Equidade

Enem 2020: Covid-19 evidencia desigualdades

Publicado em 15 de junho de 2020
Atualizado em 9 de julho de 2020


O  Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgaram nesta quarta-feira, 8 de julho, as novas datas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020. As provas impressas serão aplicadas nos dias 17 e 24 de janeiro de 2021, enquanto a versão digital está marcada para 31 de janeiro e 7 de fevereiro. Os resultados serão divulgado a partir de 29 de março. 

A decisão contraria o resultado da enquete realizada com os inscritos confirmados, na qual 50% votaram que a prova fosse realizada em maio de 2021. Segundo representantes do MEC, além da enquete, a decisão levou em conta opinião dos secretários estaduais de Educação e instituições de ensino superior. Dos 5,8 milhões de candidatos confirmados para o Enem, 1,1 milhão participaram da enquete (19% dos inscritos confirmados).

Principal porta de entrada para as universidades públicas e privadas no Brasil, o Enem foi adiado em resposta à pressão de diversos setores da sociedade, entre eles o Congresso Nacional, a Defensoria Pública, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), a Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave) e movimentos da sociedade civil, como o Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O principal argumento dos segmentos que defenderam o adiamento foi tentar reduzir a desigualdade educacional, exacerbada no contexto de isolamento social. As diferentes realidades socioeconômicas dos candidatos da avaliação impõem desafios especialmente quanto às possibilidades de acesso à internet e às condições de estudo em casa.

Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, realizado com base no perfil de participantes do Enem 2018, 34% dos estudantes da rede pública que prestaram a prova naquele ano não tinham acesso à internet. Entre os alunos da rede privada, a parcela desprovida deste acesso era de apenas 3,7%. O estudo usou os dados mais recentes disponíveis e constatou, ainda, que a desigualdade aumenta quando se observam recortes de renda e raça.

Os inscritos no Enem 2020 tinham três opções de datas para votar, distribuídas entre os meses de dezembro deste ano, janeiro ou maio de 2021, considerando o adiamento das provas em 30, 60 ou 180 dias das datas previstas em edital. A enquete ocorreu entre os dias 20 e 30 de junho.

Posta a vitória do adiamento do Enem, que gerou desgastes e desperdício de recursos e poderia ter sido decidido de maneira natural como em outros países, o MEC e o Inep não têm fornecido orientações e apoio aos estados sobre como endereçar as necessidades dos alunos que se preparam para o exame. Os estados já implementaram diferentes soluções de ensino remoto, mas ainda enfrentam dificuldades, sobretudo para os estudantes do último ano do ensino médio. Algumas redes, como as de São Paulo e do Maranhão, têm planejado, por exemplo, a realização de um 4º ano para os alunos que iriam concluir a etapa em 2020.

Do lado do ensino superior, a pasta da Educação tampouco se pronunciou sobre os ajustes necessários nos calendários dos vestibulares e no processo de admissão de alunos para 2021.

Em posicionamento datado de 22 de maio, a organização Todos pela Educação pontua que a resolução do governo federal de postergar o Enem foi tardia e incompleta. Segundo a organização, não foram apresentados nem as condições nem os critérios utilizados para a definição do período proposto ao adiamento. “Esse é um aspecto relevante, uma vez que o cenário é dinâmico e, infelizmente, não é possível assegurar que o prazo de 30 a 60 dias a partir de novembro será suficiente, sendo a fixação desse intervalo prematura.”

A organização também defende a reabertura das inscrições que, por serem feitas on-line, podem ter segregado os estudantes sem acesso à internet. Outro pleito é que a escuta que o governo federal fará para definir a nova data do Enem abranja gestores públicos, especialistas e os estudantes que não puderam se inscrever e desejam fazê-lo, além daqueles já inscritos. Na imprensa, diferentes vozes cogitam uma miríade de formas de condução do assunto, que vão de mudanças de formato à não remarcação da data antes da reabertura das escolas, mas sobressai a ideia de que a decisão se baseie em um amplo diálogo.

