O ensino remoto e as lições à vista
O fechamento das escolas brasileiras em meados de março devido à pandemia de Covid-19 obrigou secretarias estaduais e municipais de Educação a elaborar e implementar soluções de ensino remoto de maneira emergencial.
As ações de contingência, adotadas em diferentes velocidades – com entes federados ainda retomando aulas neste momento, após períodos de recesso ou férias –, tentam garantir o mínimo de continuidade de atividades escolares, preservando o possível no processo de ensino e aprendizagem dos estudantes em todo o país.
Ultrapassada esta primeira fase, na qual se viu uma grande profusão de iniciativas, é necessário olhar com mais atenção para as soluções adotadas e refletir sobre como aprimorá-las para atender melhor aos estudantes. Também vale a pena identificar oportunidades que a situação emergencial pode ter gerado.
Além disso, o avanço da curva de contágio da Covid-19 em direção ao segundo semestre, aliado ao fato de que ainda inexiste uma vacina que controle a propagação da doença, torna prudente considerar que a retomada das aulas presenciais nas escolas brasileiras pode não se dar tão cedo assim. E, como já aventado fora do Brasil, o ensino remoto pode se tornar um ponto de apoio à reabertura das escolas, viabilizando o rodízio de turmas menores de alunos em aulas presenciais, o que reforça a noção de que é preciso aprimorá-lo.
CONCEITOS E NORMAS
Como o desafio imposto pela pandemia à educação formal é global, pesquisadores retomaram as discussões sobre ensino a distância e buscaram caracterizar de maneira aprofundada a situação vivida por todos os sistemas educacionais, visando contribuir para o entendimento e a tomada de decisão por parte dos gestores.
Em um dos textos mais referenciados, publicado na revista acadêmica Educause Review, Charles Hodges, da Georgia Southern University (Estados Unidos), e outros autores conceituam o termo ensino remoto de emergência (tradução livre):
O ensino remoto de emergência é uma mudança temporária da entrega de instruções para um modo de entrega alternativo devido a circunstâncias de crise. Envolve o uso de soluções de ensino totalmente remotas para instrução ou educação que, de outra forma, seriam ministradas pessoalmente ou como cursos combinados ou híbridos e que retornarão a esse formato assim que a crise ou emergência tiver diminuído.
Hodges e os demais especialistas que assinam o artigo apontam que o ensino remoto de emergência não pode ser confundido com Educação a Distância (EaD), que resulta de um design e planejamento instrucionais cuidadosos, usando um modelo sistemático de design e desenvolvimento.
No Brasil, o recém-publicado Parecer CNE 05/2020, do Conselho Nacional de Educação, enfoca a reorganização do calendário escolar em razão da pandemia e contempla a realização de atividades não presenciais como possibilidade de apoiar o cumprimento da carga horária mínima anual das diferentes séries escolares. Adotada excepcionalmente, em uma situação que “não encontra precedentes na história mundial do pós-guerra”, a medida complementa a opção clássica de reposição da carga horária ao fim do período de emergência e é apresentada junto a algumas expectativas:
Cabe salientar que a realização das atividades pedagógicas não presenciais não se caracteriza pela mera substituição das aulas presenciais, e sim pelo uso de práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação que possibilitem o desenvolvimento de objetivos de aprendizagem e habilidades previstas na BNCC [Base Nacional Comum Curricular], currículos e propostas pedagógicas passíveis de serem alcançados através destas práticas.
DIFERENTES MODALIDADES DE ENSINO REMOTO
O Parecer CNE 05/2020 estabelece que as atividades pedagógicas não presenciais podem acontecer por meios digitais (videoaulas, conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem, redes sociais, e-mail, blogs etc.); via programas de TV ou rádio; pela distribuição de material didático físico aos alunos para o momento de isolamento; e pela orientação de leituras, projetos, pesquisas, exercícios e outras atividades.
Como contribuição ao tema, o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), organização sem fins lucrativos que desenvolve projetos para adoção de tecnologias digitais em redes públicas de ensino, criou a ferramenta Seleção de Estratégias de Aprendizagem Remota. O instrumento é um questionário de acesso livre que auxilia gestores públicos a escolher as estratégias mais apropriadas à sua rede. A ferramenta leva em consideração a realidade local, a infraestrutura, a conectividade, os conhecimentos técnicos dos atores e a mobilização da comunidade escolar.
