Currículo, desigualdades e diversidades no Ensino Médio

A vida moderna se caracteriza pelo convívio entre as diferenças e os desafios, políticos e sociais, que essa convivência impõe. A diversidade – humana, cultural, étnica, sexual -  está conectada à noção de pluralidade, tão central à existência, afinal se não fossemos diversos não teríamos a capacidade criativa de elaborar diferentes formas e modos de existir. Se por um lado, está tão ligada à pluralidade, a diversidade está igualmente ancorada na diferença. Como ressalta a pesquisadora, Cida Bento[1], do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, a diferença não é horizontal, de modo que a pluralidade está investida em uma realidade desigual. Desta forma, pensar diversidade sem pensar a desigualdade seria uma excrescência, pois a maneira hierarquizada na qual ela se apresenta na nossa sociedade é central para o seu entendimento.

 

Ao pensar a relação entre a diversidade humana e cultural e o espaço escolar, o currículo se transforma em personagem central, ao se conformar enquanto ferramenta metodológica de transposição de um projeto político pedagógico em práticas objetivas e cotidianas[2]. Dessa forma, pensar o currículo escolar é mais do que apenas discutir os conteúdos que o integram, mas de fato refletir sobre os aspectos metodológicos de sua conformação, isto é, se o mesmo é capaz de promover uma cultura de respeito e valorização das diferenças, combatendo desigualdades e fortalecendo uma cultura escolar democrática.

 

Em 2016, o Instituto Unibanco promoveu o "Seminário Internacional Desafios Curriculares do Ensino Médio", e na mesa "Currículo, desigualdades e diversidades no Ensino Médio" debateu os desafios de promoção de uma educação mais inclusiva e democrática a partir de bases curriculares menos excludentes. Abordando o capacitismo, o racismo e a discriminação de gênero e orientação sexual, a mesa confrontou os desafios de enfrentar uma base curricular monolítica, bem como os avanços e retrocessos vivenciados na última década.

 

Ao falar da desigualdade de acesso que alunos e pessoas com deficiência enfrentam no espaço escolar, o pesquisador Rodrigo Mendes falou do conceito de educação inclusiva como aquela que acolhe todos e persegue altas expectativas para cada um. Trata-se de um ambiente escolar que iguala oportunidades, no sentido de garantir direitos e ao mesmo tempo diversificar estratégias por entender que cada estudante aprende de uma forma particular. As altas expectativas devem dialogar com as singularidades dos estudantes, a barra deve ser estabelecida de uma forma personalizada, móvel e em constante revisão. Do contrário, há a manutenção da exclusão, seja porque a barra está muito alta, ou baixa.

 

Será que existe um segmento especifico, será que existe um recorte ao falar da educação inclusiva? Mell Aisncow, pesquisador britânico, fala dos segmentos da educação inclusiva a partir da seguinte reflexão:

 

“Educação inclusiva não é sobre crianças com deficiência, mas sobre reforma educacional acerca da ideia de que cada criança é importante. Crianças com deficiência podem ser vulneráveis, mas muitas outras também são, como crianças advindas de lares pobres e outras”.

 

Este é um olhar fundamental para descontruir a percepção da educação inclusiva como um apêndice, afinal o que estão sendo discutindo são as diferenças humanas presentes em todos os estudantes dada a complexidade e universalidade da diversidade humana. Segundo Rodrigo, falar de inclusão partindo das crianças e pessoas com deficiência só faz sentido dado o histórico de severa exclusão deste segmento das escolas e da educação, percebido como um segmento que foge do padrão esperado do perfil do aluno, ainda presente no imaginário dos educadores, em termos de ritmo de aprendizagem e desempenho. Nesse sentido, ainda é pertinente adotar medidas especificas para esse segmento a fim de acelerar a redução de desigualdades, num futuro talvez não haja necessidade de ações especificas para esse público.

 

Ao falar sobre o contexto brasileiro, a noção de educação inclusiva é entendida como a estratégia de inclusão das crianças e pessoas com deficiência na educação, através da chamada “educação especial”. Ao analisar um período de aproximadamente 10 anos na educação básica (entre 2003 e 2014), o pesquisador observa um crescimento médio de 60% no número de matrículas de alunos com deficiência, revelando ainda que as matriculas em espaços segregados sofreram sensível queda enquanto as matrículas em ambientes inclusivos passaram a ganhar predominância, chegando ao final do período com praticamente 80% das matriculas em ambientes inclusivos.  Em contrapartida, a realidade do ensino médio revela um grave quadro de exclusão, havendo um decréscimo brutal de matricula de pessoas com deficiência, somando apenas 0,8% do total de matriculados. Nesse sentido, o Ensino Médio funciona quase como um funil, apontando para as intensas desigualdades de acesso e permanência ainda presentes.

