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Liderança educacional: pandemia exige ainda mais flexibilidade, consistência e capacidade de construção de vínculos

Uma tormenta. A tela Tempestade no Mar da Galileia, do pintor holandês Rembrandt, foi a metáfora escolhida por José Weinstein, professor da Universidade Diego Portales (Chile) e membro do Centro de Desarrollo de Liderazgo Educativo, para retratar o momento pelo qual passa a educação e a importância da liderança em meio à crise da Covid-19. “É um quadro que mostra como alguns pobres homens estão enfrentando uma situação muito difícil, desesperada, para a qual não há resposta fácil”, disse Weinstein.

 

O especialista, que já ocupou a cadeira de ministro da Cultura do Chile, participou recentemente, a convite do Instituto Unibanco, do webinário “O papel da liderança: gestão da educação pública em tempos de crise”. Em sua fala, ele indicou que, para dar conta das grandes mudanças exigidas pela educação na conjuntura atual, é necessário que exista uma liderança consistente e coerente – em mensagens e em práticas – ao nível de cada escola, regional de ensino e Secretaria de Educação.

 

Weinstein explicou que a liderança ao nível da escola é imprescindível, mas ela, isoladamente, na comunidade escolar, tem um teto restrito de ação. Então é preciso que a liderança seja sistêmica. “A liderança de cada escola se potencializa muitíssimo quando está conectada com outras escolas e outros atores do setor público e é coerente com o que se passa no município, território, estado e país”, notou.

 

Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco, também participou da discussão. Ao refletir sobre o papel da liderança nas redes públicas de ensino, ele aportou uma descrição da catástrofe que acomete o cenário da educação no Brasil durante a pandemia, sobretudo a exacerbação de problemas estruturais, como as desigualdades sociais, e educacionais, a exclusão e o racismo.

 

Junto a estas questões, adicionou Henriques, há os desafios pedagógicos para viabilizar a aprendizagem no ensino remoto e no ensino híbrido, uma agenda de maior pressão para a evasão e abandono escolar dos jovens, a dificuldade de garantir uma escola segura do ponto de vista sanitário, bem como de oferecer acolhimento social e emocional aos estudantes e profissionais da educação tão fragilizados pela pandemia.

 

Henriques evocou o potencial de adaptabilidade da liderança para realizar um planejamento que seja simultaneamente flexível e criativo e que tenha consistência para a tomada de decisões – decisões que impliquem, por um lado, o compartilhamento de liderança e, por outro, a capacidade de monitorar e de ter medidas adequadas em um ambiente de alta volatilidade. Ele mencionou, ainda, o desafio de a liderança produzir ou fortalecer vínculos e relações de confiança com todos os pares dentro da escola e na comunidade.

 

“Todas essas dimensões estão em jogo, provocadas neste contexto de crise, de vivência de um cenário desconhecido para todos nós, na intensidade em que ele se coloca hoje”, assinalou Henriques.

 

A preparação para o abre-e-fecha das escolas

Em sua abordagem sobre a importância da liderança educacional no contexto da crise da Covid-19, o professor José Weinstein parafraseou a chanceler alemã Angela Merkel ao dizer que, desde a Segunda Guerra Mundial, não se tinha passado “por nenhum tipo de desafio em que tudo fosse tão dependente da nossa participação solidária conjunta”.

 

Ele endossou a mensagem de Henriques quanto às dificuldades impostas à educação pela pandemia na perspectiva dos estudantes, professores, gestores educacionais e da sociedade, e decupou a crise da Covid-19 no sistema escolar em três momentos: o da não presencialidade, com o fechamento das escolas; o de transição para uma presencialidade alterada, marcado pela prática do ensino híbrido; e o do que chamou de “nova normalidade presencial” – “uma maneira de trabalhar que será provavelmente distinta da que tínhamos antes, porque dificilmente o sistema escolar será igual ao que existia”.

 

Assista ao webinário “O papel da liderança: gestão da educação pública em tempos de crise”.

 

De olho na história das crises sanitárias anteriores – como a Gripe Espanhola (1918) e de outras epidemias mais recentes –, Weinstein alertou para o fato de que as pandemias são, habitualmente, fenômenos que têm várias ondas antes de acabar. “Do ponto de vista da liderança, pensando a crise como um ciclo que sempre recomeça, como nos adverte a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], há que se considerar desde já que é preciso se preparar para a abertura dos colégios com a visão de que podem voltar a fechar”, disse o especialista.