“O Enem não é do MEC. O Enem não é do Inep. O Enem é do Brasil, é dos estudantes brasileiros. Ao Inep e ao MEC cabem planejar e executar um bom e seguro Enem. Mas o Enem é da sociedade brasileira e é isso que precisa ser entendido”, alertou João Marcelo Borges, diretor de estratégia política do Todos pela Educação em entrevista, em maio, ao portal MyNews.

Em entrevista ao portal MyNews, João Marcelo Borges, diretor de estratégia política do Todos pela Educação, fala das justificativas e consequências do adiamento do Enem.

Na ocasião do adiamento, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação também se manifestou, afirmando que a consulta “não contempla o debate que deve ser feito por todos os atores governamentais e não governamentais, alocando nos inscritos uma responsabilidade que deveria ser compartilhada pelos vários entes envolvidos no direito à educação, visando a melhor solução”.

Avaliação e democratização
Criado em 1998, o Enem nasceu com o objetivo de avaliar estudantes do ensino médio nas escolas públicas e particulares brasileiras. Em 2009, seu resultado começou a valer como critério de ingresso no ensino superior. Articulado desde então com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e também conjugado à Lei de Cotas em 2012, o Enem passou a figurar como um dos principais elementos das políticas de democratização do acesso ao ensino superior gratuito.

O Enem é administrado sem custo para os estudantes de baixa renda. Para os pagantes, sua taxa de inscrição é considerada relativamente baixa – R$ 85 para a prova deste ano. Além disso, o exame é aplicado nacionalmente, minimizando o gasto do participante com deslocamento. São variáveis que importam muito em um país como o Brasil, marcado pela desigualdade em várias frentes.

O último informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), evidencia a íntima relação entre pobreza e raça e o direito à educação. Lançado no fim de 2019, com base em dados do ano anterior, o documento apontou uma taxa de conclusão do ensino médio para a população branca de 76,8% em 2018, enquanto a da população preta ou parda, embora venha aumentando, foi de 61,8%.

Quando a análise enfocou as pessoas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola, revelou uma situação emblemática: os jovens pretos ou pardos no quinto da população de menor renda domiciliar per capita encontravam-se na pior condição, com 42,6% fora da escola, ante a 37,4% dos brancos.

Futuro em jogo

O prazo de inscrição para o Enem 2020 terminou em 27 de maio, com 6,1 milhões de inscritos. Deste total, 65% concluíram o ensino médio em anos anteriores, 23% são concluintes e 12% são “treineiros” (alunos do primeiro ou segundo ano do ensino médio). Entre os 1,4 milhão de concluintes (último ano do ensino médio), 81,7% estudam na rede pública de ensino. Do ponto de vista de perfil socioeconômico, 78% dos inscritos não precisaram pagar taxa de inscrição, seguindo critérios de isenção previstos no edital do exame.

O MEC ainda não divulgou dados sobre o perfil dos participantes do Enem 2020 em relação à raça. Em 2019, 59,1% dos candidatos se autodeclararam pardos (46,6%) ou pretos (12,7%), seguidos por brancos (36%), amarelos (2,3%) e indígenas (0,6%). Ainda naquele ano, 2% dos candidatos não responderam à pergunta.

A falta de condições adequadas de estudo e as estratégias que os negros e pobres estão adotando para contornar a situação têm sido alvo constante da cobertura da mídia. Em outras pautas, como uma matéria da página especial sobre a Covid-19 no site do Instituto Unibanco, o enfoque recai sobre como as escolas estão apoiando os alunos na preparação para o Enem e dicas de como estudar em tempos de pandemia.

Neste contexto, os estudantes continuam mobilizados. Depois de defenderem o adiamento, eles agora pressionam para que as aulas preparatórias para a prova sejam transmitidas por grandes emissoras de televisão. O abaixo-assinado “Queremos aulas para o Enem nas maiores emissoras de TV Aberta do país!” já conta com mais de 80 mil assinaturas. Sabrina Gonçalves, estudante que criou a petição, expressa o sentimento de frustração que atinge parte dos estudantes: “Minha maior motivação para criar esse abaixo-assinado é um amigo que não possui acesso à internet. Quantos jovens estão na mesma situação que ele? Isso não é justo! Os alunos da rede privada ou com acesso à tecnologia estarão mais capacitados para essas provas”.

