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Educação e Laicidade: Qual o papel da Religião?

As recentes mudanças no Ministério da Educação (MEC) e na composição do Conselho Nacional de Educação (CNE) trouxeram à tona importantes questionamentos sobre o impacto dos discursos e agendas religiosas de caráter conservador para a educação no Brasil.

Nas primeiras semanas do mês de julho, seguindo indicações realizadas pelo ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, a Presidência da República nomeou 11 integrantes para o CNE. O órgão assessora a formulação da política nacional de educação junto ao MEC, desempenhando, por conseguinte, um papel estratégico e central na formulação e normatização das políticas educacionais do país. Dentre os novos conselheiros, veículos da imprensa destacaram alguns nomes ligados a instituições religiosas educacionais e privadas, como é o caso da professora Amabile Aparecida Pacios de Andrade, vice-presidente da Federação Nacional de Escolas Particulares, e de Valseni José Pereira Braga, diretor-geral do Sistema Batista de Educação e também presidente da Associação Nacional de Escolas Batistas (Aneb).

A nomeação se diferencia da de outros anos, pois, além de uma lista repleta de nomes ligados a organizações educacionais religiosas e privadas, não contemplou nenhum representante do Conselho de Secretários Estaduais da Educação (Consed) ou da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). A exclusão dos principais órgãos representativos da gestão pública da Educação Básica preocupa os gestores, principalmente pelos desafios a serem enfrentados pelas redes de ensino em decorrência da pandemia da covid-19. Em nota conjunta, a Undime e o Consed consideraram que o ato de nomeação ameaça a própria legitimidade do conselho:

O CNE é um órgão de Estado e não de um governo. Enquanto instituição máxima da educação, para ter respeitabilidade, legitimidade e autenticidade em suas decisões, deveria ter o mínimo de uma representação das redes públicas estaduais e municipais, responsáveis por mais de 80% de todas as matrículas da Educação Básica do país e mais de 40 milhões de estudantes”.

Além dessas entidades, a União Nacional dos Estudantes (UNE) também manifestou preocupação. Em recente entrevista à imprensa, o presidente da instituição, Iago Montalvão, declarou que as indicações para a área de educação “já vêm sendo desvirtuadas há algum tempo”, excluindo o diálogo e participação também das entidades estudantis.

Esse questionamento se intensifica ao considerarmos a mais recente nomeação da Presidência da República para a condução da pasta da Educação. O mais novo ministro, o professor e pastor da Igreja Presbiteriana Milton Ribeiro, é teólogo e advogado, e no anúncio de sua nomeação foi chamado de “terrivelmente evangélico”. Sua nomeação é apoiada por organizações evangélicas, tais como a Associação dos Juristas Evangélicos (Anajure): "Tem um perfil de que gostamos, porque ao mesmo tempo que tem sólidos valores morais, é um técnico com bastante experiência, e tem doutorado na área", disse Uziel Santana, presidente da Anajure em entrevista à BBC.

O novo ministro ganhou notoriedade nas últimas semanas após o compartilhamento de vídeos com declarações polêmicas, envolvendo desde o uso da violência como forma de educar crianças até críticas ao suposto comportamento sexual de universitários. Ribeiro publicou declarações que procuraram amenizar esses discursos passados, assumindo um compromisso público com a laicidade. A despeito de suas declarações, é importante ressaltar as relações políticas e profissionais que o atual ministro mantém com entidades religiosas. Pastor e teólogo, com formação especializada no Antigo Testamento bíblico, Milton Ribeiro também atua como diretor da Luz Para o Caminho, instituição voltada à gestão da relação entre a Igreja Presbiteriana do Brasil e os meios de comunicação.

As recentes nomeações para a educação, tanto no CNE quanto no MEC, revelam a influência crescente de determinados grupos sobre a atual gestão do Executivo nacional, de modo que importa compreender o impacto do conservadorismo religioso nos caminhos da educação pública em nosso país.

