Educação vive crise de financiamento
Não bastasse a pandemia de Covid-19 ter comprometido o direito à aprendizagem dos estudantes pela paralisação do ensino presencial, a emergência sanitária também impacta fortemente o orçamento e o financiamento da educação no ano em curso, assim como nos próximos, tanto do lado das despesas (aumento) quanto das receitas (queda).
A adoção da quarentena como medida de saúde pública para conter a disseminação do novo coronavírus gerou, no curto prazo, uma crise econômica marcada pelo aumento dos gastos governamentais, pela queda na arrecadação de impostos e pelo desemprego.
Na área educacional, a série de estudos Covid-19 – Impacto Fiscal na Educação Básica, lançada pelo movimento Todos pela Educação e pelo Instituto Unibanco em junho, atestou que a pandemia gera custos adicionais de grande vulto, seja com ensino remoto, segurança alimentar, ações de formação, ações de comunicação, compra de materiais extras e protocolos de retomada.
Nas redes estaduais, esses gastos extraordinários são de pelo menos R$ 2 bilhões, apenas nos meses iniciais da crise, incluindo produção de aulas on-line ou por TV, distribuição de materiais de apoio impressos, patrocínio de sinal de internet etc., além da garantia de segurança alimentar aos alunos que deixaram de frequentar a escola. Ou seja, referem-se à ampliação ou estruturação do ensino remoto, a medidas de segurança alimentar (sobretudo aos estudantes em situação de maior vulnerabilidade) e a outras ações. Com gastos específicos da retomada, o montante ainda deve crescer.
Na média das 22 unidades federativas que participaram do estudo, o déficit por estudante é de R$ 1.307,53 no ano – considerando queda de carga tributária estadual vinculada à Educação de 15%, mais gastos adicionais com pandemia no primeiro semestre de 2020. Nas redes municipais, a análise apurada da situação de 82 redes predominantemente de grande porte apontou que os gastos adicionais neste ano serão de R$ 870 por estudante matriculado.
Do lado das receitas, a mesma série de estudos projetou – com base em dados do Tesouro Nacional, em informações consolidadas das receitas de abril e maio e em estimativas de especialistas – que as redes estaduais devem perder, conjuntamente, entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), a depender do cenário de crise econômica.
De âmbito estadual, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é o tributo que, isoladamente, mais contribui para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Fundeb é o principal mecanismo de financiamento da educação básica pública no Brasil.
Fonte: elaboração Jeduca para o guia Financiamento da Educação Básica, com base em dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Com o fechamento parcial do comércio por causa das quarentenas, no primeiro semestre do ano, a arrecadação com o ICMS acumulou queda de 3,8% sobre igual período no ano anterior, informou o Ministério da Economia ao jornal Valor Econômico. No ápice do problema, em maio, a arrecadação de ICMS chegou a cair mais de 20% em relação ao mesmo mês de 2019.
Quanto à coleta de impostos municipais, o segundo levantamento do Todos pela Educação e do Instituto Unibanco finalizado em julho concluiu que, na totalidade, as redes municipais de ensino devem perder entre R$ 15 bilhões e R$ 31 bilhões em tributos vinculados à MDE em 2020, conforme a intensidade da crise econômica.
“A perspectiva fiscal é de expressiva carência de recursos nas redes municipais, assim como foi observado com as redes estaduais no estudo anterior”, registra o novo documento da série Covid-19 – Impacto Fiscal na Educação Básica. “Esse subfinanciamento comprimirá despesas educacionais de custeio e investimento, tão fundamentais para garantir uma saída sustentável da crise, com possibilidade de afetar também a execução de despesas obrigatórias, como o pagamento de salários. O risco, portanto, é de significativa desorganização das redes de educação em todo o país.”
O infográfico a seguir, produzido pelo Instituto Unibanco, demonstra a complexa teia de tributos e vinculações que garantem o funcionamento da educação básica pública no Brasil e que se encontram fragilizados com a crise multidimensional instalada pela pandemia.
No webinário Impactos da pandemia no financiamento da educação, realizado em junho último pela Jeduca, Nalu Farenzena, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), chamou a atenção para os riscos que a área educacional corre atualmente.
Sem medidas que atenuem os impactos negativos (da perda de receita dos impostos), vai ser muito difícil os governos poderem dar conta dos seus compromissos correntes com a educação”, disse ela. “Isso pode penalizar mais a população mais pobre e pode acentuar as desigualdades educacionais, porque a gente sabe que é justamente a população mais pobre que acessa a escola pública.”
A Fineduca assina junto com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação um outro estudo referência sobre a queda das receitas da educação no contexto da pandemia Covid-19 e o impacto na manutenção e desenvolvimento do ensino.
O levantamento gerou uma nota técnica publicada em maio que antevê que, no cenário mais otimista, a receita líquida de impostos no Brasil encolheria 7%, podendo retrair 21% no pior cenário. Para o financiamento da educação básica, a redução de recursos variaria entre R$ 17,2 bilhões e R$ 52,4 bilhões, respectivamente.
“Para cada situação, pode-se antever impactos negativos de diferentes dimensões, de ajustes pontuais a medidas extremas, embora todos eles intoleráveis diante de condições já em muito precárias na provisão da educação pública”, assinala a nota técnica.
O documento também calculou o efeito sobre a receita-aluno por mês, que foi de R$ 519 em 2018 e pode vir a cair a R$ 411 no pior cenário. “Embora a redução possa causar espanto, há que se recordar que o valor de partida, de 2018 (R$ 519), já é muito baixo quando comparado ao valor por aluno dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é três vezes maior, ou às mensalidades de escolas particulares tidas como de boa qualidade”, destaca o estudo.