Após o preenchimento, o gestor recebe uma indicação detalhada de caminhos a seguir. No total, o Cieb sistematizou sete possíveis estratégias de aprendizagem remota que dialogam diretamente com a proposta de atividades pedagógicas não presenciais contida no parecer do CNE. O Cieb analisou as estratégias, uma a uma, do ponto de vista das condições necessárias à implementação, potencialidades, desafios, formas de aplicar e pontos de atenção.
O trabalho do Cieb em apoio às redes de ensino na crise sanitária da Covid-19 contou com a parceria do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e da Fundação Lemann.
Vale mencionar que, a fim de oferecer acompanhamento em tempo real das ações de ensino remoto das redes estaduais durante a pandemia, o Consed colocou no ar a página Consed.info. Entre outros assuntos, o site reúne muitos exemplos de experiências de ensino remoto, bem como informações sobre monitoramento e regulamentações e uma seção voltada apenas ao ensino médio.
ALGUMAS SOLUÇÕES BRASILEIRAS
Entre as múltiplas iniciativas em andamento no Brasil, o Observatório de Educação fez um levantamento dos formatos de ensino remoto utilizados em alguns estados apontados como referência nesta linha de trabalho.
Amazonas
O Estado do Amazonas implantou, entre outras ações, o projeto Aula em Casa, com aulas para alunos do ensino fundamental e médio veiculadas em canais de TV aberta ou app. A grade de horários para cada etapa de ensino é publicada no site da Secretaria de Educação. As aulas podem ser acessadas, ainda, via YouTube e pelos portais AVA e Saber+. Os dois últimos também disponibilizam material pedagógico para alunos e um formulário on-line para avaliação. O Amazonas é o precursor na criação, em 2007, de um Centro de Mídias para ensino remoto no Brasil. A experiência foi pensada para levar a educação aos lugares mais longínquos do maior estado brasileiro, beneficiando crianças indígenas, de comunidades ribeirinhas e da zona rural. Sua proposta inspirou a criação de organismos similares em outras regiões, como o Centro de Mídias SP (CMSP).
Ceará
O Ceará disponibilizou canais digitais de interação professor-aluno e estabeleceu parceria com a plataforma Google Classroom. O estado determinou que cada escola organizasse suas atividades por meio da elaboração de um Plano de Atividades Domiciliares. Para isso, produziu um documento orientativo voltado aos gestores, indicou recursos educacionais on-line – como o portal Khan Academy – e criou a Conexão Seduc, um site de caráter formativo e de troca para educadores. A página traz uma programação on-line com palestras, debates com especialistas e possibilidades de interação entre professores e gestores. A grade de lives inclui programação para alunos.
Mato Grosso do Sul
O Mato Grosso do Sul adotou a Plataforma Protagonismo Digital, que já existia desde 2017, para oferecer material didático para alunos e planos de aula para professores. No fim de abril, fez parceria com a Google Education para centralizar o formato de aulas on-line oferecidas pelos professores. Segundo dados da Secretaria de Educação, 98,08% dos estudantes da rede estão contemplados no ensino remoto, sendo 44,18% atendidos exclusivamente por intermédio dos recursos tecnológicos, 46,87% por recursos tecnológicos e material impresso e 7,03% somente com materiais impressos.
São Paulo
Com cerca de 3,5 milhões de alunos, a rede de educação paulista acaba de criar o Centro de Mídias SP (CMSP), plataforma que opera como ponto focal do ensino remoto durante a pandemia. Dotado de site e aplicativo, o CMSP produz e transmite aulas diárias ao vivo dentro de uma programação semanal. As aulas também podem ser assistidas por TV aberta e pelo YouTube e os conteúdos apresentados ficam à disposição para consulta posterior. Para democratizar o acesso aos recursos da plataforma, o sinal de internet para uso do app por professores e alunos é coberto pela Secretaria da Educação (Seduc). A Seduc-SP também produziu e distribuiu material didático específico para apoiar sua metodologia de ensino remoto, que foi integralmente sistematizada e colocada à disposição no CMSP. Para enriquecer sua programação, o CMSP firmou parceria de intercâmbio de conteúdos com o Centro de Mídias do Amazonas.
DIFICULDADES VERSUS OPORTUNIDADES
É fato que o período da pandemia, com a necessidade de as escolas adotarem o ensino remoto da noite para o dia, encerra muitas dificuldades. Em uma escuta recente, realizada com mais de 700 profissionais de ensino durante um webinar promovido pela ONG Todos pela Educação, rapidamente se construiu uma nuvem de tags de desafios, a começar pela educação infantil, tecnologia, aulas remotas, acesso à internet, avaliação, equidade, aprendizagem, comunicação...
