Currículo

Com pandemia, necessidade de rever avaliação educacional passou de essencial a urgente

A retomada gradual das aulas presenciais nas escolas brasileiras, após sete longos meses de fechamento em razão da pandemia, traz consigo o enorme desafio de mitigar os prejuízos na aprendizagem de mais de 36 milhões de estudantes da educação básica no Brasil (Censo Escolar 2020). Para os especialistas em educação, gestores públicos e professores que estão na cruzada pela busca de soluções, a superação do problema passa por uma questão central: a avaliação educacional.

O papel da avaliação educacional para apoiar a garantia da aprendizagem foi didaticamente explicado no vídeo Avaliação diagnóstica, formativa e somativa alinhada à BNCC, lançado pela Fundação Lemann em outubro. A avaliação possibilita que os educadores diagnostiquem o nível de conhecimento dos alunos dentro da turma, monitorem o progresso no desenvolvimento dos estudantes, orientem seu trabalho e promovam intervenções pedagógicas.

Para tanto, é fundamental que a avaliação faça parte do processo pedagógico e que também seja uma prática permanente no processo de ensino e aprendizagem. Assim, no contexto da pandemia, vem ganhando força a proposta de que a adoção de tais diretrizes acompanhe tanto a retomada das aulas presenciais, com uma avaliação diagnóstica, quanto o desenvolvimento dos alunos, com avaliações permanentes de caráter formativo e avaliações somativas entre 2020 e 2021.

Vale ressaltar que a construção deste processo de ensino e aprendizagem e de avaliação em um ciclo de dois anos segue a orientação do Conselho Nacional de Educação (CNE), assim como a recomendação de não reprovação de alunos em 2020, ambas especificadas no Parecer 15/2020, datado de 6 de outubro de 2020.

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TODAS AS FACES DA AVALIAÇÃO

A avaliação de estudantes é classificada em três tipos:

  • Avaliação diagnóstica – É realizada geralmente no início do ano, para identificar os conhecimentos prévios dos estudantes, as prioridades de aprendizagem e orientar o planejamento de ações que possam apoiar o desenvolvimento dos estudantes em direção a expectativas das aprendizagens estabelecidas.
  • Avaliação formativa – Ocorre durante o processo de ensino e aprendizagem de maneira contínua e processual, possibilitando ajustes e correção de rotas.
  • Avaliação somativa – É feita no fim do processo educacional e é centrada na mensuração dos resultados das aprendizagens segundo critérios gerais.

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Tudo começa pela BNCC

O desafio da avaliação em tempos de pandemia se coloca exatamente no ano em que as redes estaduais e municipais se preparam para a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Mas o que poderia ser visto como um agravamento de quadro está sendo interpretado por gestores públicos e especialistas como caminho para ajudar a lidar com a necessidade de mitigar os danos de aprendizagem causados aos alunos pelo fechamento das escolas.

“Que bom que temos a BNCC. Se não tivéssemos a base, estaríamos num processo muito confuso, que ocultaria muitos direitos e objetivos de aprendizagens fundamentais”, afirmou Luiz Miguel Garcia, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), no Webinário Internacional Fronteiras da Avaliação. “A BNCC é o grande norte da avaliação neste momento, é o instrumento que garantirá que esta geração não tenha déficit de aprendizagem”, afiançou o especialista durante o evento, realizado pela Fundação Lemann em 26 de outubro último.

Como parte da implementação da BNCC, é esperado que os estados e municípios apoiem as escolas na definição de como os alunos vão aprender determinadas competências e de como esse aprendizado deve ser aferido.

Em pronunciamento no mesmo webinário, Chico Soares, professor titular aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), destacou que a BNCC define o que se deve ensinar, mas sua implementação depende da compreensão e introjeção, por todos os atores envolvidos (secretárias, gestores escolares e professores), dos objetivos de aprendizagem nela propostos.

