Equidade

Por uma educação antirracista: saiba mais sobre ERER e equidade racial

Há 20 anos, foi sancionada a Lei nº 10.639, que incluiu no texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei nº 9.394/1996) a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Essa inclusão é considerada uma das principais iniciativas de ação afirmativa dos últimos anos, conquistada pela luta e demanda histórica do movimento negro, que vem colocando mais luz sobre o combate às enormes desigualdades sociais no país.

A expressão cunhada por Florestan Fernandes – “o mito da democracia racial” –, que serviu de título para o primeiro episódio da Coleção Antirracista , produzida pelo Instituto Unibanco em parceria com a produtora Olhar Imaginário, exemplifica como, mesmo depois de 130 anos da abolição da escravatura, ainda há um abismo social entre brancos e pretos no Brasil.


Em um país extremamente racista, tornar o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira exige que professores e gestores tenham que tratar essas questões em sala de aula. Lara Santos Rocha, assessora de educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em entrevista ao portal do Cenpec , afirma que “não é mais uma questão opcional, mas sim uma obrigatoriedade trabalhar a questão do racismo na educação ”. Nessa entrevista, Lara aponta para avanços conquistados a partir dessa legislação, porém também cita os enormes desafios que precisam ser superados para que se tenha no país, efetivamente, uma educação antirracista.

Entre esses avanços, Lara menciona o aumento na quantidade de publicações de autores e autores negros em editoras, que até então eram bem poucas no mercado editorial. Isso mostra que uma lei como essa desencadeia uma série de processos e diretrizes fundamentais para se estruturar uma educação antirracista nas escolas. Outro ponto positivo considerado por ela foi a ampliação da Lei nº 10.639 pela Lei nº 11.645 , que inclui mais diversidade nos currículos escolares, com a obrigatoriedade do ensino de cultura e história também dos povos originários.

Como uma das melhorias e desafios a serem superados, é apontada a necessidade de se “ampliar o olhar sobre o que é negritude na sala de aula – que está para além de falar de racismo e escravidão. É preciso trazer negritude e tecnologia, negritude e ciência, usar como referência autoras negras”.

Nesse sentido, o antropólogo Kabengele Munanga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais conceitos das relações étnico-raciais na sociedade brasileira, afirma que, frente a uma dinâmica tão complexa e enraizada culturalmente, o papel da escola no enfrentamento fazer racismo é fundamental. Segundo o antropólogo, as imagens estereotipadas e discriminatórias do sujeito negro e da população negra são construídas na educação, assim, é a educação – e a prática educativa – que deve desconstruí-las: “Só a própria educação é capaz de desconstruir os monstros que criaram e construir novos indivíduos que valorizem e convivam com as diferenças”. Para ele, somente uma educação “antirracista, multicultural e pluriversal” tem esse poder transformador.

No vídeo produzido para este Observatório, a professora Sueli Carneiro, diretora do Geledés Instituto da Mulher Negra , afirma que a educação é um campo de batalha para os negros no Brasil desde o final do século 19, principalmente por conta do projeto de nação existente no Brasil, que tenta “reproduzir uma Europa nos trópicos”:

Se existe civilização, é o Ocidente que produziu civilização, e se existe conhecimento relevante, é o conhecimento produzido pelo Ocidente. É todo esse processo de destituição das pessoas não brancas em geral, e dos negros em particular, da condição de sujeitos de conhecimento, que tem a ver com a própria destituição das pessoas negras de humanidade. É disso que se trata, é negar.

Nesse mesmo vídeo, Macaé Evaristo, educadora e atualmente deputada estadual eleita por Minas Gerais, aponta que uma sociedade como a brasileira, que se estruturou sobre o racismo, não será desconstruída em apenas uma década. Por isso, menciona a importância da Lei nº 10.639: “É essa lei que vai abrir todo um debate público sobre o racismo e que vai acabar 10 anos depois com a aprovação da Lei de Cotas (Lei nº 12.711 ) . Agora temos muito que fazer? Temos muito o que fazer!”.