 

No início de 2020, relembrou, os sistemas de ensino foram pegos de surpresa e precisaram fechar suas escolas às pressas, mas o momento atual é outro. Os alunos retornaram às unidades de ensino em diversos países do mundo, e se assiste novamente ao recrudescimento da pandemia, o que pode levar ao novo fechamento das escolas e à necessidade de uma postura diferenciada das lideranças. “É preciso fechar com um nível de preparação e capacidade que não tivemos no momento inicial. Porém, agora, deveríamos ter uma capacidade de reação muito diferente.”

 

Em vez de super-heróis, coletividade

Mas, afinal, o que se espera dos líderes, em seus distintos níveis de autoridade, neste momento em que a pandemia ameaça a própria existência da educação escolar? Weinstein observou que é comum, em situações graves como a que acomete o planeta, que se busquem “pessoas de alguma maneira excepcionais que devem vir e transformar coisas difíceis em simples, apontar a solução correta”. Porém perseguir um líder “super-herói ou super-heroína”, que carregue todas as respostas dentro de si, é tido como um equívoco para o especialista: “Nenhum cientista tem receita mágica para solucionar como atuar nessas situações”.

 

Weinstein defendeu que a liderança adequada deve estar baseada em um trabalho que desafie as pessoas a enfrentar os problemas a partir de novos métodos e novas soluções. Conforme sugeriu, a formação do perfil desta liderança deve inspirar-se em três teorias: liderança adaptativa, propagada por Ronald Heifetz; liderança de cuidado, desenvolvida por Joseph F. Murphy e Karen S. Louis; e liderança distribuída, de James P. Spillane.

 

Como situou Weinstein, a liderança adaptativa diferencia os problemas técnicos dos desafios adaptativos, sendo os primeiros aqueles que se podem resolver a partir de conhecimentos, recursos e processos já dados, como a prescrição de um remédio por um médico ou o uso de uma máquina por um engenheiro. Mas os desafios adaptativos são muito mais difíceis, afirmou o professor, pois não há uma solução pronta para eles. Na concepção original de Ronald Heifetz, os desafios adaptativos requerem a gestão do imprevisível, pedem novos conhecimentos e experimentação, envolvem mais tempo e pessoas, e a mudança de comportamentos.

 

“É preciso construir uma maneira distinta de atuar – no nosso caso, de educar –, e esta maneira tem de ser construída entre todos. Assim, o papel do líder adaptativo é desafiar o grupo a construir coletivamente esta solução nova que se requer”, reforçou Weinstein. “É o que parece que dizia Angela Merkel no início da pandemia: ‘Não pensem que eu tenho a solução. A solução, se existe, está entre todos’”, retomou.

 

Três abordagens inspiradoras para exercer a liderança em tempos de crise
 
  • Liderança adaptativa (Heifetz) –> problemas difíceis pedem soluções novas e construídas em coletividade.

Ronald Heifetz, fundador do Center for Public Leadership da Harvard Kennedy School (Estados Unidos), instituição na qual atua como professor, é considerado uma das principais autoridades do mundo sobre liderança.

  • Liderança de cuidado (Murphy e Louis) –> as relações entre as pessoas estão no centro das organizações e precisam de cuidado para ser positivas e frutíferas.

Joseph F. Murphy, reitor associado do Peabody College of Education da Universidade de Vanderbilt (Estados Unidos), é uma referência em gestão escolar e em liderança em sistemas de ensino. Karen S. Louis é professora de política educacional e administração na Universidade de Minnesota (Estados Unidos). Seus campos de interesse abrangem, entre outros temas, liderança, comportamento organizacional e sociologia da educação.

  • Liderança distribuída (Spillane) –> há uma ampla participação e muitas lideranças na comunidade escolar, todas alinhadas em busca de ideias e soluções para enfrentar a pandemia.

James P. Spillane, professor de aprendizagem e mudança organizacional da Escola de Educação e Política Social da Universidade Northwestern (Estados Unidos), possui extensa produção acadêmica em política educacional, reforma escolar e liderança escolar.