A expressão pública dos objetivos de aprendizagem tem que fazer parte do vocabulário [dessas] pessoas. É preciso preparar e implementar discussões, tarefas e atividades que evidenciam e promovem o aprendizado, sair dos comandos gerais e ir para o específico [editado para clareza e concisão]”, disse.

O passo seguinte, como sinalizou o especialista, é a definição de quais evidências serão aceitas no processo avaliativo, para indicar se o estudante desenvolveu a competência adequada, no nível adequado.


Soares acredita que a implementação da BNCC nas redes de ensino pode ser definitiva para qualificar as evidências de aprendizagem, segundo os melhores padrões internacionais – tanto para avaliações internas, feitas nas escolas, como externas, em âmbito regional ou nacional. Ele defendeu que os processos de devolutiva [avaliações] sejam baseados em itens e estes, por sua vez, em rubricas ou níveis que possibilitem ao professor acompanhar de forma criteriosa a curva de aprendizado do aluno.

A este respeito, Andreas Schleicher, diretor de educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e também participante do Webinário Internacional Fronteiras da Avaliação, trouxe algumas ponderações. Ele valorizou o esforço feito pelo Brasil para monitorar os resultados dos alunos de modo sistemático, avaliando-os em todos os anos escolares e acumulando informações para dar aos professores uma boa ferramenta para mensurar o progresso dos estudantes. Schleicher apontou, todavia, a necessidade de garantir que a avaliação consiga aferir de maneira objetiva os aprendizados dos alunos.

Nesta direção, o dirigente compartilhou algumas orientações: alto rigor no ensino de conteúdos, com menos informações e mais profundidade, trabalhando em um alto nível de desenvolvimento cognitivo nas avaliações; foco em áreas que transfiram valor, ou seja, que permitam que os conhecimentos adquiridos possam ser aplicados em outros contextos; e autenticidade, ou seja, que represente situações reais do cotidiano do estudante.

O que está sendo feito?

O apoio à implementação da BNCC à luz do tema da avaliação em tempos de pandemia está sendo debatido por estados e municípios na Frente de Avaliação do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed)/Undime, ação desenvolvida em conjunto pelas duas instituições.

Para Frederico Amâncio, secretário de Educação de Pernambuco e coordenador da Frente de Avaliação do Consed/Undime, deve-se reforçar a noção de que as avaliações sejam “parceiras” dos gestores, professores e estudantes não apenas na retomada das aulas, mas também de forma mais ampla.

Em sua fala no webinário da Fundação Lemann, o gestor rememorou que os sistemas de avaliação externa brasileiros foram formulados, historicamente, em formato de avaliação somativa, mas agora há um esforço na utilização desses recursos como apoio às escolas, na perspectiva da avaliação formativa.

Os sistemas estaduais passaram também a ter esse papel de dar um apoio para auxiliar as escolas no planejamento de suas atividades, não apenas estratégicas, mas também do ponto de vista pedagógico”, pontuou.

O gestor explicou, ainda, que algumas experiências de avaliação realizadas pelos estados antes da pandemia – como ocorreu em Pernambuco – estavam focadas fortemente em avaliação diagnóstica aliada à avaliação somativa de larga escala, ou seja, testes elaborados pela própria Secretaria Estadual de Educação que foram aplicados em toda a rede.

Neste ponto, a Frente de Avaliação trabalha na consolidação dessas experiências e na ampliação para outros estados, além da proposição de trazer a avaliação formativa como instrumento a ser utilizado no dia a dia das escolas, mas de maneira articulada com as diretrizes estratégicas da rede. Segundo Amâncio, é preciso que a avaliação “seja, sim, utilizada pelo professor, seja, sim, utilizada pela escola, mas tudo isso de modo articulado para que a rede avance como um todo, e não as escolas ou turmas avançando isoladamente”.

Na visão do gestor, este direcionamento tornou-se fundamental no contexto atual. “Já estava no nosso planejamento de atividades para 2020, mesmo antes da pandemia, iniciar um trabalho mais aprofundado no que diz respeito às avaliações do ponto de vista formativo, ou seja, a gente poder utilizar as avaliações com um olhar para o dia a dia das escolas, para a gente poder avançar ao longo dos anos com as escolas”, disse.

