Educação inclusiva e a valorização das diferenças
Enquanto seres humanos, somos todos diferentes. A diferença é o que, de certa forma, nos humaniza. Percebê-la como valor é um processo que se estabelece em todas as esferas da vida e que legitimamos individual e socialmente. A ideia de diferença como valor já está estabelecida desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ao apontar que o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo é o reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos e de seus direitos iguais e inalienáveis.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) estendeu direitos a esse público em específico para garantir-lhes efetiva inclusão na sociedade, em base igualitária com outros cidadãos no que diz respeito aos direitos à vida, à habilitação e reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à previdência social, à assistência social, à cultura, ao esporte, ao turismo, ao lazer e ao transporte. Na convenção, é apresentado um novo conceito de pessoa com deficiência, que leva em conta o modelo social e não o clínico em sua definição:
aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
No artigo “Como chamar pessoas com deficiência?”, Romeu Sassaki conta que “a cada época são utilizadas palavras cujos significados são compatíveis com os valores vigentes no período”. E aponta que, para a elaboração do texto da convenção, organizações de pessoas com deficiência participaram dos debates e “chegaram ao consenso quanto a adotar a expressão ‘pessoas com deficiência’ em todas as suas manifestações orais ou escritas”. A convenção representa um importante marco na proteção aos direitos humanos no Brasil. Ao ser internalizada no direito pátrio com status constitucional, pelo Decreto Legislativo nº 186, de 2008, o documento ampliou o espaço para o exercício da cidadania a milhares de pessoas, o que já era garantido pela Constituição de 1988. Reforçando a assinatura do documento pelo Brasil, em Nova York, em 2007, e a ratificação com equivalência de emenda constitucional, em 2008, o Decreto nº 6.949, de 2009, promulgou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Outro documento internacional elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, criada em 2015, entrou para a lista de referências para o fortalecimento de valores e diretrizes que fundamentem a elaboração de leis, decretos e políticas cada vez mais inclusivas. A agenda, concebida durante a atualização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para erradicar a pobreza e promover uma vida digna para todos, metas estabelecidas para o período de 2015 a 2030. Vários ODS comtemplam explicitamente as pessoas com deficiência. O ODS 4, que trata da educação de qualidade, coloca como desafio “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos”. Na estratégia 4.5 é ainda mais específico: “até 2030, eliminar as disparidades de gênero na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, povos indígenas e as crianças em situação de vulnerabilidade”.
Dando continuidade ao recorte educacional, a Declaração de Incheon, criada, ainda em 2015, na Coreia do Sul, demonstra em seu título a ampliação, o aprofundamento e a consideração da educação como direito de todos: “Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos”. Importante contextualizar que essa declaração se encontra dentro do movimento global de educação para todos, cujo marco normativo inicial foi a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, elaborada em Jomtien (Tailândia), em 1990; seguida da Declaração de Salamanca (Espanha), no ano de 1994, que discutiu essas questões de modo específico e dentro da educação geral; e reiterada pela Declaração de Dakar (Senegal), em 2000.
Dando continuidade à legislação brasileira, em 2015, a Lei nº 13.146, chamada de Lei Brasileira da Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, chegou para reforçar os direitos à inclusão social e à cidadania das pessoas com deficiência. Em seu capítulo IV, com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aborda o direito à educação, que deve ser inclusiva e de qualidade em todos os níveis de ensino e garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem por meio da oferta de serviços e recursos de acessibilidade que eliminem barreiras.
Em debate organizado pelo Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, Liliane Garcez e Rodrigo Mendes trataram de temas da educação inclusiva, como a formação docente e o preparo desse público para o trabalho, abordando dados da América Latina.
EDUCAÇÃO INCLUSIVA NA PANDEMIA
Diante dos enormes impactos gerados pela pandemia da covid-19 nas redes de ensino do Brasil, a pesquisa Protocolos sobre Educação Inclusiva durante a Pandemia: um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais, realizada pelo Instituto Rodrigo Mendes, teve o objetivo de contribuir com os gestores responsáveis por planejar e implementar políticas públicas voltadas à garantia do direito à educação das pessoas com deficiência. A pesquisa abordou ações relacionadas ao período de isolamento social, assim como à fase de reabertura das escolas. Adotou como fonte de informações uma rede de 45 especialistas estrangeiros, protocolos de 23 países, bem como diversos documentos de organismos internacionais, como Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entre outros, relacionados à educação inclusiva durante o período da pandemia.