A professora Natália Delamarte França, em artigo publicado no Portal Geledés, aponta para a necessidade de que uma educação antirracista seja pensada em duas perspectivas: “A primeira, num olhar de representatividade e de reconhecimento de nossa história, e a segunda, pensando na escola enquanto espaço social onde nossas primeiras relações são possíveis”.

Natália França relaciona ainda a educação antirracista às ideias do educador Paulo Freire, no sentido de que a escola deve proporcionar o pensamento crítico e a construção do conhecimento, entendendo a sociedade em que se vive e o papel do indivíduo dentro dela: “E é assim que uma a educação antirracista deve acontecer, ensinando de uma maneira que transforma, promovendo uma expressão livre tencionando a prática da liberdade”.

Sueli Carneiro, na entrevista citada anteriormente, comenta que, para uma criança negra da sua geração, ter aula de história da escravidão era um verdadeiro pesadelo. Isso porque as narrativas eram sempre baseadas na ideia de que o branco trouxe a civilização, o indígena não se deixou escravizar por ser orgulhoso e altivo e “o negro se acomodou confortavelmente na condição de escravo. Era a narrativa que a escola fazia. Então produzia uma verdadeira hecatombe nas crianças negras essa narrativa, que era reiterada ano após ano”.

Nesse sentido, uma pesquisa realizada por Ana Célia da Silva na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2001, para identificar as transformações na representação social dos negros nos livros didáticos de Língua Portuguesa de Ensino Fundamental de 1º e 2º ciclos da década de 90 evidenciou a existência de mudanças significativas. Eles passaram a ser “representados humanizados, ou seja, com família, nome próprio, sem estigmas, estereótipos e descritos sem preconceitos, com direitos de cidadania, papéis e funções específicas na sociedade, embora sem distinções étnico-culturais”. Porém havia baixa frequência de personagens negros ilustrados. Portanto, até aquele momento, anterior à legislação, os livros ainda continuavam invisibilizando o negro, colocando ainda a sua presença como minoria.

Apesar disso, a pesquisadora chamou a atenção para a importância dessa humanização:

Ver-se representado de forma positiva e aproximada do real desenvolve na criança um sentido de existência, de positividade, de pertença às categorias de humano e cidadão, porque ela passa a ver-se como existente nessa representação, que para ela corresponde ao real. Ao reconhecer-se e ser visibilizada, a criança desenvolve o amor ao seu semelhante étnico. Também as crianças de outras raças/etnias começam a ver a criança negra sem os estigmas inferiorizantes, passando a reconhecer suas diferenças sem restrições, respeitando-a e interagindo com ela no convívio escolar e fora dele.

Equidade racial na educação

Para trilhar um caminho em busca de uma educação antirracista, também é necessário pensar no conceito de equidade aplicado à educação. Num país como o Brasil, marcado por elevados indicadores de desigualdade, a educação, que deveria ser um fator de promoção de equidade, mostra-se, muitas vezes, de forma oposta, com ações que perpetuam e intensificam as desigualdades.

A publicação Equidade étnico-racial na educação , publicada por Todos Pela Educação com a técnica intensiva da Mahin Consultoria Antirracista, a partir do entendimento de que um dos maiores e mais complexos desafios enfrentados pela educação brasileira é a desigualdade étnico-racial e o racismo é um As características estruturais e estruturantes da realidade do país trazem alguns dados que ilustram o cenário atual.

Em relação ao acesso e à permanência na escola,

na Educação Básica, dados de 2019 revelam que a taxa de crianças e jovens negros (de 7 a 17 anos) que não frequentavam a escola no país foi cerca de 1,5 vezes maior que a taxa análoga para pessoas brancas da mesma faixa etária (3 ,65% contra 2,22%). Inclusive, em termos absolutos, eram mais de 700 mil jovens negros fora do ambiente escolar no ano em questão – quantidade de pessoas maior que a população de Aracaju, capital de Sergipe.