Qual a relação do fundamentalismo religioso com a educação?

A relação entre as religiões e a educação se estende ao longo da história, desde as primeiras unidades escolares administradas por irmandades católicas. O advento da separação entre a Igreja e a máquina da administração pública impôs a necessidade de adoção do princípio da laicidade enquanto ferramenta essencial de promoção da convivência democrática entre as diferenças. Sem a laicidade, os sistemas escolares correm o risco de reproduzir visões de mundo únicas, excluindo minorias étnicas, religiosas e culturais e dando espaço para o fortalecimento de discursos conservadores ou até mesmo para o chamado fundamentalismo religioso.

Em entrevista ao Laboratório de Ensino de Sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a professora doutora Andréa Silveira de Souza, especialista do campo das Ciências da Religião, discorreu sobre a relação entre o fundamentalismo religioso e a escola. De acordo com a pesquisadora, o fundamentalismo religioso surge no sul dos Estados Unidos no final do século 19 e início do século 20, no âmbito das religiões protestantes, como um movimento de resistência ao liberalismo teológico, corrente mais afeita a uma interpretação da Bíblia a partir da contextualização sociohistórica. Dessa forma, o fundamentalismo, em sua origem, propõe uma interpretação literal da Bíblia, defendendo que sua leitura seja realizada sem considerações de contexto social ou histórico.



Ao longo do século 20, o fundamentalismo passou por algumas transformações, e nos anos 1970 esse movimento deixou de ser uma corrente exclusivamente de interpretação das escrituras. É nessa época que o fundamentalismo se transforma em um verdadeiro movimento religioso e político, com uma agenda de inserção no debate público, defendendo políticas no campo das artes, dos direitos reprodutivos, dos direitos humanos e da educação. O que é então o fundamentalismo religioso nos dias de hoje? A professora Andréa Silveira de Souza nos responde:

O fundamentalismo religioso é um movimento religioso e político que tem a Bíblia e sua interpretação como fonte absoluta e inquestionável. Diante disso, reivindica que essa visão de mundo seja institucionalizada e válida para todas as pessoas e não apenas para aquelas que compartilham dessa visão. Atualmente, as agendas fundamentalistas concernem ao combate aos direitos reprodutivos, à criminalização dos direitos da comunidade LGBTQIA+ e a agendas no campo da educação que visam regrar o espaço escolar.”

Ainda de acordo com a especialista, a educação sempre foi um campo de interesse desses grupos, pois é no espaço escolar que deve ocorrer a transmissão dos valores para a construção de uma vida democrática. As perspectivas fundamentalistas se caracterizam pela ausência de diálogo e pela negativa da pluralidade e da diversidade das formas de ser e estar no mundo, enquanto a escola é por princípio um espaço que deve acolher e promover a diferença. Dessa forma, grupos fundamentalistas continuamente tentam intervir no espaço escolar a fim de garantir a prevalência de sua visão de mundo em detrimento de outras. Um dos maiores exemplos dessa agenda é o movimento Escola Sem Partido, criado em 2004, que já chegou a inspirar diversos projetos de lei propondo a proibição da veiculação no espaço escolar de quaisquer valores divergentes daqueles da unidade familiar.

Nesse sentido, a laicidade é um princípio educacional central para a preservação da diversidade e o respeito às diferenças no espaço escolar. O canal Conversa com a FEUFF, criado no contexto da pandemia da covid-19 para dar continuidade aos debates da comunidade acadêmica da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou em julho o webinário Escola e Laicidade em Tempos de Negação das Ciências, em parceria com o Observatório da Laicidade da Educação (OLÉ-UFF). De maneira geral, os pesquisadores participantes do debate reafirmaram que o compromisso da laicidade na educação é de enfrentamento ao proselitismo religioso e à discriminação religiosa no espaço escolar, de modo que o convívio entre as diferenças e o respeito à diversidade predominem. O biólogo e educador Rodrigo Borba falou sobre o impacto da retórica fundamentalista no ensino das ciências:

