Juventudes

Busca ativa: intersetorialidade para combater a evasão escolar

A paralisação das atividades presenciais das escolas em razão da pandemia da covid-19 agravou os riscos de evasão e abandono em todo país. A despeito dos esforços de gestores e educadores, muitas crianças e adolescentes se desengajaram do espaço escolar, seja pela falta de acesso a serviços e equipamentos de telecomunicação adequados para o ensino remoto, seja pelos mais variados impactos da crise econômica e sanitária. Uma das estratégias desenvolvidas desde antes da pandemia é a metodologia da Busca Ativa, que mobiliza gestores municipais e estaduais com o objetivo de monitorar os índices de evasão e promover o fortalecimento de vínculos entre os estudantes e a escola.

De acordo com projeção da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, ao menos 1,5 milhão de crianças e adolescentes estão fora da escola no Brasil. Muitos são os fatores que contribuem para o abandono e a evasão, sempre articulados às desigualdades estruturais de nosso país. Enquanto, por exemplo, apenas 12,5% dos jovens brancos de 15 a 17 anos estão fora da escola, entre os jovens negros esse índice chega a 19%. Dessa forma, é importante compreender de que maneira as barreiras socioeconômicas, bem como as desigualdades de gênero e raça, constituem desafios à democratização do acesso à educação e quais estratégias são mais eficazes no seu enfrentamento.

Esse problema estrutural motivou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) a criar a Busca Ativa Escolar, em parceria com secretarias municipais tanto de Educação quanto de Saúde e Assistência Social. Como destacado em um dos guias da metodologia da Busca Ativa, a complexidade dos fatores que impedem o acesso de crianças e jovens à educação demanda uma resposta integrada dos serviços e agentes públicos. Nesse sentido, a metodologia consiste em formar gestores e educadores enquanto agentes comunitários capazes não apenas de monitorar estudantes em risco e abandono como também de desenvolver estratégias metodológicas coerentes com as realidades locais. Além de ser uma metodologia integrada entre serviços públicos, a Busca Ativa compreende uma plataforma on-line e gratuita que desde 2017 mobiliza setores do poder público e da sociedade para garantir o acesso à educação. Em entrevista ao site do Instituto Unibanco, Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef no Brasil, destacou que enfrentar a evasão demanda uma abordagem multissetorial:

Utilizamos uma metodologia social que não prevê a criação de serviços novos. Em vez disso, aproveitamos serviços que os municípios já têm para ir atrás das crianças. Junto com essa metodologia, criamos ferramentas para auxiliar o manejo das informações. A principal característica da metodologia social é trabalhar com diferentes setores do governo e da sociedade. E lançar um olhar sobre as causas que levaram as crianças a abandonar a escola, para evitar que, depois de rematriculadas, essas crianças novamente parem de estudar. Toda a estratégia tem como base o engajamento voluntário, isto é, a adesão do prefeito. A partir da adesão, que é gratuita, monta-se um time com representantes de diferentes áreas: articulação política, educação, assistência social, saúde, associações de bairro, associações religiosas etc.”

A Busca Ativa Escolar não consiste, portanto, em um modelo engessado a ser aplicado de maneira universal. Pelo contrário, as estratégias são desenvolvidas com a articulação da gestão escolar com outros serviços públicos, como a Assistência Social, conselhos tutelares e secretarias de Saúde. Ao compreender que as razões que mantêm crianças e adolescentes fora da escola não estão reduzidas a fatores meramente pedagógicos, a metodologia da Busca Ativa propõe respostas multissetoriais, qualificando os gestores para a identificação das causas da evasão e para a elaboração de estratégias eficazes.

Busca Ativa na pandemia

No contexto da pandemia, o Unicef, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), adaptou a metodologia ao longo do ano. Ainda que os serviços públicos estejam funcionando de maneira remota, é possível realizar a busca ativa de estudantes, adequando os procedimentos de atendimento aos requisitos sanitários.