Um amplo conjunto de direitos devem ser garantidos às pessoas com deficiência, independentemente da gravidade do momento que enfrentamos. Esse conjunto envolve o direito à informação, à saúde e à educação. Há ainda considerações acerca da educação dos estudantes com deficiência durante o período de isolamento social e das aulas remotas que precisam ser discutidas, além das políticas públicas de retomada das atividades escolares de forma presencial, abordando critérios de retorno, como questões sanitárias e distanciamento social. A pesquisa mostra essa necessidade e apresenta alguns meios de garantir que todos os estudantes, com e sem deficiência, tenham o mesmo acesso à educação.
A série de webinários Educação Inclusiva na Pandemia, realizada pelo Instituto Rodrigo Mendes e pelo DIVERSA, dialogou com educadores e familiares de estudantes sobre estratégias na busca por equidade e pela continuidade da aprendizagem diante do fechamento das escolas por conta da adoção do isolamento social para contenção da propagação da covid-19 e sobre as perspectivas de retorno às aulas presenciais. Gestores públicos, diretores de escolas e educadores têm o papel de cuidar para que nenhuma pessoa seja excluída, desmotivada ou deixe de estudar. É responsabilidade de todos atuar para que não haja consequências discriminatórias e de aprofundamento das desigualdades.
HISTÓRICO DA INCLUSÃO ESCOLAR NO BRASIL
Vivemos nos últimos anos um grande avanço na inclusão escolar, com um aumento significativo no número de estudantes público-alvo da Educação Especial matriculados em ambientes inclusivos da Educação Básica. No artigo “Histórico da inclusão escolar: uma discussão entre texto e contexto”, as autoras Deusodete Aimi, Marasella del Cármen Macedo, Ana Maria Souza e Iracema Tada abordam a inclusão escolar e a institucionalização do acesso e da permanência da pessoa com deficiência nos sistemas escolares.
A ampliação do acesso de crianças e adolescentes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades a escolas comuns na última década decorreu, principalmente, da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e, em seguida, da criação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), ambas ocorridas em 2008.
Em 2008, a taxa de matrículas em ambientes inclusivos (escolares regulares e classes comuns) ultrapassou a de ambientes segregados (escolas especializadas e classes especiais), um movimento que se acentuou nos anos seguintes, principalmente após a publicação da Resolução nº 4 do Conselho Nacional de Educação, em 2009, e do Decreto nº 7.611, de 2011, sobre a modalidade de Educação Especial e o atendimento educacional especializado (AEE) na Educação Básica. De acordo com o Censo Escolar de 2019, o percentual de matrículas em ambientes inclusivos chegou a 87% do total de matrículas da modalidade de Educação Especial, representando uma curva crescente, como mostrado no gráfico a seguir.
Essa relevante conquista de acesso dos estudantes com deficiência à educação, principalmente a escolas comuns inclusivas, no entanto, convive com um importante desafio. O número de matrículas do público-alvo da Educação Especial, mesmo em constante crescimento, ainda não passa de 2,6% do total de matrículas da Educação Básica. Embora não seja possível precisar quantas crianças e adolescentes desse segmento temos hoje no Brasil e, principalmente, quantas ainda estão fora da escola, estima-se que 15% da população tenha alguma deficiência, de acordo com o Relatório Mundial sobre a Deficiência da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2011). Ou seja, mesmo que haja variações nessa estatística por faixa etária, tudo indica que uma parcela considerável das crianças e adolescentes com deficiência está fora da escola.
Uma análise dos dados também aponta um afunilamento das matrículas desse público em relação ao total de alunos do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, e também no Ensino Superior. No Ensino Fundamental, o percentual é de 3,3%, enquanto no Ensino Médio a proporção cai para 1,7%, e no Ensino Superior chega a apenas 0,5%.