A questão da laicidade na educação é um ponto crucial para o ensino de Ciências, é um pressuposto fundamental para tratar questões sensíveis ou temas controversos, tais como as questões de gênero, ensino da teoria evolutiva sobre a origem da vida, entre outros. Em uma escola que não é laica, onde existe proselitismo religioso, onde algumas religiões se hegemonizam sobre outras ou sobre a não prática religiosa, o trabalho com esses tipos de conteúdo acaba sendo muito afetado. A laicidade é um pressuposto para uma educação crítica, emancipatória, democrática e científica. Nos casos em que não temos esse pressuposto, a laicidade como requisito que permita o trabalho docente em diálogo estrito com conhecimentos científicos, a gente acaba incorrendo em situações de violência, simbólica e física, cerceamento da liberdade de cátedra dos professores e até mesmo destruição de materiais didáticos.”




As atuais mudanças no MEC e no CNE apontam para um possível recrudescimento de discursos negacionistas e conservadores que dificultem a relação ensino-aprendizagem, como nos aponta o professor Rodrigo Borba. Para Monica Waldhelm, pesquisadora do OLÉ-UFF, o negacionismo articulado ao fundamentalismo religioso não atinge apenas as ciências naturais, mas impacta igualmente a História, a Geografia e as demais humanidades. O revisionismo histórico que questiona se houve ou não uma ditadura cívico-militar no Brasil ou mesmo a negação da forma arredondada da Terra são exemplos recentes que indicam a força desse movimento conservador na educação. Durante o webinário, Waldhelm falou ainda sobre como a força do fundamentalismo religioso na condução de políticas públicas se articula muitas vezes a uma desconfiança mais geral em relação à ciência:

Há uma pressão religiosa, uma bancada religiosa muito forte que tem impacto na implementação de políticas públicas, que tem poder para colocar Ensino Religioso no currículo, para fazer cortes, para abafar a discussão de gênero e de violência na escola. A gente sabe que essa bancada é forte, apoiada por diversos segmentos da sociedade. Mas essa desconfiança em relação à ciência e aos cientistas já vem de um tempo. E nós, cientistas, temos que fazer a mea-culpa: será todos nós temos nos preocupado em contextualizar historicamente? É importante demonstrar que a ciência não é neutra e não fazer da ciência um discurso de verdade absoluta.”


Qual papel o Ensino Religioso pode ou não desempenhar na promoção da laicidade no espaço escolar?

Vimos como o proselitismo e os movimentos fundamentalistas, religiosos e políticos impactam a educação, criando ambientes hostis à diversidade e ao convívio democrático entre as diferenças. Nesse contexto, como podemos compreender o papel do Ensino Religioso? Essa disciplina está no centro de um debate que concerne à promoção da laicidade e à defesa de direitos de minorias religiosas na escola. Se, por um lado, alguns gestores e educadores defendem o ensino de diferentes tradições religiosas, por outro, há quem defenda o modelo confessional, no qual apenas uma religião é ensinada de acordo com o credo do educador e dos estudantes optantes. Há ainda quem compreenda como inconstitucional o Ensino Religioso em um ambiente escolar público.

A série de reportagens “O Calvário do Ensino Religioso” trata dessas questões, apresentando as perspectivas de estudantes, educadores e gestores escolares. Para a maior parte dos estudantes, o Ensino Religioso é uma matéria que deveria ser reservada ao espaço doméstico, e, quando podem optar, muitos escolhem não assistir as aulas. É o caso de Gustavo Manuel, estudante do Colégio Estadual Minas Gerais, em Duque de Caxias (RJ): “Não acho necessário fazer Ensino Religioso aqui na escola, eu prefiro optar a ir na igreja.”