 

Já a liderança de cuidado parte do pressuposto de que as relações interpessoais estão no centro do fazer das organizações, então precisam ser cuidadas para que sejam positivas e frutíferas, sobretudo numa situação de pandemia. “Na liderança de cuidado, a função mais importante dos dirigentes da organização é cuidar do que ocorre dentro dela – alimentar essas boas relações e, principalmente, alimentar a confiança entre os distintos membros da organização”, disse. Neste sentido, o especialista pontuou que é fundamental para a liderança “não apenas desafiar o grupo para resolver o problema em conjunto, mas estar sempre presente para que o grupo se cuide e mantenha relações positivas entre seus membros”.

 

Por fim, a abordagem da liderança distribuída remete a uma participação ampla de todos os membros da comunidade escolar no que ali acontece. “É a teoria que defende que existam muitas lideranças na escola e que estejam todas elas alinhadas ao mesmo objetivo”, explicou Weinstein. Vale lembrar que o tema da liderança distribuída foi pauta do boletim Aprendizagem em Foco nº 53, do Instituto Unibanco, e que o assunto é abordado por Weinstein e outros autores no dossiê sobre liderança educacional disponível no Observatório de Educação.

 

Segundo ele, a teoria da liderança distribuída postula que, mesmo quem não tem uma autoridade formal na escola, como o estudante e a família, pode exercer também seu poder, sua capacidade de iniciativa e de influir. “Portanto, nesse caso, se trata de buscar que os líderes também sejam líderes de líderes, de modo a lograr uma participação mais ativa e para que as boas ideias para enfrentar a pandemia surjam de todo o grupo”, afiançou.

 

“Comunicar, comunicar, comunicar”

Naturalmente, fomentar formas de liderança que resultem no crescimento do trabalho coletivo na escola para superar os efeitos da pandemia sobre o processo de ensino e aprendizagem não interfere nas atividades clássicas ou nas áreas de responsabilidade principais dos gestores escolares. Neste sentido, Weinstein apontou seis tarefas críticas que devem ser abraçadas pelos gestores escolares neste momento:

  1. Diagnosticar os prejuízos educacionais da pandemia (atuais e previstos, inclusive atentando para as desigualdades de condições de estudo impostas aos alunos) e as capacidades de resposta institucionais.
  2. Priorizar os objetivos pedagógicos e emocionais em cada etapa de ensino.
  3. Flexibilizar os modos de funcionamento e os processos regulares da escola em função das novas prioridades.
  4. Orientar e informar incessantemente, de forma séria e confiável, a situação e as decisões que estão sendo tomadas. Nas palavras de Weinstein, “comunicar, comunicar, comunicar”.
  5. Unir a comunidade escolar a partir de círculos de proximidade e promover a solidariedade com os membros mais afetados da comunidade.
  6. Manter pontes permanentes com as autoridades educacionais, o sistema de saúde, outras escolas e redes de apoio.

 

O tema da importância da comunicação para o exercício da liderança ressoou também na apresentação de outro participante do webinário sobre o papel da liderança em tempos de pandemia, o sociólogo Gonzalo Muñoz, membro da Faculdade de Educação da Universidade Diego Portales e pesquisador de liderança educacional. Além do planejamento flexível, mencionado por Ricardo Henriques, e da liderança distribuída, detalhada por Weinstein, Muñoz apontou a comunicação efetiva como uma habilidade indispensável dos líderes para enfrentar a crise.

 

Do ponto de vista organizacional, explicou o pesquisador, a crise sanitária trouxe maior complexidade à comunicação e a necessidade de construir uma estratégia comunicacional aberta, transparente e eficiente. Conforme destacou, a comunicação desempenha papel fundamental, por exemplo, no envolvimento dos diferentes atores implicados na busca de soluções, bem como na mobilização das comunidades para que identifiquem os campos de ação passíveis de influência da escola.

 

Muñoz citou a importância de a comunicação ser sempre bidirecional, instituindo canais de escuta e feedback permanentes; afetiva, considerando a fragilidade emocional verificada em todos os públicos; clara em relação ao que está sendo feito e ao que não está sendo feito, bem como aos objetivos e metas perseguidos; e ágil do ponto de vista da adoção de novos canais e meios de comunicação em plataforma digital.

