Equidade

Desafios para uma educação antirracista: das raízes históricas às conquistas legais

A construção de uma agenda antirracista para a educação brasileira é tarefa essencial para a promoção da equidade em uma sociedade atravessada por desigualdades e estruturas históricas de exclusão.

Especialista no tema e ex-ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes pesquisa caminhos possíveis para uma educação antirracista há décadas. Em webinário promovido pelo canal Tudo Educa, em junho de 2020, a professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) destacou a importância de compreender a construção histórica dessa agenda frente ao racismo estrutural da sociedade brasileira. A construção de uma educação antirracista pode ser compreendida, nesse sentido, como um projeto político que expande as conquistas legais que o movimento negro obteve nas últimas décadas em nosso país, desde a instituição do racismo como crime inafiançável e imprescritível na Constituição de 1988 até a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira através da Lei nº 10.639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Nilma Lino Gomes destacou que, antes dessas conquistas, a temática do racismo era vista de forma segregada em nossa sociedade, mesmo no campo emancipatório e progressista, pois havia uma resistência de incluir o racismo no centro da pauta da classe trabalhadora. É a partir dessas legislações que sujeitos e coletivos negros conseguem afirmar direitos e conquistar políticas. Não se trata, portanto, de um mero avanço legal, e sim de um avanço político, cultural, estético, levando a uma série de iniciativas inclusive no campo educacional. O reconhecimento do racismo como um crime torna o combate a ele um direito da população brasileira e um dever do Estado, implicando o desenvolvimento de iniciativas antirracistas em todo o aparato da administração pública. Como Nilma Lino Gomes ressalta:

“Vivemos um momento no mundo e no Brasil muito difícil, especialmente para os setores que têm um histórico de luta contra a exclusão, a desigualdade e as opressões. E a população negra faz parte desse grupo. Quando pensamos educação antirracista, estamos pensando em uma educação que não somente considere que o racismo é crime, ratificando o que a Constituição federal de 1988 diz, mas que entende que é possível educar e formar para as relações étnico-raciais. Isso tudo que nós aprendemos e organizamos como forma de pensamento tem muito a ver com nossa ancestralidade, com o que nos foi deixado como legado, com o que aprendemos em nossas famílias, com nossas mães e avós negras.”

Uma educação antirracista não apenas resgata a história de desigualdade que produz o atual tecido da nossa realidade excludente, como também celebra e visibiliza o legado de resistência política e cultural de famílias e comunidades negras. Nesse sentido, a construção de uma educação antirracista compreende questões culturais, sociais e políticas, desde a perspectiva individual de cada sujeito até a conformação de agendas coletivas, públicas e institucionais. De acordo com Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, “para além de criar uma agenda na qual se questione as estruturas de poder, sabendo do lugar da branquitude, o desafio atual é criar uma agenda – coletiva e individual – de enfrentamento ao racismo”.
Entre ações e perspectivas individuais e subjetivas e mudanças nas estruturas sociais e políticas que integram os sistemas educacionais, a promoção da equidade racial é tão urgente quanto complexa. É preciso, portanto, compreender as raízes históricas da conformação da educação pública em nosso país, assim como reconhecer as agências possíveis de jovens, educadores e gestores para a transformação do cenário atual.

Origens históricas

Geógrafa e professora, Iara Viana participou de um recente webinário sobre os desafios para uma educação antirracista, destacando a relação intrínseca entre as desigualdades raciais e o direito de aprender. O evento, promovido pelo Instituto Unibanco em setembro de 2020, faz parte de uma série de lives que reuniram especialistas, gestores, educadores e estudantes para debater temas relacionados aos desafios da gestão pública em tempos de crise. Durante o webinário, Viana falou sobre como “o racismo é o processo através do qual a raça foi reproduzida através da história”, de modo que a própria construção de raça como elemento constitutivo das identidades e das relações humanas e sociais é fruto de um projeto político destinado a operar na reprodução de desigualdades, processo esse que se compreende enquanto racismo estrutural.
Desde o século 19, com autores como Gobineau e Lombroso, muitas teorias raciais foram construídas em nosso país, engendrando políticas públicas de exclusão retroalimentadas por uma cultura de manutenção da supremacia branca no acesso a direitos e na ocupação de espaços de poder. Se, atualmente, o acesso à Educação Básica é relativamente universal, alcançando a maior parte da população, ao nos debruçarmos sobre os indicadores de aprendizagem e evasão as consequências atuais desse projeto político segregador são inegáveis. De acordo com os microdados do Censo Escolar (INEP/2018), enquanto entre jovens brancos de 15 a 17 anos a taxa de abandono é de 5%, entre estudantes negros esse índice sobe para 7,8%.

De acordo com Iara Viana, há um embranquecimento das turmas à medida que avançamos nas séries da Educação Básica. Todavia, a despeito das inegáveis evidências da desigualdade racial, o campo da educação ainda é muito resistente no que se refere à nomeação das violências e exclusões reproduzidas no espaço escolar. Importa, por conseguinte, diferenciar o racismo do bullying e demais formas de discriminação. A desigualdade racial está ancorada em estruturas socioeconômicas e políticas históricas e sistêmicas, de modo que se diferencia na profundidade e extensão de suas consequências na vida e na trajetória não apenas de sujeitos, mas de comunidades inteiras. Os efeitos individuais e coletivos do bulliyng, por mais perversos que possam ser, não têm a capilaridade sistêmica do racismo em nossa sociedade.