Nesse sentido, foi lançada a plataforma da Busca Ativa em Crises e Emergências, que orienta os gestores e disponibiliza materiais de campanha para o fortalecimento de vínculos. Na estrutura da Busca Ativa, os professores atuam como agentes comunitários e, ao identificar as causas da evasão, os educadores se articulam ao restante da rede de serviços públicos, acionando a resposta mais adequada à situação. No caso, por exemplo, de uma gravidez na adolescência que motive o desengajamento do espaço escolar ou de trabalho infantil, é possível, por meio da Busca Ativa Escolar, encaminhar as famílias aos serviços públicos apropriados, reforçando para elas a importância da manutenção do vínculo com a escola mesmo durante a interrupção das atividades presenciais.

Em recente webinário promovido pelo Conviva Educação, Ítalo Dutra, Daniella Rocha, consultora de educação do Unicef, e Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da Undime e dirigente municipal de Educação de Sud Mennucci (SP), debateram as adequações feitas na metodologia da Busca Ativa durante a pandemia. Segundo Dutra, a principal mensagem da atual campanha é a centralidade do direito à educação das crianças e adolescentes ainda que em um contexto de crise sanitária e econômica. Nesse sentido, é importante compreender que as desigualdades raciais e econômicas sempre contribuíram para elevar os índices de abandono e evasão, de modo que as estratégias de mitigação dos efeitos da pandemia sobre o acesso à educação devem incorporar uma perspectiva político-pedagógica capaz de garantir a equidade.

Ítalo Dutra afirma que não podemos considerar 2020 um ano perdido. A despeito dos desafios impostos pela pandemia da covid-19, muitas estratégias foram e ainda estão sendo desenvolvidas a fim de engajar os estudantes e manter seu vínculo com o espaço escolar. O representante da Undime avalia, por sua vez, que mesmo que o currículo não seja trabalhado na sua integralidade, se o vínculo com o espaço escolar permanecer, outras competências são desenvolvidas:

Neste período, nós também estamos desenvolvendo muitas (outras) competências e habilidades, e a escola consegue organizar e articular isso. Eu posso até não estar aprendendo um novo conteúdo, mas se essa criança estiver sendo acolhida no seu direito à educação, a escola está cuidando para ela não ter perda de aprendizagem, e para que ela possa, a partir do que aprendeu, expandir e explorar diferentes possibilidades. Estamos aprendendo a lidar com outras habilidades e competências, como a resiliência, e ferramentas tecnológicas, propiciadas pelo contexto e pela escola.”

Além do desenvolvimento de competências socioemocionais, previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Busca Ativa Escolar permite que a gestão compreenda que o abandono escolar é um fenômeno com múltiplas causas, muitas delas externas à escola e à educação, de modo que é necessário desenvolver estratégias intersetoriais, capazes de mobilizar diferentes áreas do serviço público a fim de garantir o direito de aprender.

A metodologia foi desenvolvida pensando também na autonomia dos municípios e estados, respeitando os contextos locais. Segundo Daniella Rocha, os materiais da campanha foram desenvolvidos de forma que cada rede possa adequá-los às suas realidades, permitindo o protagonismo da gestão escolar: “As escolas são parceiras importantíssimas, elas estão trabalhando arduamente, desenvolvendo um papel muito mais protagonista na Busca Ativa.”

Mobilizando as redes

Atualmente, a Busca Ativa está presente em 19 estados do país. Cada rede de ensino adotou ao longo da pandemia estratégias próprias para alcançar os estudantes, levando em conta as peculiaridades de cada região, seja ela urbana ou rural. Essas estratégias englobam desde a parceria com o Unicef até o uso de algoritmos para a identificação de alunos em situação de risco e a contratação de empresas de transporte para buscar e entregar material didático impresso na casa dos estudantes.