Ainda de acordo com a publicação, os abismos raciais encontram-se também quando se analisam dados a respeito dos níveis de aprendizagem. Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2019 mostram que os estudantes da rede pública do 9° ano com aprendizagem adequada em Língua Portuguesa representam 53,4% entre os brancos, 38,5% entre os pardos e 29,8% entre os pretos. Em Matemática, os números são 34,9% entre os brancos, 21,2% entre os pardos e 14,4% entre os pretos.

Os organizadores da publicação chamam a atenção para o fato de que tais desigualdades não dizem respeito à capacidade de pessoas pardas e pretas, mas são “resultado de um ciclo de marginalização desses grupos que, no contexto educacional, também é determinado por décadas de não priorização de uma educação das relações étnico-raciais, em todas as suas dimensões”.

Segundo dados de 2020, 79,1% dos jovens brancos de 19 anos concluíram o Ensino Médio, enquanto esse percentual para negros era de 61,4%, aponta outra publicação sobre o tema, Equidade na educação, do Centro Lemann.

Nessa publicação, é aprofundado o conceito de equidade em duas dimensões. A primeira é a da inclusão, ou seja, o acesso de todas as pessoas aos direitos fundamentais garantidos na Constituição, como educação, segurança, saúde, moradia, entre outros. A segunda dimensão refere-se à garantia da remoção de obstáculos para que efetivamente todas as pessoas, independentemente do contexto social, das características individuais e da sua identidade, possam ter acesso a esses direitos e oportunidades de forma semelhante.

Nesse sentido, o conceito de equidade é complementar ao de igualdade: “Sob a perspectiva da equidade, é necessário considerar as diferentes características e os diversos contextos de grupos e indivíduos específicos, bem como disponibilizar recursos e utilizar estratégias adequadas para assegurar os direitos de cada um”.

Em entrevista para a publicação, José Francisco Soares, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), afirma que “infelizmente, nosso país é muito tolerante com a exclusão” e aponta que, para que o Brasil avance na direção da equidade, é necessário trazer as desigualdades para o centro do debate sobre a educação: “a desigualdade está na cultura nacional.”

 Nesse contexto, Soares menciona que é importante definir quais resultados devem ser considerados para atingirmos a equidade: “na educação, são três os resultados essenciais: acesso à escola, permanência e aprendizado". Assim, os resultados educacionais, independentemente de grupos sociais ou quaisquer outras diferenças, devem ser iguais para todos os estudantes – do que, claramente, pelos dados mencionados anteriormente, ainda estamos muito distantes no país.

Outro ponto ressaltado por ele é a necessidade de se encontrar uma teoria de ação que contemple a questão estrutural sobre a experiência educacional de cada pessoa, que é afetada pela ação conjunta de muitos fatores. Entre os fatores que podem ser medidos “destacam-se o nível socioeconômico, a raça/cor, o sexo e o local de residência. Esses fatores agem conjuntamente para criar as desigualdades”.

O Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA) calcula, para todos os municípios brasileiros e o 5º e o 9º anos, o nível de aprendizagem em Língua Portuguesa e em Matemática e as desigualdades de aprendizagem entre grupos sociais definidos por nível socioeconômico, raça e sexo. Para Chico Soares, um dos idealizadores do indicador, mesmo ainda sendo uma análise parcial, é um ponto de partida para a análise das desigualdades.

Nessa mesma publicação, Tatiane Cosentino Rodrigues, professora do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), menciona que, além do acesso, os processos de permanência na escola, de conclusão dos níveis de ensino e de igualdade de tratamento ajudam a compreender o conceito de equidade aplicado à educação. Com isso, afirma que o acesso é importante, porém não é o suficiente: “É necessário considerar raça, etnia, gênero e sexualidade, que impactam a permanência”.

