Equidade

Covid-19: comunicação é chave para mitigar abandono

Em 2020, a comunidade internacional enfrenta uma das maiores crises sanitárias dos últimos 100 anos. Declarada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março deste ano, a covid-19 possui altas taxas de contágio e letalidade, e a única forma de contê-la é a adoção de medidas de distanciamento social, fechando os espaços de convivência coletiva e restringindo a circulação de pessoas. O impacto na educação está sendo observado em quase todo o mundo. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que somente na América Latina e Caribe mais de 154 milhões de crianças, cerca de 95% dos estudantes matriculados, estejam temporariamente fora da escola devido à covid-19.

Especialistas consideram que, até o desenvolvimento de um tratamento adequado, como vacinas e medicamentos apropriados e devidamente testados, é muito provável que, mesmo quando retomadas, muitas medidas de precaução deverão ser instituídas. O fechamento de escolas pode perdurar por meses ainda, trazendo desafios sem precedentes para as comunidades escolares. O risco de abandono durante o ano letivo e evasão na transição para o período seguinte é ainda maior nesse contexto, principalmente ao se considerar outras variáveis, como as diversas vulnerabilidades socioeconômicas enfrentadas pelas famílias brasileiras.

O que experiências anteriores mostram?

Interrupções forçadas do funcionamento escolar e seus efeitos nos índices de abandono e evasão não são variáveis inéditas, a despeito da proporção sem precedentes que temos observado no caso da atual pandemia. Nesse sentido, é crucial observar o que experiências passadas, como pandemias e desastres naturais, têm para contribuir em termos de boas práticas e aprendizados. Mudanças climáticas, ciclones, terremotos e outros desastres naturais, por exemplo, possuem um impacto médio de 20% de redução nas taxas de matrículas, bem como de diminuição de mais 20% na probabilidade de conclusão do curso. Em relação a pandemias, especificamente, alguns estudos mostram redução considerável na frequência escolar e aumento nos índices de evasão.

De maneira geral, a questão que pode ser explorada a fim de construir respostas e estratégias de curto, médio e longo prazo relaciona-se com o impacto que experiências coletivas traumáticas possuem ou podem possuir nos índices de evasão escolar. A compreensão e leitura de situações passadas, bem como o posicionamento de organismos internacionais e o histórico de boas práticas já em curso em nosso país, são elementos cruciais para o desenho de estratégias de gestão compreensivas e eficazes, que tenham capacidade de mitigar os efeitos da atual crise.

De acordo com nota técnica divulgada pelo Todos Pela Educação, a experiência de redes escolares, de diferentes países e regiões, que passaram por longos períodos de interrupção forçada demonstra que os efeitos serão não apenas múltiplos, como duradouros e transversais à comunidade escolar, afetando famílias, estudantes e profissionais da educação. Mesmo com ações estratégicas de mitigação, impactos cognitivos, físicos e emocionais de longo prazo devem ser esperados, afetando não apenas os índices de aprendizagem, mas principalmente o engajamento dos estudantes, com aumento nos índices de evasão e abandono.

A atual crise sanitária afetará as famílias em situação mais vulnerável de maneira transversal, seja lidando com a perda de entes queridos, seja com as consequências econômicas e sociais da atual conjuntura. Desse modo, a perda de renda, o aumento da pobreza e a supressão de espaços de sociabilidade tornam este um evento traumático de grande dimensão, afetando o desenvolvimento emocional e cognitivo de toda uma geração de crianças e adolescentes. O desinteresse e desengajamento dos estudantes neste período precisa ser avaliado de maneira holística, considerando os aspectos subjetivos, psicológicos, sociais, materiais, sanitários e emocionais que podem afetar a relação do jovem com a escola.

Ao analisar situações análogas à atual crise, o Todos Pela Educação recomenda fortemente a atuação intersetorial, uma vez que experiências passadas indicam que apenas uma ação estratégica associada entre educação, saúde e assistência social é capaz de responder de maneira eficaz aos atuais desafios. A evasão e o abandono serão ainda mais influenciados por fatores socioeconômicos, de modo que são ainda mais necessárias políticas públicas integradas, capazes de fomentar o engajamento estudantil através do aumento da malha da assistência social e da saúde pública.