Para adequar os protocolos da Busca Ativa ao contexto da pandemia, os professores e gestores da rede estadual de educação do Maranhão passaram a desempenhar um papel ainda mais central tanto no monitoramento dos estudantes quanto no contato com as famílias. Em entrevista ao site do Instituto Unibanco, Fernanda Ferraz, supervisora do Regime de Colaboração da Secretaria de Estado da Educação, disse que como “agora as crianças estão em casa, a estratégia é observar se o aluno acessa o Google Meet, a plataforma Zoom, se está na sala virtual”.

Para realizar o monitoramento dos estudantes que não têm acesso à internet, os educadores controlam o engajamento durante a distribuição do material didático. Aqueles que não comparecem para retirar as atividades impressas entram em uma “lista de verificação”. Após a listagem, educadores ou gestores realizam o contato por telefonema ou visita, valendo-se inclusive de bases de dados de outros serviços públicos, como o cadastro do Bolsa Família ou dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS).

Em Alcântara (MA), a metodologia da Busca Ativa já está dando resultados concretos. Creuzilene Brito compartilhou, em entrevista ao canal da Secretaria Estadual de Educação, como a regularização dos documentos, através de uma ação intersetorial entre a escola e o Conselho Tutelar, possibilitou que seu neto fosse enfim matriculado na Educação Básica: “Quando chegamos [a Alcântara] tivemos uma dificuldade [para matriculá-lo], pois ele não tinha os documentos. A gente procurou o Conselho Tutelar e agora ele está estudando.”

Alin Ferreira, articulador do Busca Ativa no Maranhão, detalhou como o programa desenvolveu uma estratégia para atuar no interior do estado, combatendo o abandono e garantindo o direito à educação de crianças e adolescentes em áreas rurais: “Fomos atrás dos alunos, em cada comunidade, das mais próximas às mais distantes, lugares nos quais o acesso difícil e se agrava ainda mais na época das chuvas.”

Além de Alcântara, desde 2019 mais de 200 municípios maranhenses aderiram à metodologia da Busca Ativa. Em 2020, a meta da Secretaria de Educação era reengajar ao menos 20% dos estudantes evadidos. De acordo com Fernanda Ferraz, a estratégia foi bem-sucedida: durante a pandemia, além do neto de Dona Creuzilene, mais de 6 mil alunos foram rematriculados. Os esforços agora se voltam também para evitar a reversão desse quadro, sobretudo considerando as dificuldades decorrentes da interrupção das atividades escolares presenciais.

Já em São Paulo, a estratégia da rede estadual envolveu o desenvolvimento de um algoritmo capaz de identificar os alunos com maior risco de evasão. A partir dos dados de cada estudante, como frequência escolar ou participação em algum programa de assistência social do governo, o algoritmo lista as crianças e adolescentes em risco, e essa listagem é distribuída para as escolas, de modo que a gestão seja capaz de monitorá-los com mais atenção. Além da frequência e de indicadores socioeconômicos, outros fatores podem contribuir para o risco de abandono escolar, como a discriminação racial e de gênero.

Henrique Pimentel, subsecretário de Articulação Regional, relata como a gestão escolar investiu na metodologia da Busca Ativa durante a pandemia:

A gente viu de tudo: diretor que alugou carro de som para falar sobre as atividades remotas, que foi à casa de pai de aluno para saber o que estava acontecendo [no caso de estudantes que não assistiam às aulas] ou para entregar atividades impressas. O esforço de busca ativa vai ser ainda mais forte no ano que vem, quando teremos os dados concretos da evasão.”

Um dos exemplos de como a gestão escolar atuou em São Paulo veio da escola estadual Profª Margarida Paroli Soares, de Limeira. A estratégia combina monitoramento virtual com visitas domiciliares. Ao identificar os estudantes que não estão acompanhando as atividades remotas, a equipe escolar realiza um primeiro contato virtual, seguido de uma visita em domicílio caso o aluno não responda. Essa estratégia não apenas permite identificar as dificuldades do estudante como também possibilita a entrega de material didático impresso e a capacitação para acessar o ambiente virtual de aprendizagem. A coordenadora Solange Pires destaca que a ação fortalece não apenas o vínculo do estudante com a escola, mas também o da própria família: “Eles ficam bem surpresos e até se emocionam em ver que a escola tem uma preocupação em saber o que acontece na vida e na casa deles.”

