Promoção do bem-estar é central para garantir aprendizagem em período de distanciamento social
A pandemia da Covid-19 e o necessário distaciamento social trouxeram várias consequências para a educação. A gestão escolar enfrenta, atualmente, uma multiplicidade de desafios, desde o cuidado com as medidas sanitárias até a adaptação ao ensino híbrido e o enfrentamento da evasão. Nesse contexto, o cuidado com o bem-estar psíquico e subjetivo tanto das equipes escolares quanto dos estudantes tornou-se elemento indispensável para a garantia do direito à aprendizagem, haja vista a imensa sobrecarga emocional que sobreveio a toda a comunidade escolar.
Muitos especialistas defendem a necessidade de um projeto político-pedagógico que priorize o desenvolvimento emocional na mesma medida que o acadêmico. McLeod e Fettes, por exemplo, demonstraram em sua pesquisa Trajetórias de Fracasso: o percurso educacional de crianças com questões de saúde mental, a relação direta entre a saúde emocional dos estudantes e seu desempenho escolar. O bem-estar pode afetar tanto a aprendizagem em si quanto os índices de falta e evasão, constituindo um dos campos de ação que devem ser priorizados pela gestão, sobretudo durante crises e emergências.
Para refletir sobre os desafios que a gestão escolar enfrenta para fortalecer subjetividades e apoiar o desenvolvimento de competências socioemocionais de educadores e educandos, o Instituto Unibanco promoveu um webinário sobre a gestão das relações e o bem-estar. Em parceria com o Instituto Singularidades e com a Universidad Diego Portales, do Chile, e com o apoio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM) da Unicamp, o evento contou com a participação de especialistas, gestores e educadores, que refletiram sobre os desafios impostos pela pandemia e quais estratégias foram desenvolvidas para fortalecer as subjetividades das equipes e dos estudantes.
Bem-estar e o direito à aprendizagem
O contexto pandêmico intensificou sobremaneira a carga emocional sobre estudantes, educadores e gestores, de modo que a relação entre o bem-estar e a aprendizagem se demonstrou ainda não central e prioritária nos últimos meses. Contudo, muitas pesquisas já estabeleciam essa relação, como é o caso do trabalho de Alejandro Adler, psicólogo mexicano que há anos advoga por uma educação que compreenda o desenvolvimento humano de maneira integrada, através da conjunção entre educação, bem-estar e habilidades socioemocionais, com foco nos professores.
Na pesquisa que fundamentou sua tese de doutorado, defendida na Universidade da Pensilvânia (EUA), Adler propôs a metodologia da educação positiva, na qual a capacitação dos educadores estaria focada em práticas de bem-estar cujo impacto se estenderia para a saúde emocional tanto de professores quanto de estudantes. A pesquisa realizada no México, no Peru e no Butão alcançou amplo reconhecimento, contribuindo para o desenvolvimento de políticas públicas educacionais nesses três países. O programa desenvolvido pelo psicólogo mexicano inclui uma capacitação para educadores com foco nas seguintes competências: medicação; empatia; autoconhecimento; comunicação; relacionamento interpessoal; manejo das emoções; pensamento criativo; pensamento crítico; tomada de decisão; e resolução de problemas. A proposta é que tais habilidades sejam incorporadas às disciplinas tradicionais, impactando de maneira transversal toda a comunidade escolar.
Os resultados dessa e de outras pesquisas demonstram o impacto do bem-estar tanto nos resultados acadêmicos quanto nos índices educacionais e na convivência. A própria inclusão das capacidades socioemocionais na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) evidencia que esse campo de desenvolvimento pedagógico deve ser cada vez mais explorado nos próximos anos.
Impactos da pandemia na saúde emocional
Ainda que muitas pesquisas já apontassem para os ganhos do desenvolvimento de competências socioemocionais e morais, a atual conjuntura trouxe desafios inesperados, como abordou a pesquisadora Telma Vinha, da Unicamp, durante o webinário:
Nós estamos enfrentando um problema que está em curso, que é complexo e imprevisível. Não temos referência anterior para lidar com esse momento, é um cenário de muita divergência, insegurança e incerteza. Tivemos que nos adaptar em poucos dias, reorganizando espaços e rotinas. Profissionais da educação e famílias tiveram que incluir o cotidiano escolar em seus espaços domésticos. Tudo isso gerou sérias consequências, como o aumento da vulnerabilidade social, das desigualdades, e a perda de rendimentos.”
Telma Vinha destacou como os efeitos da crise afetaram de maneira desproporcional mulheres e pessoas negras, agravando os índices de desigualdade na educação. O contexto de isolamento social provocou também dificuldades de autorregulação e autopercepção, isto é, a capacidade das pessoas de perceber o próprio estado emocional e mediar como se colocam nas relações a partir disso. A convivência intensa entre pessoas do mesmo núcleo familiar em uma conjuntura repleta de inseguranças e perdas agravou a possibilidade de conflitos, problemas relacionais, irritabilidade e estresse constante, levando ao aumento nos índices de consumo de álcool, violência doméstica e divórcios.