No Seminário Internacional Desafios Curriculares do Ensino Médio, realizado nos dias 9 e 10 de novembro de 2016, em São Paulo, pelo Instituto Unibanco, a mesa “Currículo, desigualdades e diversidades no Ensino Médio”, mediada por Bel Santos Mayer, contou com a fala de Rodrigo Hübner Mendes sobre esses dados de contexto da educação inclusiva. Por fim, outro documento a ser considerado durante o período em destaque é o Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº 13.005 em 2014. O plano determina metas e estratégias para a política educacional do Brasil até 2024. Sua meta 4 é “universalizar, para a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à Educação Básica e ao atendimento educacional especializado (AEE), preferencialmente na rede regular de ensino”.
Na contramão de toda essa evolução histórica, em 30 de setembro de 2020 foi promulgado o Decreto n°10.502, que institui uma nova política de Educação Especial, agora sem a perspectiva inclusiva. O decreto encoraja a prática de educação de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e superdotação e altas habilidades em escolas especiais e ainda sugere que as famílias serão aconselhadas sobre onde matricular seus filhos. Na prática, o decreto dá margem para a recusa de matrícula desses estudantes em escolas regulares, bem como destina recursos públicos para uma política segregatória, que pode reduzir os investimentos na remoção de barreiras e na formação de professores para a inclusão escolar. Por violar a Constituição federal e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Decreto nº 10.502/2020 está sendo questionado publicamente pela sociedade civil pelo Congresso Nacional – em 15 projetos de decretos legislativos (PDL) que visam a sua revogação, como o PDL 433, cujo requerimento de urgência já foi aprovado – e por duas ações no Supremo Tribunal Federal, que têm por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do decreto (ADPF 751 e ADI 6590). Em entrevista, Rodrigo Mendes fala sobre as consequências do novo decreto:
OS BENEFÍCIOS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A educação inclusiva pode ser entendida como uma concepção de ensino contemporânea que tem como objetivo garantir o direito de todos à educação. Ela pressupõe a igualdade de oportunidades e a valorização das diferenças humanas, contemplando, assim, as diversidades étnicas, sociais, culturais, intelectuais, físicas, sensoriais e de gênero dos seres humanos. Implica a transformação da cultura, das práticas e das políticas vigentes na escola e nos sistemas de ensino, de modo a garantir o acesso, a participação e a aprendizagem de todos, sem exceção.
Como saber se uma prática pedagógica é, de fato, inclusiva? Ou se uma escola que se diz inclusiva realmente garante o direito de todos à educação?
O Instituto Rodrigo Mendes, parceiro do Instituto Unibanco que tem como foco apoiar redes de ensino a se tornarem mais inclusivas, definiu alguns princípios da educação inclusiva. Esses princípios funcionam como uma importante ferramenta na análise do discurso e das práticas e podem ser usados como referência por educadores e gestores escolares que querem se dedicar a estratégias pedagógicas e práticas de gestão mais inclusivas. Sendo constantemente revisitados, eles podem ajudar também educadores experientes e comprometidos com a inclusão a não “perder o rumo”. Os cinco princípios da educação inclusiva são:
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Toda pessoa tem o direito de acesso à educação.
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Toda pessoa aprende.
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O processo de aprendizagem de cada pessoa é singular.
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O convívio no ambiente escolar comum beneficia todos.
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A educação inclusiva diz respeito a todos.
O Boletim Aprendizagem em Foco: Educação inclusiva, na edição n° 24, de fevereiro de 2017, apresentou outros princípios, elencados pelo estudo Os Benefícios da Educação Inclusiva para Estudantes com e sem Deficiência, lançado em 2016 por Instituto Alana e ABT Associates:
- O convívio entre estudantes com e sem deficiência favorece o desenvolvimento intelectual e emocional de todos.
- Alunos sem deficiência que passaram por classes inclusivas valorizam mais a diversidade e mostram menos preconceito.
Apesar do foco nas pessoas com deficiência, tendo em vista o histórico de privação da participação desse público nas redes de ensino, o termo educação inclusiva pode ser encarado como um conceito amplo de diversidade humana, cujo público-alvo são todas as crianças. Todas, sem exceção. Assim, o quinto princípio do Instituto Rodrigo Mendes norteia os demais e orienta as relações humanas para a construção de uma sociedade mais justa e participativa.