 

Sem estabilidade socioemocional, é difícil aprender

Em complementação às discussões, o professor Weinstein chamou a atenção, ainda, para as três principais dimensões de trabalho a serem orquestradas por gestores e lideranças: a emocional, a pedagógica e, submetida às duas primeiras, a dimensão organizacional.

 

Na visão do especialista, o desafio adaptativo a ser enfrentado pela educação na pandemia passa, fundamentalmente, pelo estabelecimento de metas relativas ao bem-estar socioemocional e à aprendizagem das crianças e por definir como organizar a escola em função disso. “A pandemia está golpeando muito fortemente a saúde mental e a estabilidade socioemocional de nossas crianças. Sem esta estabilidade, fica difícil pensar que podem aprender, então esses são temas que estão totalmente unidos”, observou.

 

Em sintonia com a ideia de priorizar o emocional da comunidade escolar, Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV/SP), destacou no webinário “Liderança na gestão pedagógica”, realizado também pelo Instituto Unibanco, a importância de os gestores considerarem a dimensão humana em sua prática como líderes.

 

Schneider se referiu especificamente aos professores e alunos que começaram a retornar à escola após um longo período de afastamento devido à pandemia e que podem ter vivenciado problemas graves em sua trajetória.

“Eles podem ter perdido entes queridos, podem ter ficado doentes, podem ter tido casos na família de pessoas que perderam emprego e renda. A gente precisa estar pronto para acolher essas pessoas primeiro. Isso é muito importante porque, além da escola ser o lugar dos afetos, ela é o lugar da confiança, e é a confiança mútua que constrói uma comunidade de aprendizagem”, disse.

 

Para que esta comunidade de aprendizagem se construa, Schneider lembrou a importância de que a liderança atue para a redução das desigualdades socioeconômicas e educacionais. “Levantar o portfólio, comparar aquilo que foi feito [durante a pandemia], como as crianças chegaram [à escola] e ter um contato com os pais é muito importante para tentar verificar por quais caminhos a gente cerca aquilo que gera essa desigualdade”, frisou.

 

Assista ao webinário “Liderança na gestão pedagógica”.

 

A dimensão pedagógica como orientadora da gestão

Com os pés bem fincados na prática, a diretora Érika da Silva Cruz, da Escola Estadual Presidente Itamar Franco, em Santa Luzia (MG), participou do webinário “Liderança na gestão pedagógica” trazendo contribuições vivenciadas em campo. Para ela, o que deve nortear o trabalho do gestor – sempre mas, em especial, neste período de fechamento das escolas – é a referência do “chão da sala de aula”.

“Temos que pensar no corpo docente, no corpo discente e na comunidade, que tem uma expectativa muito grande diante do nosso trabalho”, ressaltou a diretora. “A figura de liderança do gestor é, às vezes, um espaço muito solitário de decisão e a gente precisa entender a escola como um todo”, disse ela.

 

Em sua concepção, o líder deve ser um grande motivador do grupo, imbuído de comandar a si próprio com autoconfiança, de compreender e respeitar as características de cada profissional em sua equipe e de despertar o senso de colaboração de todos.

 

A relevância de a dimensão pedagógica orientar o trabalho do líder gestor também apareceu com força na apresentação feita por Diego Silva, mestre em gestão e políticas públicas educacionais pela Universidade de Michigan (Estados Unidos), após a intervenção de Cruz. Conforme notou, antes da Covid-19, muitos gestores tinham uma preocupação mais voltada às funções administrativas, enquanto a questão pedagógica ficava na mão do coordenador e dos professores. Mas a pandemia reaproximou o gestor da área pedagógica.

 

“Com as ferramentas digitais, vários gestores puderam ver as aulas dos professores, acompanhar as entregas das tarefas dos alunos etc. Esta ‘reentrada’ da gestão pedagógica na gestão escolar é um ponto positivo e precisa ser mantido depois da pandemia como sendo a grande preocupação dos líderes escolares”, sintetizou Silva. Para o especialista, a gestão pedagógica emergiu no campo de visão das lideranças e acabou assumindo o lugar que sempre deveria ter.