Qual o papel da gestão?

O podcast da Folha de São Paulo focado em educação, Folha na Sala, dedicou um episódio às estratégias de busca ativa adotadas por gestores de várias regiões do país, revelando as formas pelas quais a metodologia se adequa as realidades locais através do engajamento e dedicação dos profissionais da educação.

Daniel Arais, educador em uma escola da região metropolitana de Manaus (AM), compartilhou a estratégia da sua gestão escolar para mobilizar estudantes durante a pandemia, enfrentando a cheia do rio Solimões para alcançar aqueles que vivem em comunidades ribeirinhas isoladas:

Nessa época do ano, nosso município fica quase 90% submerso [devido ao fenômeno de seca/cheia das várzeas amazônicas], o rio toma todo o território e vira uma imensidão de água. Nós vamos uma a uma nas casas [palafitas] visitar e atingimos uma boa porcentagem dos alunos.”

De acordo com o gestor, manter esse contato com os estudantes, ainda que quinzenalmente e mediante tamanho esforço, é fundamental para engajar os alunos e mitigar os efeitos da pandemia no que se refere ao abandono e à evasão:

O compromisso da nossa escola é motivar as crianças para que elas vejam o futuro e escolham por si mesmas. Ir atrás dessas crianças e não deixar que elas esmoreçam, levando orientação educacional, apostilas e conteúdo. Nós vamos continuar com esse trabalho até quando for necessário.”

O professor Josiel, do município de Niquelândia (GO), desenvolveu, por sua vez, uma estratégia para engajar os estudantes mais velhos, da Educação para Jovens e Adultos (EJA). Devido à paralisação do transporte escolar em decorrência da pandemia, Josiel atravessa estradas cheias de lama e uma serra a cavalo para levar tarefas e material didático para os alunos:

A gente entrega as atividades individualmente a cada aluno usando os meios de prevenção, máscaras e álcool em gel. Nós trabalhamos com um público idoso, pessoas que não tiveram a oportunidade de estudar na infância e na adolescência. Pessoas que trabalham o dia todo braçalmente no campo, e à noite ainda estão motivados para ir para escola, para aprender a ler e escrever. A gente tem um comprometimento com os alunos, para eles não perderem o ano letivo.”

As dificuldades enfrentadas pelas escolas em áreas rurais ou afastadas dos centros urbanos, como comunidades ribeirinhas e quilombolas, foram potencializadas pela pandemia, o que desafiou os gestores a desenvolver estratégias adequadas para manter estudantes e suas famílias engajadas.

O diretor Sergio Moraes de Medeiros, da Escola Estadual Margarita Franklin Gonçalves, em Ibaiti (PR), direcionou sua ação para a conscientização das famílias sobre a importância de manter o vínculo entre os estudantes e a escola durante a paralisação das atividades presenciais. O município de Ibaiti encontra-se em uma área de plantação de cana-de-açúcar, de modo que a maior parte das famílias reside em locais afastados do centro. Dos 300 estudantes matriculados na escola, 100 residem em sítios e assentamentos, o que demandou uma estratégia de abordagem com a ajuda de carros de som e visitas residenciais:

Os alunos não estavam interagindo, então tivemos a ideia do carro de som, que passasse pelas ruas falando da importância. Os alunos começaram a participar, a gente passou nos sítios também, e isso chamou muita atenção. Estamos estreitando os vínculos com nossos alunos, isso foi muito importante.”

As experiências compartilhadas demonstram como uma política de busca ativa eficiente vai até o estudante, identifica as causas da evasão e investe, de forma intersetorial, em soluções, atuando junto a outros serviços públicos para garantir o acesso à educação e possibilitar a democratização do direito à aprendizagem.