 

Frente a este quadro que revela por um lado avanços na educação básica, e por outro a manutenção de estruturas de desigualdade nos últimos anos do ensino, qual é o papel de gestores e educadores enquanto agentes de mudança e inclusão? Neste campo de discussões, é central o conceito de desenho universal. Esta noção, surgida na década de 60 na área da arquitetura, tem como proposta a construção de espaços que sejam planejados de modo que possam ser utilizados de maneira autônoma pelo maior número de pessoas, sem que houvesse adaptação.

 

O conceito de desenho universal foi se expandindo para outras áreas, até chegar, na década de 90, às discussões de inclusão e diversidade no âmbito da aprendizagem e da educação[3]. A ideia é que o educador planeje sua aula ou atividade pedagógica a fim de garantir a participação de todos por meio da eliminação de barreiros, este conceito está fundado em três princípios básicos: o primeiro é a necessidade de proporcionar múltiplos meios de representação do conteúdo, por exemplo: um professor que garante o conteúdo em formato de digital para pessoas com deficiência visual; o segundo trata-se da oferta de múltiplos meios de ação em termos da estratégia pedagógica, a fim de maximizar as oportunidades de ensino para todos; por fim, o desenho universal da aprendizagem prevê múltiplos meios de interação com determinado conteúdo ou disciplina. Todos esses princípios devem ser pensados a priori e de maneira continuada, com o conjunto da equipe pedagógica e da gestão escolar.

 

Se ao enfrentar o capacticismo no ambiente escolar e nos currículos, o conceito de “desenho universal” oferece ferramentas metodológicas e políticas de inclusão e combate às desigualdades, ao falar de diferenças étnicas, raciais e culturais, muitos especialistas apontam para a necessidade de “descolonização” das bases curriculares. Sobre o debate decolonial e o impacto do eurocentrismo[4], isto é, da concepção do currículo escolar a partir de uma única visão (cultural/racial/espacial) de mundo, a pesquisadora Cida Bento considera os efeitos das políticas de promoção da igualdade conquistadas na última década. As modificações na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, realizadas após aprovação da Lei 10.639, consistem em grandes conquistas do movimento negro, a fim de garantir o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira, no ensino básico.

 

O grande debate em torno da elaboração e promulgação desta legislação, esteve em torno da profunda exclusão que um currículo eurocentrado provoca, uma vez que invisibiliza a história, as raízes e tradições de metade da população do país. Um país em que 53% da população é negra, em que a cada cinco anos da nossa história, quatro foram vividos sob a escravidão negra, o peso das relações raciais foi pouco refletido em nossa educação. Outra questão sempre apontada nos estudos de relações raciais na escola, diz respeito aos índices de reprovação, evasão, e dificuldades de aprendizagem, sempre mais críticos entre alunas e alunos negros, revelando outrossim uma intensa desconexão do currículo e do ambiente escolar da realidade das questões raciais em nosso país. Como apontou a pesquisadora:

 

“Para gente não utilizar o conceito de evasão das crianças negras e indígenas, mas de expulsão. Uma criança expulsa pelo sistema escolar que não dialoga com sua cultura”.

 

Desta forma, vale refletir como algo tão volumoso, que tem proporções tão vastas como os efeitos das desigualdades raciais, não toma a centralidade das discussões deste campo, principalmente ao se considerar as implicações metodológicas e políticas advindas da exclusão da questão racial dos estudos e também das políticas públicas. De acordo com a pesquisadora, ao desconsiderar um elemento central que atravessa diretamente a vida e o perfil social de, ao menos, metade dos alunos, isto é, do público alvo da pesquisa ou da política pública, as mesmas estão fadadas ao insucesso. As realidades demográficas e históricas do país, por conseguinte, não permitem que as questões étnico-raciais se transformem em apêndices em ou sejam apenas desconsideradas.

 

Cida ainda aborda o aspecto eminentemente político da elaboração dos currículos escolares. Ao falar de questões sociais centrais à produção, manutenção ou ruptura de desigualdades (de raça, de gênero, de classe, etc.), os conteúdos curriculares estão no centro de uma disputa de caráter ideológico, seja ela implícita ou não. Desta forma, trata-se mesmo da necessidade de descolonização das bases curriculares, isto é, de reapropriação das diretrizes pelos sujeitos considerados “público alvo” dos sistemas escolares. Ao identificar a natureza das disputas políticas que atravessam a constituição do currículo, trata-se de colocar as perspectivas (culturais, históricas, políticas) dos sujeitos historicamente excluídos no centro do processo. Neste sentido, descolonizar o currículo é não apenas retirá-lo de uma perspectiva eurocentrada, mas continuamente torná-lo mais diverso e pluri-perspectivado.