Os aspectos econômicos da atual crise preveem um impacto direto na renda das famílias, influenciando diretamente o número de jovens fora da escola. O Banco Mundial há anos aponta a renda como um aspecto central no engajamento de estudantes e nos índices de evasão. Segundo dados da organização, jovens de 15 a 25 anos cujas famílias sofreram queda na renda possuem 2,3% mais chances de abandonar os estudos. A partir dos 17 anos, a relação entre a redução da renda e o abandono escolar são ainda mais evidentes; ao considerar apenas os estudantes que têm 18 anos, esse percentual sobe para 4,5%. Entre os jovens de 18 anos que não tiveram sua renda impactada, a taxa de abandono ficou pouco acima dos 30%; já entre aqueles cujas famílias apresentaram cortes em seus orçamentos, a taxa atingiu quase 40%.

Além dos aspectos econômicos, ocasionados pelo desemprego e pela perda de renda das famílias em situação de maior vulnerabilidade, experiências de distanciamento social agravam também os índices de violência doméstica e de gênero. Em todo o mundo, e também no Brasil, crescem os números de denúncias e relatos de violência contra mulheres e crianças, fator intimamente ligado à evasão, ao abandono escolar e às consequências psicossociais da pandemia.

Os impactos psicológicos, sociais e econômicos da crise se coadunam às desigualdades estruturais preexistentes, agravando a vulnerabilidade de grupos historicamente mais propensos à evasão, como pessoas pobres, negras e mulheres. De acordo com estudo feito por Reynaldo Fernandes com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Educação (MEC), jovens de baixa renda, em sua maioria negros, forçados precocemente ao mercado de trabalho ou que engravidam já na adolescência, formam o grupo de maior risco à evasão. Fernandes aponta ainda que esses fatores “externos” à atividade propriamente escolar se articulam a um processo contínuo de desinteresse e desengajamento, levando por fim ao abandono.

As evidências atuais sobre as taxas de letalidade e contágio da covid-19 demonstram, igualmente, que as desigualdades raciais operam de maneira transversal, afetando todas as esferas da vida das pessoas negras. Em São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil, a probabilidade de uma pessoa negra morrer em razão da covid-19 é 62% maior que a de uma pessoa branca. Perdas na família são eventos de ordem traumática não apenas subjetiva mas também socioeconômica, afetando diretamente a permanência de crianças e adolescentes na escola. Tal como apontado por Fernandes, ao analisar marcadores sociais da diferença, é inegável sua relação direta com as condições materiais que estudantes possuem para manter seu interesse e engajamento no processo de aprendizagem. Para desenhar uma estratégia de atuação eficaz de enfrentamento da evasão e do abandono, é imprescindível considerar o impacto desigual sofrido por famílias, crianças e adolescentes negros durante a pandemia.

Buscando estratégias de mitigação

Como vimos, a evasão é motivada por causas diversas, demandando, por conseguinte, diferentes políticas públicas implementadas de maneira articulada. Além das questões emocionais e socioeconômicas, já analisadas, a perda de motivação com a aprendizagem é igualmente crucial. O afastamento do ambiente escolar e o menor engajamento que o ensino remoto possibilita está entre os fatores que contribuem para o maior desinteresse de crianças e jovens neste período.

Uma forma de mitigação desses efeitos que contribuem para a evasão é o reforço de ações de comunicação, permitindo o contato direto e reiterado entre escolas, famílias e estudantes durante e pós-pandemia. Muitas são as estratégias desenvolvidas nesse sentido por gestores e educadores brasileiros a fim de responder aos desafios da evasão em nosso país. Essas experiências conformam um verdadeiro portfólio de boas práticas que tem sido fundamental neste momento de interrupção das atividades presenciais.