A especialista afirmou que mesmo pessoas com competências emocionais plenamente desenvolvidas enfrentam o impacto psicológico e os efeitos da pandemia e do isolamento social, na medida em que a quarentena nos desorganiza emocionalmente, provocando de maneira quase inevitável o abatimento e as oscilações de humor. Um estudo recente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), publicado pela revista The Lancet, revelou que os casos de depressão aumentaram 90% e os relatos de crise de ansiedade e episódios de estresse agudo cresceram substancialmente entre os meses de março e abril de 2020.
Nesse cenário, é imprescindível investigar quais estratégias são possíveis para que gestores promovam o bem-estar em suas comunidades escolares, sobretudo ao considerar as especificidades enfrentadas por crianças e adolescentes durante esse período. Telma Vinha destacou que a quarentena retirou dos estudantes seus espaços de lazer e convívio com os colegas, aumentando sentimentos de não pertencimento, solidão e inabilidade social. É preciso, portanto, desenvolver ferramentas que promovam uma cultura de bem-estar, favorecendo processos de participação e de fortalecimento dos vínculos.
O contexto de incertezas, tanto sanitárias quanto econômicas e políticas, impede que haja uma única solução ou um conjunto de soluções universais para todas as comunidades escolares. Dessa forma, a gestão deve promover o bem-estar de maneira orgânica e transversal, possibilitando a mitigação dos impactos subjetivos da pandemia entre educadores e educandos. Telma Vinha recomenda que os gestores estimulem o sentimento da própria capacidade, a chamada autoeficácia, por meio do desenvolvimento de um ambiente de apoio, valorização e cuidado mútuo.
Essa transformação não acontece através de ações pontuais, de modo que é preciso intencionalidade na criação de espaços de apoio e participação que sejam capazes de alterar a cultura escolar, sendo incorporada de maneira gradual pela comunidade. A criação de espaços participativos específicos – para docentes, funcionários e estudantes – permite canalizar questões e consolida agendas de diálogo institucional, possibilitando encaminhar anseios, compartilhar angústias e deliberar soluções possíveis entre os pares. Envolver os jovens na identificação dos problemas e na deliberação de alternativas contribui para a construção de uma cultura dialógica que promova o bem-estar.
Promovendo uma cultura de bem-estar
A Secretaria de Educação do Ceará desenvolveu ao longo da pandemia diversas estratégias e ações para promover uma cultura de bem-estar na rede, fomentando capacitações de gestores e educadores. Há mais de dez anos, a secretaria desenvolve ações para a promoção de habilidades socioemocionais. De acordo com a educadora Iane Nobre, coordenadora da Gestão Pedagógica do Ensino Médio da secretaria, essa experiência foi fundamental para o desenvolvimento de estratégias durante a pandemia. Iane Nobre participou do webinário promovido pelo Instituto Unibanco e compartilhou como o Ceará lidou com esses desafios:
A gente trabalha com a formação dos professores e elabora também um material com orientações sobre como o educador pode desenvolver as competências socioemocionais dos estudantes. (...) Quando o professor vivencia a metodologia, acontece uma transformação, a gente percebe uma mudança da característica do trabalho que esse professor desenvolve se manifestando na prática pedagógica, em como ele se relaciona com o aluno e como ele pensa a construção do saber. Conseguimos criar uma cultura com os espaços de formação de professores e com o material específico.”
A coordenadora explicou no webinário como o processo é mais profundo do que uma capacitação conteudista. Inicialmente, os professores questionavam como poderiam desenvolver capacidades socioemocionais dos alunos sem ter um espaço que acolhesse suas próprias angústias. A coordenadora destacou que o processo formativo foca no desenvolvimento das competências dos educadores, fortalecendo ferramentas de autocuidado, autoconhecimento, e possibilitando espaços que valorizem sua atuação. As consequências pedagógicas são imediatas, uma vez que transbordam para a relação educador-educando:
Ao longo dos anos, percebemos que os educadores questionavam como poderiam trabalhar as competências dos alunos sem trabalhar as próprias. A gente entende hoje que é necessária uma transformação da mentalidade do professor, a metodologia acaba se tornando uma consequência da mudança do professor, como o autocuidado, o autoconhecimento e a valorização da sua atuação.”
A experiência do Ceará demonstra como a formação para o cuidado e a incorporação do bem-estar no currículo é um processo contínuo. Se durante a pandemia os desafios à saúde emocional de estudantes e professores se agravaram, com a sobrecarga subjetiva do isolamento, a necessidade de desenvolver competências socioemocionais se tornaram mais urgentes do que nunca. A criação de espaços participativos e de formações continuadas e a promoção de uma cultura de bem-estar transversal podem não apenas mitigar os efeitos da atual crise como também fortalecer o acesso e a garantia do direito à aprendizagem.