políticas de convivência

Pensar a educação para a democracia é também pensar em um Projeto Político-Pedagógico (PPP) voltado ao desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, fortalecer vias de diálogo e participação, combatendo e enfrentando desigualdades, é primordial para a implementação dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) para a educação, da Organização das Nações Unidas (ONU). Uma política de convivência democrática no ambiente escolar, orientada para o desenvolvimento, considera não apenas as dimensões temáticas e metodológicas do processo de ensino e aprendizagem, mas também as relações sociais/humanas, bem como a disposição do próprio espaço físico.

Ao pensar as relações interpessoais, a proposta política para a convivência democrática promove diálogo e mediação de conflitos, por meio da expressão de todo o conjunto de vozes que compõem a comunidade escolar, considerando a complexidade dos marcadores sociais da diferença presentes em nossa sociedade, como raça, gênero, sexualidade. Para promover a convivência a partir do espaço físico da escola, é importante que a gestão esteja atenta a elementos arquitetônicos segregadores, que não exponham elementos religiosos ou culturais avessos à diversidade, ou que causem constrangimento a grupos étnicos historicamente oprimidos. Já em relação aos conteúdos e metodologias de ensino, é fundamental que o currículo seja plural, incorporando diferentes perspectivas sociais e históricas, sobretudo no que diz respeito ao legado de mulheres, pessoas negras, povos indígenas e pessoas LGBTQIA+.

A convivência democrática atravessa todos os campos da educação, das relações interpessoais ao Projeto Político-Pedagógico, entretanto, uma vez que ela versa sobre as capacidades subjetivas de conviver com o outro, a inclusão no currículo do desenvolvimento socioemocional do estudante é um elemento essencial para o avanço da democracia no espaço escolar. A inclusão dessa dimensão na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é fundamental para o aprofundamento de uma política de convivência democrática nas escolas brasileiras. Ao prever dimensões de aprendizagem, como a valorização da diversidade de saberes e vivências culturais, além do autoconhecimento, empatia e habilidades relacionais, a BNCC promove avanços importantíssimos nessa discussão, a despeito das possíveis dificuldades de implementação dessa agenda.

O lugar da escola no desenvolvimento emocional do estudante, destacado tanto pela BNCC quanto pelos ODS, ainda não está plenamente consolidado perante a sociedade brasileira. Em entrevista à TV Univesp, a antropóloga Carla Cristina Garcia, especialista em convivência escolar, falou sobre a importância da escola para uma educação sociomoral que capacite crianças e adolescentes não apenas em disciplinas formais, mas sobretudo para o convívio democrático:

“O senso comum entende que a família educa para a afetividade, a educação dos sentimentos e do afeto, enquanto a educação formal e para a ciência seria responsabilidade da escola. No entanto, a escola também ensina a convivência social. Quando a criança sai de casa e vai para a escola, uma das coisas que ela vai ter que aprender é viver em sociedade. Passar a conviver com pessoas que não são da sua família, da mesma religião que você e da mesma etnia que você, isso é a escola que faz. A escola deve, sim, ensinar a convivência social.”

Nesse sentido, promover espaços de diálogo é formar estudantes, educadores e gestores, com ferramentas de diálogo e de participação democrática. Se a democracia é uma proposta política de equanimidade, isto é, de igualdade de direitos, é preciso compreender de que forma os entraves ao diálogo, as agressões e as violências presentes no espaço escolar se articulam às desigualdades presentes em nossa sociedade. O fenômeno classificado como bullying é relativamente recente e, por conseguinte, é capaz de explicar apenas parte da problemática da convivência nas escolas. De que maneira as diferenças se transformam em motivo para discriminação e agressão? Assim como na sociedade de maneira geral, na escola a diferença só se traduz em violência por meio da institucionalização da desigualdade.

Diferença e desigualdade

Se por um lado é fundamental desenvolver capacidades socioemocionais, enquanto ferramentas imprescindíveis para o diálogo e o convívio com as diferenças, por outro a compreensão das origens históricas das desigualdades em nosso país é a outra face indispensável a essa moeda. O racismo, a discriminação de gênero, o capacitismo (a discriminação contra pessoas com deficiência), o etnocentrismo, o preconceito de classe e as demais desigualdades que compõem o nosso tecido social se traduzem em violências cotidianas, reproduzidas no espaço escolar. Se no século XXI um dos maiores desafios das democracias ocidentais é a conclusão efetiva da igualdade de direitos para todas as pessoas, independentemente de suas diferenças, a superação dessas mesmas desigualdades é um dos grandes obstáculos à garantia do direito à aprendizagem em nosso tempo.  

Nesse contexto, a Lei 10.639 de 2013 – que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, instituindo a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura da África na Educação Básica – significou grande avanço na promoção de uma convivência democrática. O racismo e a desigualdade racial compõem de maneira estrutural todos os espaços da nossa sociedade, excluindo e marginalizando pessoas negras, sua cultura, conhecimentos e valores. Dessa forma, a descolonização do currículo é imprescindível para que estudantes negros sejam vistos enquanto sujeitos plenos de direitos, uma vez que sua perspectiva histórica, política e social passa a integrar o conjunto de saberes do espaço escolar. Essa introdução possibilita ainda que os estudantes, sobretudo não negros, desconstruam pressupostos preconceituosos sobre a contribuição dos povos africanos na constituição da nossa sociedade, fortalecendo valores democráticos de respeito e valorização das diferenças.