Além de lançar incertezas sobre o futuro dos 6,1 milhões de inscritos, as indefinições em torno do Enem 2020 devido à Covid-19 ofuscam a trajetória incipiente de ampliação do acesso ao ensino superior pela população negra e mais pobre, que depende intrinsecamente da oferta de ensino público no Brasil.

Para o bem de todos os alunos, especialistas têm apontado a necessidade de o MEC coordenar com as instituições públicas e privadas de ensino superior formas de garantir que o adiamento do exame não afete o fluxo de ingresso dos alunos no ensino superior no próximo ano.

“Só o MEC pode fazer essa coordenação porque, na distribuição de atribuições da educação, ao MEC compete coordenar a política de educação nacional, mas, em particular, a educação superior”, alertou João Marcelo Borges, do Todos pela Educação. “Isso é muito importante, senão a gente vai ter alunos que são aprovados no Enem, mas que não conseguem ingressar no ensino superior. Isso, para as redes públicas, é ruim; para os alunos, é ruim; e para as universidades e faculdades particulares também, porque elas perdem alunos, perdem renda.”

Enquanto isso, no exterior...
O imbróglio do adiamento dos exames de admissão nacionais ao ensino superior por causa da Covid-19 é alvo de grande preocupação nos Estados Unidos. O teste do ACT, que deveria ter sido realizado em abril, foi remarcado para 13 de junho, mas pode ser cancelado “a qualquer momento”, avisa o site dos organizadores. Já o SAT, que cancelara as provas de março, maio e junho, reabriu inscrições para exames a partir de agosto.

Em paralelo, cerca de cem universidades norte-americanas anunciaram que abrirão mão dos testes de admissão de larga escala em 2020-2021 devido à pandemia. A decisão fortalece a crescente tendência, naquele país, das escolas “test-optional”, que selecionam os alunos basicamente a partir do histórico escolar.

A fim de reduzir o estresse causado pela Covid-19 sobre os estudantes que pretendem ingressar no ensino superior, a organização College Board, responsável pela aplicação do SAT, publicou um comunicado no dia 2 de junho.

A nota pede às universidades que sejam flexíveis no próximo ciclo de admissões adotando três medidas: 1) extensão de prazos para o envio dos resultados dos testes pelos alunos; 2) oferta de tratamento equitativo para alunos que realizaram os exames e para os que não realizaram; e 3) a ponderação do resultado dos alunos que só puderam realizar o teste uma vez, como é o caso dos treineiros.

Na Europa, países como Espanha, Irlanda e Polônia adiaram seus exames nacionais de admissão ao ensino superior. Noutra direção, nações como França e Reino Unido foram mais para o caminho do cancelamento das avaliações, substituindo-as pela análise do desempenho do aluno ao longo do último ano e do ensino médio.

Segundo pesquisa realizada junto a mais de cem países pela Associação Internacional de Universidades (IAU, na sigla em inglês), 78% dos respondentes acreditam que a pandemia vai afetar o número de matrículas para o novo ano letivo do ensino superior. Quase metade (46%) supõe que o impacto afetará estudantes internacionais e locais. Algumas faculdades, sobretudo as privadas, anteveem que esse impacto terá consequências financeiras negativas a elas. O levantamento ouviu 576 profissionais de 424 instituições de ensino superior.

Mergulhando um pouco mais no Enem
Confira alguns textos que selecionamos do Cedoc do Observatório de Educação para ajudar a aprofundar os conhecimentos sobre o Enem e sua relação com a equidade.

Igualdade de oportunidades: analisando o papel das circunstâncias no desempenho do Enem (2014)
Artigo de Erik Figueirêdo, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e outros pesquisadores
O texto avalia como as circunstâncias sociais influenciam o desempenho educacional dos alunos que prestam o Enem. Uma das conclusões é que a escolaridade da mãe tem efeito 2,36 vezes maior do que efeitos diretos como interesse e esforço do aluno.

Enem: limites e possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolar (2013)
Tese de doutorado apresentada por Rodrigo Travitzki à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)
O estudo reflete sobre o uso do Enem como peça central na política brasileira de accountability escolar e como instrumento de avaliação da qualidade escolar, entre outros pontos pela questão das desigualdades sociais.