Beatriz Leal, coordenadora do Ensino Religioso na Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, diz que a recomendação é que sejam ofertadas aos alunos não optantes atividades alternativas em espaços como a biblioteca ou a sala de leitura da escola. Contudo, gestores apontam a ausência de atividades para esses estudantes, que ficam ociosos durante as aulas de Ensino Religioso, como relata a diretora Adriana Conceição, também de Duque de Caxias.

O deputado estadual Carlos Minc é o autor do projeto que deu origem à Lei nº 8.585/2019, que estabelece que devem ser oferecidas aulas de reforço escolar para os alunos não optantes pelo Ensino Religioso. Para Minc, a pregação confessional é uma forma de proselitismo religioso, de promoção dos dogmas de uma religião como sendo a verdade absoluta. Beatriz Leal, por sua vez, considera válida a oferta plural de visões, “um Ensino Religioso que atenda a todos os alunos optantes, independentemente do credo que ele pratica”:

“O Ensino Religioso trabalha a história das religiões, a importância das religiões para a história. O Ensino Religioso é a única disciplina que pode minimizar o preconceito e a intolerância religiosa que ainda existem nas escolas. Reverencia todas as religiões e mostra que todas as religiões nasceram para o bem.”

Minc concorda com essa importância, mas a diferencia de um Ensino Religioso que pregue sua fé em sala de aula, contradizendo totalmente o princípio de laicidade do estado. Dessa forma, o Ensino Religioso comprometido com a diversidade e a pluralidade do fenômeno religioso ao longo da história pode se apresentar como um caminho interessante de promoção da laicidade no ambiente escolar.

Em outro episódio da série “O Calvário do Ensino Religioso” é possível conhecer um pouco do trabalho do professor Serjão Fonseca, que dá aulas de Ensino Religioso desde 2014 no Colégio Estadual Hilário Ribeiro, no Rio de Janeiro. A despeito de o estado do Rio de Janeiro adotar o chamado modelo confessional, o professor faz questão de fomentar a diversidade e a pluralidade em suas aulas. Para o professor, a disciplina Ensino Religioso pode ser utilizada para a promoção da equidade e o combate às discriminações e à violência, estimulando a capacidade crítica e a empatia dos estudantes:

“Eu sempre entendi que a sala de aula é um espaço plural, a sociedade é assim: marcada pelas diferenças. Na minha concepção, aqui não é lugar para proselitismo. Eu quero que, a partir do fenômeno religioso, a gente possa compreender a sociedade em que a gente vive. Esse ano, em especial, eu fiz um projeto para a escola com poesia, leitura de texto, música, rap. A partir disso, exploramos a realidade social, a realidade da mulher no Brasil, a questão do negro. São valores que a gente pode trazer, porque a molecada precisa ouvir sobre respeito, precisa aprender a lidar com o outro, com o diferente. O espaço da sala de aula é um espaço plural, é o espaço da diferença. Eu luto para isso.”

O avanço do movimento fundamentalista religioso, tanto no campo de formulação e execução de políticas públicas quanto no campo discursivo, ameaça a preservação e a celebração das diferenças e da diversidade da experiência humana nos espaços escolares. A experiência de educadores e gestores, como o professor Serjão, revela, contudo, que há caminhos possíveis para cultivar no espaço escolar, mesmo dentro da cátedra do Ensino Religioso, uma cultura de preservação, reconhecimento e respeito às diferenças:

“Não é porque eu sou evangélico, fui pastor presbiteriano, que eu tenho que abrir a Bíblia para dar aula. Nunca abri a Bíblia para dar aula. Alguns conceitos que eu passo são valores, e trabalhar com valores é importante. Por exemplo, eu acredito no aluno em quem às vezes alguns professores não acreditam, eu vou dar palavra de esperança porque eu sei quem eu era. Passei muitos anos sem acreditar que eu podia, e sei que eles podem! É isso que me motiva a dar aula.”