A consolidação de uma agenda para a convivência democrática no espaço escolar depende fundamentalmente da inclusão das diferentes identidades presentes no cotidiano da escola, e não apenas dos diferentes segmentos – estudantes, educadores, gestão, família, comunidade e demais profissionais. Ao compreender o que nos torna diferentes uns dos outros, no que tange às implicações políticas dos marcadores sociais da diferença, podemos interagir de maneira dialógica e democrática. Somente por meio do reconhecimento e da promoção da diversidade é possível criar canais efetivos de escuta entre pessoas de origens e pertencimentos distintos. Criar espaços de escuta e inclusão para a perspectiva de meninas, mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+ e pessoas com deficiência é fundamental para a efetiva convivência democrática, combatendo a violência e consolidando canais de troca e diálogo.

Os índices de evasão e abandono, por exemplo, demonstram como a ausência de valores que promovam a equidade no espaço escolar contribui para a exclusão das diferenças, impactando de maneira desproporcional, sobretudo, pessoas negras e pessoas trans. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad/2020), entre os jovens negros de 15 a 17 anos, por exemplo, 19% estão fora da escola, enquanto entre os jovens brancos da mesma faixa etária esse índice é de apenas 12,5%. Já entre as pessoas trans, poucos são os dados oficiais, fato que evidencia a fragilidade das políticas públicas voltadas à promoção e garantia dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Ainda assim, recente levantamento da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil estimou que cerca de 82% das pessoas trans e travestis abandonaram os estudos ainda na Educação Básica.

Os números exemplificam uma problemática complexa e intersetorial, que mais atravessa o espaço escolar do que está contida nele. Contudo, é fundamental reconhecer o papel da escola na reprodução de processos históricos de exclusão e da propagação de discursos autoritários que contribuem para a discriminação de minorias. Diante deste cenário, de que forma a gestão escolar pode promover valores de convivência democrática, valorizando as diferenças e enfrentando as desigualdades?

Qual é o papel da gestão?

Como vimos, o desenvolvimento de competências e habilidades socioemocionais e morais tem implicações diretas e positivas no processo de aprendizagem, no clima escolar e na convivência entre estudantes. Compreender o papel da escola no desenvolvimento das afetividades e subjetividades de estudantes, e também de educadores, é fundamental não apenas para a promoção do bem-estar e a melhoria no convívio, mas especialmente para a garantia da participação e da inclusão de todos. Ao incluir essas dimensões de forma efetiva no Projeto Político-Pedagógico da escola, a gestão pode introduzir ferramentas de diálogo e mediação para a resolução de conflitos, diminuindo os episódios de violência, bullying e discriminação.

Em entrevista à revista Nova Escola, o gestor Robson Moraes, da E.M.E.F. EJA Maria Pavanatti Fávaro, em Campinas, relatou como o projeto Viva Ética melhorou o clima escolar e fortaleceu a convivência democrática, por meio da criação de espaços participativos. O projeto, que existe desde 2015, institui na escola um conjunto de princípios, como: o respeito, a justiça, a responsabilidade e a convivência ética. Nas palavras do gestor:

“De certa forma, todos esses princípios dialogam com as competências socioemocionais. Ao tomar as decisões coletivamente em todos os segmentos – entre os alunos, os professores, os funcionários e os gestores –, a questão do diálogo, do respeito e da empatia acaba se desenvolvendo de forma mais coesa.”

Algumas experiências demonstram como a metodologia da mediação de conflitos pode ser uma ferramenta para a convivência democrática, promovendo o respeito às diferenças e o combate à intolerância. É o caso da experiência da gestora Virginia Vilagran Pinheiro, da E.E.F.M. Matias Beck (Fortaleza-CE). Frente a um cotidiano de conflitos violentos, seja entre estudantes e entre estudantes e educadores, a gestora propôs a adoção de ferramentas de mediação, envolvendo membros da comunidade escolar, o grêmio estudantil e professores, com o objetivo de criar canais de diálogo mais democráticos. A mediação de conflitos permitiu que a comunidade escolar passasse a enfrentar suas diferenças de maneira dialógica, sem estigmatizar e excluir as juventudes, pelo contrário, investindo no seu protagonismo para a promoção de uma convivência democrática:

“Em algumas situações o aluno consegue mediar com outro aluno. Em outras não, o professor dá um auxílio. Essa mediação pode também ser em parceria, aluno e professor tentando mediar esse conflito. Ao expulsar eu não estou resolvendo o problema, nem o do educador, nem o do aluno, estou na verdade devolvendo esse problema à comunidade. Estamos vendo a mudança no olhar dos alunos, eles já têm como referência a mediação.”

Após uma reforma na escola, algumas paredes dos banheiros foram desenhadas com grafites pelos estudantes. Ao invés de responder a essa situação com punição ou expulsão, o grêmio da escola mediou a questão junto à gestão escolar, disponibilizando uma parede da quadra da escola para que os estudantes se expressassem, garantindo por outro lado a integridade das demais áreas do prédio. A importância da valorização da cultura e do protagonismo das juventudes, em suas diferentes formas de expressão, é essencial para o fortalecimento dos valores democráticos, garantindo o direito de aprendizagem a todas e todos.

Fomentar a participação ativa da comunidade escolar, seja na formação do plano educacional, seja por meio de eventos e atividades curriculares, é uma estratégia de promoção de valores democráticos e de fortalecimento do exercício da cidadania de crianças e adolescentes. Estimular a criação desses espaços, observando o protagonismo juvenil, o respeito às pessoas LGBTQIA+, a liderança feminina, a inclusão de pessoas com deficiência e a valorização da história e da cultura afro-brasileira e indígena, é alcançar a efetiva participação democrática. A convivência democrática depende, nesse sentido, tanto de canais de diálogo quanto de espaços participativos que resguardem a representatividade da diversidade de grupos e perspectivas que compõem o espaço escolar.