No Ceará, são diversas as iniciativas que desenvolveram metodologias de busca ativa dos estudantes faltosos, como é o caso da experiência da gestora Maria do Socorro Nogueira de Paula, diretora do Liceu do Conjunto Ceará. Em 2008, o índice de evasão da escola era de 10,5%, um dos piores do estado. A gestora então passou a se engajar cada vez mais nessa questão, realizando pessoalmente as chamadas, convocando os colegas de turma para contatar estudantes faltosos, ligando para as famílias e, por fim, realizando visitas presenciais. Em suas palavras:
“Eu percebi a necessidade de um reforço a mais, pois as ligações não estavam sendo suficientes. Eu passei a ir às casas dos alunos. Por que eu fiz questão de ir? Pois, ao realizar as ligações, eu percebi a importância do contato da direção, muitas vezes eu ouvia a mãe dizer: ‘É a diretora da escola’. Quando eu percebi essa importância, comecei a ir às casas. Em 2008, nosso índice de abandono era de 10,5%; em 2015 foi um dos mais baixos do estado, 2,9%. É um trabalho árduo, o gestor já tem muitas funções na escola, mas ir à casa do aluno se torna a mais importante. Eu sei que nunca vou ter um índice zero, mas trabalho para isso, para não perder nenhum aluno. ”

A estratégia desenvolvida pela gestora no Ceará é um exemplo de boa prática que pode ser adaptada para a atual conjuntura, como é o caso das ações que estão sendo desenvolvidas no momento no colégio Hesíchia de Sousa Brito, em Piracuruca, no Piauí. O diretor José Idelson Escorcio relata como a metodologia de ensino remoto tem sido utilizada para estimular os estudantes, a fim de manter seu interesse e engajamento, levando em consideração sobretudo as diferentes realidades socioeconômicas do corpo estudantil:

“Para os alunos que não têm acesso às redes sociais, nós elaboramos um material apostilado. Nós levamos essa apostila em casa. Nosso objetivo principal é que nossos alunos não venham a se dispersar, que esse tempo em que estão afastados da escola não seja motivo que venha gerar uma falta de estímulo e eles venham a evadir. Os alunos estão empolgados, felizes, eles se sentem valorizados. Através de mensagens por WhatsApp, nós temos um canal aberto de comunicação com os pais. Nós ligamos para saber o que está acontecendo, quantas horas o filho está no celular estudando. O pai, a família, é o segundo elo da escola nesse momento. ”

Conheça a experiência do diretor José Idelson Escorcio de Brito, do colégio Hesíchia de Sousa Brito, em Piracuruca, no Piauí, acessando a página do Instituto Unibanco.

Manter os índices de aprendizagem é crucial neste momento, mas o que experiências passadas indicam é que o desenvolvimento de competências emocionais é ainda mais crucial para evitar que a evasão aumente substancialmente no período de retorno às atividades presenciais. Desse modo, a estratégia do diretor piauiense demonstra que, além de assegurar que todos os estudantes recebam apoio no estudo remoto, seja de maneira virtual, seja com a entrega de apostilas, a gestão escolar está preocupada em manter o vínculo afetivo do estudante e de sua família com a escola.

O combate à evasão, sobretudo em um contexto de trauma coletivo, perpassa necessariamente o desenvolvimento das chamadas competências socioemocionais, previstas de forma transversal na Base Nacional Comum Curricular. Essas competências, como a resiliência, a adaptabilidade, a confiança e a tolerância ao estresse e à frustração, são fundamentais para que os estudantes possam atravessar as inevitáveis perdas deste período, mantendo seu interesse e sua relação com a escola. O investimento no seu desenvolvimento no período de interrupção e também no retorno às atividades é crucial para o acolhimento efetivo dos estudantes, promovendo o engajamento com o espaço escolar.

Muitas são as estratégias que podem contribuir para o engajamento dos alunos, combatendo a evasão e o abandono. Contudo, de maneira transversal, a comunicação é apontada como fator central nesse processo. Uma vez suspensas as atividades presenciais, são ações de comunicação, virtuais ou não, que podem realizar a manutenção do vínculo das famílias e dos estudantes com a escola. Esse vínculo é fundamental para o engajamento, e sua manutenção pode inclusive contribuir para o desenvolvimento das competências socioemocionais essenciais para o enfrentamento da atual crise. Ações de busca ativa no retorno das aulas e estratégias de envolvimento das famílias sem acesso à internet são centrais para que as desigualdades socioeconômicas não se agravem ainda mais neste contexto.

Em uma crise com proporções sem precedentes, os diagnósticos realizados pelos especialistas, gestores e educadores apontam para um curso de ação intersetorial, integrada e que considere as diferentes realidades de nosso país. Em suma, trata-se de adequar estratégias já mapeadas no próprio contexto brasileiro, com ênfase em uma compreensão processual da aprendizagem e na função social da educação.