“Em relação ao Fundeb, que somava R$ 153 bilhões em 2018, um cenário de queda acentuada de valores nas fontes que o sustentam poderia reduzi-lo a R$ 118 bilhões”, dimensiona a presidente da Fineduca.
O que ainda está por vir
A proposta de retomada das aulas presenciais segue imersa em dúvidas em grande parte do mundo. Não se sabe exatamente que protocolos adotar, como deve dar-se a adequação dos espaços nas escolas, a infraestrutura necessária e muito menos quando é de fato seguro reabri-las. Países como Israel fizeram esforços de reabertura precoce que resultaram em novos surtos de Covid-19, escalada de casos para além das escolas e reinterrupção das aulas.
Não obstante todas essas indefinições, uma coisa é certa: na ausência da vacina, preparar o ambiente escolar para oferecer condições seguras de ensino-aprendizagem vai custar caro. Será preciso gastar com a compra de equipamentos de proteção individual (EPI), materiais de higiene e limpeza, reforma de infraestrutura, além de contratação ou aumento da carga horária de profissionais da educação.
“O que a gente viu em estudo e nas experiências internacionais, das redes que já conseguiram se organizar para a retomada, é que as despesas que vieram até então, no primeiro semestre ou um pouco menos, são pequenas perto do total de despesas adicionais que a pandemia vai trazer”, disse Lucas Fernandes Hoogerbrugge, gerente de estratégia política do Todos pela Educação, durante sua participação, em junho, no webinário Impactos da pandemia no financiamento da educação.
De lá para cá, mundo afora, a lista de recursos cogitados para viabilizar a retomada do ensino presencial só aumenta. Com a evolução das pesquisas sobre transmissão aérea de Covid-19, por exemplo, ganha força, nos Estados Unidos, uma corrente que defende condicionar a reabertura das escolas à instalação, nas salas de aula, de sofisticados sistemas de filtragem de ar.
Mas no Brasil, em 12 de agosto último, o que era temor de muitos educadores começou a virar realidade com o anúncio, pelo Ministério da Educação (MEC), de cortes substanciais. “Conforme Referencial Monetário recebido pelo Ministério da Economia, a redução de orçamento para suas despesas discricionárias foi de 18,2% frente à Lei Orçamentária Anual 2020 sem emendas. Esse percentual representa aproximadamente R$ 4,2 bilhões de redução”, informou o MEC em nota oficial.
“Em razão da crise econômica em consequência da pandemia do novo coronavírus, a Administração Pública terá que lidar com uma redução no orçamento para 2021, o que exigirá um esforço adicional na otimização dos recursos públicos e na priorização das despesas”, acrescentou o comunicado.
Em busca de soluções
Segundo projeções divulgadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em junho, a economia mundial deve sofrer retração de 4,9% em 2020 por causa da Covid-19. No Brasil, a queda esperada pelo órgão para o Produto Interno Bruto (PIB) é de 9,1%. No Banco Central do Brasil, as previsões do Relatório Focus de 17 de agosto indicam decréscimo de 5,5% no PIB do país.
Do ponto de vista do emprego, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), a taxa de ocupação das pessoas de 14 anos ou mais de idade fechou o primeiro semestre de 2020 em 13,3%, ante 11% em dezembro de 2019.
Menos emprego resulta em menor poder de compra da população e, portanto, em menor arrecadação para bancar a educação. Menos emprego reflete, também, em menor receita para o Salário-Educação, que é o recurso de manutenção e desenvolvimento da educação básica (MDE) gerado a partir da alíquota de 2,5% da folha de pagamento das empresas públicas e privadas que contribuem com a Previdência. E, por fim, menos emprego leva ao aumento da pressão por vagas nas redes públicas de ensino.
Para quebrar esse ciclo vicioso, especialistas da educação defendem intervenções emergenciais à altura do compromisso constitucional de garantir a educação, mesmo diante dos desafios trazidos pela pandemia.
Uma dessas medidas é a aprovação imediata no Senado Federal da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/2015, que torna o Fundeb permanente e prevê que o aporte complementar da União ao fundo aumente de 10% para 12% em 2021, subindo gradativamente até 23% em 2026.
Outra possibilidade é a aprovação do recém-apresentado PL 3.165/2020, que, por causa do estado de calamidade pública instalado com a pandemia, cria um auxílio federal de R$ 31 bilhões aos estados, municípios e ao Distrito Federal para aplicação, ainda em 2020, nas redes públicas de educação básica. Também está em trâmite o PL 3.551/2020, que busca garantir recursos federais, distribuídos por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), para ações emergenciais para a Covid-19.
“Neste ano, já foram aprovadas duas medidas de apoio da União aos estados e municípios em função da perda de receitas, mas nenhuma previu vinculação à MDE, daí a importância do PL 3.165/2020”, salientou Nalu Farenzena, da Fineduca.
Lucas Fernandes Hoogerbrugge, do Todos pela Educação, endossou a posição de Nalu e celebrou a natureza pluripartidária que marcou o nascimento deste PL e lhe confere mais chances de prosperar.
“Agora, em paralelo, a gente tem que mostrar que a nossa crise não é só da educação, é uma crise que transborda para a sociedade”, afirmou. “A gente está falando num impacto tão direto na vida das famílias, dos estudantes, das crianças, que, da mesma forma que as filas que se formam nos hospitais são evidentes, essa crise vai ficar muito evidente na educação. Se a gente não levantar esse cartão vermelho e falar ‘olha, a gente precisa agora priorizar isso’, a gente vai ter um problema gigantesco.”