As políticas de ação afirmativa, como as mencionadas no início deste texto, ajudaram, segundo a professora, em uma mudança. Antes, o discurso era “o Brasil é racista, mas a escola não”. Agora, os professores já reconhecem a existência desse problema. Além disso, ela menciona que o número de negros dando aulas, embora ainda menor do que o de brancos, aumentou, uma mudança que acaba por provocar mudanças de percepção.

Vinte anos da Lei nº 10.639 e a ERER

E como estamos após 20 anos da Lei nº 10.639 no país?

A pesquisa Práticas pedagógicas de trabalhos com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03, realizada em 2012 – portanto ainda dentro da primeira década de vigência da lei – com apoio e financiamento do Ministério da Educação (MEC) e da Unesco e coordenação de Nilma Lino Gomes e Rodrigo Ednilson de Jesus, do Programa de Ações Afirmativas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revelou que a desinformação ou desconhecimento da alteração na LDB e nos documentos que a orientam ainda era um dos principais obstáculos para o seu cumprimento.

Além disso, a pesquisa também colocou a falta de recursos didáticos como o segundo indicador de dificuldade, ressaltando a falta de publicações do próprio MEC com propostas pedagógicas e de instrumentos práticos para a aplicação em sala de aula.

Como terceiro indicador de dificuldade, foi apontada a falta de recursos financeiros, uma vez que poucas das secretarias de Educação que participaram da pesquisa indicaram o recebimento de recursos financeiros específicos para formação nesse tema.

Infelizmente, uma recente pesquisa, publicada em 2023 pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, que mostra como e se as secretarias municipais de Educação construíram condições em suas estruturas para combater o racismo nas escolas, bem como se preveem, em seus conteúdos e práticas, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) e para o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, não aponta para um cenário muito diferente.

A ERER faz parte de um conjunto de temas dos quais deve se ocupar a formação inicial e continuada de professores, especialmente a pensada para a Educação Básica. Seu principal objetivo é que esse conjunto de práticas, conceitos e referenciais forme, no âmbito do ensino público e privado, um currículo com possibilidades transdisciplinares.

A pesquisa mostra que

a institucionalização da lei ainda é baixa na estrutura administrativa das redes: apenas uma secretaria municipal em cada quatro possui uma área, equipe ou profissionais específicos responsáveis pelo ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira dentro das secretarias municipais de Educação, e somente um em cada cinco municípios possui regulamentação específica sobre o ensino.

Outro dado levantado pelo estudo, e que aponta para um grande desafio considerado pelos especialistas neste texto, é o fato de que “só 35% das secretarias acompanham os indicadores de desempenho e as desigualdades educacionais considerando a raça dos estudantes”.

A pesquisa revela ainda que os gestores municipais sentiram falta de apoio aos estados e do governo federal para o cumprimento da Lei nº 10.639/03 não apenas em ações diretas, “mas também por meio de cooperação técnica e financeira para que, ao contrário do que se mostra na maioria dos casos, ela é considerada além de datas comemorativas, de forma perene ao longo do ano”. O estudo considera fundamental que as secretarias de Educação sejam responsáveis ​​por trabalhar pela implementação da legislação, ainda que não sejam encontrados parceiros para isso.

Mesmo após 20 anos da promulgação da lei, o estudo acordado que a história e a cultura africana e afro-brasileira são abordados majoritariamente apenas no mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra: ou seja, ainda se escolhe refletido a educação para relações étnicas -raciais sem que se pretenda rever a construção e manutenção de privilégios. Escolhas que podem revelar um arcabouço mais amplo para reflexão sobre a percepção de baixo apoio e engajamento para implementação da lei.

Os desafios, portanto, são justamente na eficácia, implementação e continuidade das importantes políticas afirmativas e legislações já aprovadas. Entre as conclusões da referida pesquisa está a necessidade de se renovar “o compromisso da construção de uma educação antirracista e comprometida com a garantia dos direitos de todas as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos”.