Ainda considerando um conceito amplo de diversidade, o Instituto Rodrigo Mendes criou uma metodologia de análise dos arranjos e situações escolares com foco em barreiras e potencialidades para subsidiar e apoiar a organização de uma ambiência educacional inclusiva. Projetos de educação inclusivos se tornam consistentes e sustentáveis com ações contínuas relacionadas a cada uma das seguintes dimensões: políticas públicas, gestão escolar, estratégias pedagógicas, famílias e parcerias.
A educação inclusiva demanda e envolve a ação direta de diferentes atores e esferas sociais que se relacionam de modo interdependente, numa perspectiva de rede. A Coleção Educação Inclusiva, cuja curadoria foi realizada pelo Instituto Rodrigo Mendes em parceria com o Instituto Unibanco, tem o intuito de provocar reflexões e colaborar para a construção de conhecimento sobre o direito das pessoas com deficiência à educação de qualidade.
BOAS PRÁTICAS DE INCLUSÃO ESCOLAR
Veja nos exemplos a seguir práticas reais que consideram ações contínuas relacionadas às cinco dimensões. Os vídeos mostram projetos realizados nas escolas de Ensino Médio E. Prof. Andronico de Mello e E. E. Prof. Cid Boucault , ambas da rede estadual de São Paulo. Os projetos foram implementados por educadores que participaram do curso Ensino Médio Inclusivo: construindo uma escola para todos, uma formação continuada do Instituto Rodrigo Mendes realizada Conheça também outras práticas pedagógicas e de gestão inclusivas desenvolvidas por educadores do Ensino Médio inclusivo nas escolas E. E. Dr. Genésio de Almeida Moura, E. E. Orosimbo Maia e E. E. Profa. Inah de Mello.
Apesar do consenso de que a participação das pessoas com deficiência é um direito inquestionável, muitos professores e gestores escolares ainda resistem, declarando-se despreparados para concretizá-la. Até mesmo educadores que se dizem favoráveis à inclusão de pessoas com deficiência admitem exceções, alegando não ter o “preparo necessário”. A ideia de que a escola ou o professor precisa antes estar pronto para depois receber estudantes com deficiência é baseada em uma expectativa ilusória de um saber pronto, capaz de prescrever como trabalhar com cada criança. No entanto, o preparo do professor no contexto da educação inclusiva é o resultado da vivência e da interação cotidiana com cada um dos educandos, com e sem deficiência, a partir de uma prática pedagógica dinâmica que reconhece e valoriza as diferenças.
DESENHO UNIVERSAL PARA A APRENDIZAGEM
O conceito do desenho universal surgiu a partir da constatação de que os recursos de acessibilidade destinados a reduzir ou eliminar barreiras no ambiente não beneficiam somente as pessoas com deficiência. Por exemplo, uma rampa não facilita somente a locomoção de uma pessoa que usa cadeira de rodas, mas também de pais e mães que transportam um bebê no carrinho.
O desenho universal prevê que produtos, espaços, meios de comunicação, tecnologias e serviços sejam concebidos de modo a garantir sua utilização pelo maior número de pessoas possível, independentemente de suas características. Um projeto orientado pelo desenho universal considera a diversidade humana, buscando garantir a acessibilidade para todos.
Além de orientar a concepção e o desenvolvimento de espaços físicos e artefatos, o desenho universal também se aplica à educação por meio do desenho universal para a aprendizagem (DUA). O DUA é um conceito que aponta para a necessidade de criar objetivos educacionais, métodos, materiais e avaliações que funcionem com todos – não como uma solução única, mas sim como alternativas de abordagem, ativando diferentes vias de aprendizagem. No artigo “O que é desenho universal para aprendizagem?”, Rodrigo Hübner Mendes afirma que o DUA “se trata de um modelo prático que visa ampliar as oportunidades de desenvolvimento de cada estudante por meio de planejamento pedagógico contínuo, somado ao uso de mídias digitais”.
O DUA pode auxiliar os educadores a desenvolver ou optar por estratégias pedagógicas que possibilitem que todos os estudantes, independentemente de suas características e formas de aprendizagem, aprendam em igualdade de condições.