Como medida prática, a Frente de Avaliação acaba de lançar a Plataforma de Apoio à Aprendizagem, que busca apoiar as escolas na retomada das aulas presenciais, após o período de isolamento social. A plataforma disponibiliza materiais e protocolos para o retorno das aulas; mapas de foco e marcos de desenvolvimento da BNCC; cadernos com atividades avaliativas; um guia de uso e aplicação de diferentes avaliações; e orientações pedagógicas para apoiar no ensino de aprendizagens focais.

Amâncio explicou que a plataforma se propõe a ajudar as escolas a fazer a avaliação diagnóstica e a introduzir conceitos que vão ajudar muito, em 2021, nas avaliações processuais e formativas, que são algo “ainda pouco utilizado não só no dia a dia do professor, mas na rede como um todo”.

Conheça a Plataforma de Apoio à Aprendizagem.

Estratégias de recuperação pós-pandemia

Para além da avaliação, gestores públicos e escolares, professores e educadores em geral já discutem estratégias de recuperação das perdas de aprendizagem decorridas da paralisação das aulas presenciais.

Para Raquel Teixeira, especialista em educação, o planejamento para a incorporação deste tipo de estratégia ao trabalho das redes é fundamental, combinando de modo adequado itens de teste, exercícios avaliativos de reforço e recuperação para aqueles itens que se mostraram frágeis na avaliação. “Nós já temos que pensar desde agora esta avaliação diagnóstica atrelada a ações de recuperação, e isso não se faz da noite para o dia”, ressaltou ela, durante o webinário “O desafio da volta às aulas”, realizado em maio pelo movimento Todos pela Educação.

Na percepção de Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (Ceipe/FGV), que também esteve no evento, é fundamental que a recuperação de aprendizagem ocorra “de forma sistemática, monitorando as deficiências e como elas se recompõem, para não deixar ninguém para trás”.Como complementação ao debate, o consultor em educação Alexandro Santos destacou a importância da definição de papéis durante o planejamento das ações de recuperação. Segundo o especialista, é evidente a necessidade de “customização” das estratégias pedagógicas a partir do contexto de cada escola e, dentro dela, do contexto de cada etapa vivida pelos estudantes, o que traz o assunto da autonomia das escolas à frente do debate.

“Precisamos permitir que as escolas encontrem os caminhos que mais atendem às suas necessidades. Nós não vamos conseguir, a partir do gabinete da Secretaria de Educação, pensar em todas as escolas, em todos os territórios. A gente precisa entregar autonomia para as unidades educacionais, na gestão do seu projeto político pedagógico, desenharem estratégias que cabem em cada contexto a partir de orientações dadas a essa escola”, disse Santos.

Ele alertou para o risco de o eventual desejo de centralização e controle, por parte das secretarias, levar as redes de ensino a uma trajetória de fracasso no cenário que será enfrentado agora. E recomendou que esta autonomia tenha como alicerces suporte, recursos, acompanhamento e assistência técnica por parte dos sistemas de ensino.

“As estratégias pedagógicas, que são o que os professores vão colocar em funcionamento, estão coladas em estratégias de gestão escolar e de gestão do sistema”, raciocinou Santos. “Se a gente não tiver um envolvimento da gestão escolar e da gestão do sistema de ensino, os professores sozinhos não darão conta. Então, pensar uma estratégia de recuperação paralela implica pensar sistematicamente”, complementou.

Aprofunde-se nas discussões sobre avaliação na pandemia

_Artigo: “Avaliação do estudante durante a Covid-19” (em inglês, “Student assessment during Covid-19”), elaborado por Laura Jimenez (Center for American Progress) em setembro/2020.

_Nota técnica: “O retorno às aulas presenciais no contexto da pandemia da Covid-19”, elaborada pelo movimento Todos pela Educação em maio de 2020.