 

Assim, ao incluir o ensino da história e a cultura africana, não se trata de apenas trazer mais um tópico para o conteúdo dos currículos, trata-se evidentemente, de uma mudança de prática, de questionar a própria estrutura de poder que alimenta as desigualdades da sociedade refletidas também no sistema escolar.  Nas palavras da pesquisadora Cida:

 

“Quando uma cultura se impõe sobre a outra – como aconteceu no Brasil – é ela que fala. Há, portanto um lugar de poder. Você forma crianças (brancas, negras, indígenas) para pensar o branco, o negro e o indígena de uma determinada forma. Você cria um imaginário, criado em crianças brancas, negras e indígenas que irão ocupar diferentes lugares sociais. A hierarquização irá acontecer, e ao final você tem violência e conflitos raciais. A escola tem um lugar determinante na construção do imaginário”.

 

A diversidade é complexa e deve perpassar todo o processo de elaboração e execução de uma política educacional, um olhar hegemônico e monolítico não vai conseguir avaliar a diversidade, não vai conseguir trabalhar com ela, a diversidade deve estar em todos os sujeitos, desde quem olha, quem pensa e atém quem implementa. Diversidade depende assim, de um ponto de referência, isto é, quem é o referente e quem é o diverso, revelando igualmente as relações de poder desiguais implícitas nas formas com as quais a nossa sociedade lida com plural. Muniz Sodré nos lembra que a diversidade é física, ela atravessa os sujeitos e os atores sociais. Dessa forma, não podemos falar da diversidade sem os sujeitos da pluralidade. Assim, é preciso reconhecer os diferentes lugares de poder envolvidos ao se pensar relações raciais, mas também de gênero, na educação, nos grupos de gestão escolar, nas secretarias de educação, quando não envolvem os sujeitos e atores centrais às políticas, quando não incluem os sujeitos da diversidade, isso tem um efeito direto na ausência de perspectivas plurais.

 

A mesa contou ainda com a participação de Denise Carreira, da Ação Educativa, que destacou a importância da elaboração de um currículo que promova uma cultura democrática, que enfrente as desigualdades, que promova a alteridade e, por fim, que reconheça de fato todos e todas seres humanos detentores de dignidade e sujeitos de direitos. A pesquisadora fala da necessidade fundamental de articular a avaliação às questões da diversidade, incluindo competências que vão além da escrita/leitura e da matemática.

 

A pesquisadora se debruçou sobre as questões de gênero nos currículos, a partir de uma perspectiva interseccional, articulada às questões de raça, classe e sexualidade. Denise trouxe o cenário das desigualdades de gênero em nosso país enquanto elementos centrais para elaboração do currículo, a fim de combater os efeitos sociais dessa realidade traduzidos em índices críticos: de violência de gênero; de desigualdade de acesso ao mercado de trabalho; de feminicídio (ainda crescentes entre mulheres negras); de assassinatos de travestis e mulheres trans; e de aumento da violência homo-lesbo-transfóbica.

 

A partir desta contextualização, Denise destacou seis principais desafios de gênero na educação brasileira: as desigualdades educacionais entre mulheres, com destaque para mulheres negras, indígenas e do campo; a situação de pior desempenho e maiores desafios para permanência na escola para adolescentes e jovens; a manutenção de uma educação racista, homofóbica e misógina na base da educação; a concentração de mulheres em cursos e carreiras ditas femininas com menor valorização profissional e limitado reconhecimento social; a baixa valorização dos profissionais da educação, composto por mais de 90% de mulheres e o acesso desigual à educação infantil.

 

Desta forma, de maneira transversal pudemos observar como as diferenças presentes em nossa sociedade, ao se articularem a uma estrutura de promoção e manutenção das desigualdades, se reflete em um currículo e um ambiente escolar excludente. A escola ocupa um lugar central na produção deste imaginário social, o qual constrói possibilidades de ser e saber para o conjunto de atores sociais. Repensar as formas consolidadas de reprodução do capacitismo, do racismo e da misoginia através de currículos centrados no sujeito masculino/branco/hetero/europeu/não-deficiente, é um dos maiores desafios de promoção da diversidade e do combate às desigualdades no ambiente escolar. 

 

A descolonização dos currículos depende necessariamente da inclusão da perspectiva dos sujeitos historicamente excluídos (mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência) de modo que o processo de inclusão da multiplicidade de perspectivas é um projeto de caráter intercultural, isto é, de construção de diálogo entre as diferenças[5]. Trazer para a escola múltiplas informações em diferentes linguagens para que a comunidade escolar perceba a pluralidade de formas de interpretação das origens e sentidos do universo e da vida, diferentes sistemas epistemológicos que não apenas coexistem mas podem ser complementares, se transforma em ferramenta central para a promoção de uma sociedade mais tolerante e menos desigual.

 

Referências

[1] https://cedoc.observatoriodeeducacao.org.br/item/?cod=123456789_5039
[2] https://cedoc.observatoriodeeducacao.org.br/item/?cod=123456789_3558#_=_
[3] https://cedoc.observatoriodeeducacao.org.br/item/?cod=123456789_5184
[4] http://gestaouniversitaria.com.br/artigos/o-curriculo-decolonial-da-reflexao-a-colaboracao-intercultural
[5] https://cedoc.observatoriodeeducacao.org.br/item/?cod=123456789_3558#_=_