Nomear as violências ocorridas no espaço escolar permite que educadores, gestores e comunidade sejam capazes de transformar as relações educacionais, enfrentando as perpetuações do racismo e rompendo com elas. Ao compreender o impacto de uma perspectiva pluriversal na educação, seremos capazes de não apenas enfrentar os efeitos do racismo, mas também de inserir as diversidades – étnico-racial, religiosa, cultural, de gênero, de classe – como valores fundamentais nos processos pedagógicos, desde os conteúdos até os materiais e metodologias aplicadas. A construção do espaço escolar como um ambiente que não apenas enfrenta episódios interpessoais de racismo, mas que também promove ativamente a inclusão e a equidade, contribui para o fortalecimento da identificação e da sensação de pertencimento de sujeitos negros, fundamentando de fato um processo educacional antirracista.

A escola é uma instituição de poder e, dessa forma, encontra-se atravessada pelas desigualdades raciais constituintes de nosso país. Iara Viana destacou, por exemplo, dois decretos do século 19 que ilustram as origens do racismo estrutural no espaço escolar: o Decreto nº 1.333/1854, que proibia a admissão nas escolas públicas de pessoas escravizadas e condicionava a matrícula de pessoas negras, de maneira geral, à “disponibilidade do professor”; e o Decreto nº 7.031-A/1878, que determinava que pessoas negras libertas, a partir dos 14 anos, poderiam se matricular apenas no horário noturno.

Apesar de esses decretos não serem mais válidos, podemos inferir que seu poder de funcionamento simbólico e histórico ainda está em vigor, haja vista os indicadores de exclusão racial que atravessam toda a Educação Básica. Viana compreende assim a profundidade do desafio, de que a construção de uma educação antirracista é uma questão tanto histórica quanto sistêmica. É necessário, dessa forma, compreender as bases que estruturaram e ainda engendram mecanismos de exclusão no espaço escolar a fim de transformá-lo de maneira efetiva e eficaz.

Caminhos possíveis

Essas foram as bases teóricas e os referenciais pedagógicos e políticos que nortearam a ação transformadora da gestão liderada pela geógrafa. A partir de 2016, através do programa Ubuntu, no contexto da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, Iara Viana coordenou a formação dos Núcleos de Pesquisa e Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diáspora (NUPEAAs), articulando iniciação cientifica, protagonismo juvenil, áreas de conhecimento e educação das relações étnico-raciais. Os NUPEAAs foram instalados em diversas escolas públicas do sistema de ensino mineiro, possibilitando a cooperação entre a comunidade escolar, as universidades públicas e o movimento negro. Essa arrojada articulação não apenas visibilizou as desigualdades raciais da educação, como possibilitou a promoção da equidade e do direito à aprendizagem de maneira sistêmica e transversal.

Práticas como essa, lideradas pela gestão escolar, demonstram caminhos possíveis para a construção de uma agenda antirracista robusta e capaz de transformar tanto indicadores quanto mentalidades que sustentam a desigualdade étnico-racial. É também o caso da experiência de Celina Januário Moreira, educadora e gestora escolar há 20 anos no Espírito Santo. Moreira, uma das participantes do webinário, considera que é preciso pensar a educação antirracista com responsabilidade e compromisso, sem segmentar a questão racial como um tema a ser tratado apenas em novembro ou pelos educadores da área de humanas.

Como gestora da EEM Fioravante Calimã (ES), Celina Moreira construiu um programa de incentivo à iniciação científica e cultural, integrando ensino regular e Educação de Jovens e Adultos. Além dessa integração, que fomenta o protagonismo negro e juvenil, a gestão envolveu os educadores na promoção de pesquisas sobre a história e as condições de vida das pessoas negras no município onde a escola está sediada. Esse resgate, combinado a outras ações de promoção da autoimagem e da autoestima negra, impulsionaram o engajamento tanto de estudantes quanto de educadores na pauta antirracista, segundo a gestora:

“Nós sabemos que há um distanciamento da escola em relação aos alunos e alunas negras. Os alunos estão na escola, mas eles precisam saber do lugar deles. Para a escola contribuir para o desmonte da estrutura racial, ela precisa se desfazer da ideia de democracia racial. A comunidade escolar representa a sociedade, e nossa sociedade é racista e nossos alunos reproduzem esse comportamento.”

Em um sistema de ensino atravessado por indicadores e evidências subjetivas e materiais, que apontam para a profunda desigualdade racial, o enfrentamento de suas causas e consequências é uma condição sem a qual é impossível pensar a educação de maneira geral. O processo de aprendizagem está ancorado, em linhas gerais, nas imagens, referências e conexões que o estudante realiza entre a sua autoimagem e o contexto no qual está inserido. Por conseguinte, o poder da representatividade vai muito além do fortalecimento da autoestima, pois tem uma conexão direta com a aprendizagem, de modo que a gestão possui a responsabilidade de desenvolver propostas e estratégias pedagógicas para enfrentar os efeitos e as causas do racismo. Se a gestão escolar possui responsabilidades na transformação do cenário atual, como lembrou Ricardo Henriques no início desta reflexão, uma agenda antirracista para a educação é um compromisso de todas e todos, tanto do ponto de individual quanto coletivo.