Com relação ao acesso, em 12 de maio último, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) divulgou um alerta sobre a necessidade de o Brasil garantir acesso livre à internet para famílias e crianças vulneráveis na resposta à Covid-19. Dados da pesquisa TIC Kids Online 2019 antecipados ao Unicef indicam que 4,8 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos – 17% da população nesta faixa etária – vivem em domicílios sem acesso à internet no Brasil.
Realizada pelo Cetic.br/NIC.br, a pesquisa colheu informações entre outubro de 2019 e março de 2020. O estudo também revela que 11% da população na faixa etária de 9 a 17 anos não é usuária de internet, não tendo acessado a rede em casa nem em outros lugares nos três meses anteriores à entrevista. A exclusão é maior entre crianças e adolescentes que vivem em áreas rurais (25%), nas regiões Norte e Nordeste (21%) e em domicílios das classes D e E (20%).
“As meninas e os meninos sem acesso à internet em casa são aqueles que mais sofrerão os impactos sociais da pandemia, incluindo o aumento da desigualdade no acesso a direitos fundamentais, como educação, saúde, proteção e participação”, salientou Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil, em nota à imprensa.
Mas também é verdade que, por trás das dificuldades, existem sempre oportunidades.
A situação de crise revelou a capacidade de resposta dos estados mencionados – e de outros também, assim como de municípios – na tentativa de garantir que os alunos não sejam prejudicados em seu aprendizado. Porém, como ressalta a nota técnica preparada pelo Todos pela Educação para o tema, é preciso ter em mente que ensino remoto não é sinônimo de aula on-line: “Há diferentes maneiras de estimular a aprendizagem a distância e, se bem estruturadas, atividades educacionais podem cumprir mais do que uma função puramente acadêmica”.
A nota técnica defende que é fundamental diversificar as experiências de aprendizagem, “que podem, inclusive, apoiar na criação de uma rotina positiva que oferece a crianças e jovens alguma estabilidade frente ao cenário de muitas mudanças”. Pontua, ainda, que, mesmo a distância, a atuação do professor é central no sentido de assegurar uma boa experiência aos alunos, por isso é fundamental apoiá-los pessoal e profissionalmente, para que desempenhem melhor sua função.
Nesta mesma direção, considerando a imprevisibilidade quanto ao período de isolamento social – em 12 de maio, uma portaria do Ministério da Educação prorrogou mais uma vez a suspensão das aulas no Brasil até pelo menos 15 de junho –, outros especialistas, como Helena Singer, acreditam que é preciso haver uma mudança de olhar por parte dos gestores públicos e escolares no sentido de não focar apenas no conteúdo a ser dado, mas principalmente no cuidado com os vínculos; na escuta atenta aos professores, que estão muito mais expostos a questionamentos e com menor poder de decisão em razão da falta de aulas presenciais; na escuta atenta aos alunos e no estímulo ao seu protagonismo nas atividades propostas; e na troca de experiências/práticas entre professores e gestores escolares.
Linda Darling-Hammond, pesquisadora de Stanford, segue uma linha semelhante em texto recém-publicado. Entre as principais ações que as políticas educacionais precisam adotar nesses novos tempos, a professora norte-americana destaca que a aprendizagem apoiada pela tecnologia fará parte da educação e será necessário fortalecer o ensino à distância. Será obrigatório, então, adotar estratégias que possibilitem aos estudantes o desenvolvimento de habilidades mais reflexivas, permitindo, assim, que se tornem aprendizes independentes. Ela também ressalta a necessidade de construção de vínculos ainda mais fortes e suporte para o aprendizado emocional.
Em um debate promovido pela Jeduca – Associação de Jornalistas de Educação, a educadora Lúcia Dellagnelo, que dirige o Cieb, fez também a sua análise: “Todas as redes estão se dando conta de que a gente colocava todas as fichas numa modalidade só e, daqui para frente, com todas as incertezas do futuro, a escola vai ter que aprender a ter estratégias múltiplas, estratégias híbridas que usem a tecnologia, mas que também façam melhor uso do tempo presencial que as crianças passam na escola”. Talvez a tecnologia e a conectividade sejam a oportunidade de fazer uma transformação na educação brasileira, tornando-a mais democrática e equitativa, complementa Lúcia.