Gestão

Volta às aulas presenciais: preservando a vida e o direito à educação

No segundo semestre de 2021, diversos governos estaduais e prefeituras anunciaram planos para a retomada gradual das atividades escolares em caráter presencial. Em meio à pandemia global de covid-19, muitos foram os desafios enfrentados em nosso país, uma das nações com o maior número de infecções e mortes relacionadas ao coronavírus no mundo. A proporção da pandemia no Brasil afetou diretamente os calendários escolares, de modo que, enquanto a média mundial de paralisação das aulas é de cinco meses e meio, por aqui permanecemos sem atividades presenciais por mais de um ano.

O avanço da vacinação e a subsequente diminuição das mortes e infecções colocam o dilema da retomada das atividades presenciais para gestores, profissionais da educação, estudantes e famílias. De que maneira podemos garantir enquanto sociedade o direito à vida, preservando o acesso à educação e a aprendizagem? Qual é o papel da gestão e das secretarias e, sobretudo, de que maneira é possível estabelecer laços de confiança entre as redes de ensino e as comunidades? Além de buscar recomendações de especialistas tanto sanitários quanto educacionais, para a construção dos planos de retomada é fundamental considerar os aprendizados do último ano e a perspectiva de toda a comunidade escolar.

Debatendo parâmetros de segurança

Entre os diversos dilemas trazidos pela covid-19, a revisão contínua de parâmetros de biossegurança é um dos principais temas que dominam o debate público. Como saber quando é seguro reabrir escolas, parques públicos ou restaurantes? Quais medidas diminuem riscos? Como reavaliar continuamente os cenários e garantir aos cidadãos algum nível de previsibilidade? O contexto atual, permeado por dúvidas e inseguranças justificadas, desafia gestores públicos e toda a sociedade a buscar cada vez mais informação científica e qualificada. É preciso ouvir os especialistas sanitários, as organizações de saúde e, no caso específico das escolas, os profissionais de educação implicados diretamente na condução da reabertura.

Para Roberto Medronho, infectologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a retomada das aulas presenciais em outros países demonstrou que as escolas não se consolidaram como foco de infecções e disseminação do coronavírus, sobretudo ao adotar protocolos de biossegurança. Em entrevista recente ao site UOL, o especialista destacou como a covid-19 afeta de maneira diversa adultos e crianças:

"Os adultos, eles são mais infectados, eles transmitem mais o vírus do que as crianças que, inclusive, possuem um quadro mais leve e uma baixa mortalidade, felizmente, em relação ao Sars-Cov-2 ."

Ao considerar as evidências cientificas que apontam para o menor impacto da covid-19 entre crianças, alguns especialistas argumentam que os prejuízos sociais provocados pelo prolongamento da suspensão das atividades presenciais prejudicariam mais do que uma reabertura segura. O médico infectologista Marco Aurélio Sáfadi defende que a retomada deve ser feita assim que seja possível garantir as condições sanitárias adequadas. Segundo o especialista:

"O fechamento das escolas causa diversos impactos no desenvolvimento das crianças, desde o atraso na aprendizagem até problemas na nutrição, na saúde mental, na socialização e na proteção contra a violência."

De acordo com uma pesquisa publicada recentemente na revista científica Science, a taxa de infecção em escolas é proporcional ao rigor das medidas de segurança implementadas. Dessa forma, as prevenções não farmacológicas – como uso de máscaras, higiene das mãos, ventilação e distanciamento físico –, se aplicadas de maneira contundente, seriam suficientes para garantir a segurança sanitária da comunidade escolar. A pesquisa demonstrou que, ao se adotar tais medidas, a reabertura não contribuiu para o aumento substancial de casos, internações ou até mesmo óbitos.

Apesar de não possuir a mesma gravidade entre crianças do que entre adultos e idosos, a covid-19 ainda é um risco para a saúde e a vida dos menores de 18 anos. No Brasil, somente em 2021 o coronavírus vitimou mais de 1.500 adolescentes entre 10 e 19 anos. O impacto entre crianças e adolescentes em nosso país é ainda maior quando comparado aos efeitos do coronavírus no restante do mundo. Segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe) compilados pelo Estadão, em relação aos óbitos provocados pela covid-19 entre crianças e adolescentes, o Brasil fica atrás apenas do Peru: enquanto em nosso país a cada 1 milhão de crianças, 32 perderam a vida para a doença, no Peru foram 41 por milhão.

A pesquisa também ressalta o perfil racial das crianças vitimadas pela covid-19 no Brasil: 57% eram negras (pretas e pardas), 21,5% brancas, 0,9% asiáticas e 16% não tiveram perfil racial identificado. Além disso, as crianças indígenas também foram afetadas de maneira desproporcional. Embora correspondam a apenas 0,5% da população, 4,4% das crianças mortas pelo coronavírus eram indígenas. Segundo Paulo Martins-Filho, epidemiologista e professor da Universidade Federal do Sergipe (UFS), a influência das condições socioeconômicas não pode ser ignorada:

"Para as crianças, a pandemia também foi associada a profundas mudanças educacionais, sociais e psicológicas, insegurança alimentar e aumento do risco de resultados adversos graves que podem resultar em morte em regiões mais carentes. A mortalidade por covid-19 de crianças em países de alta renda é extremamente rara, mas a doença surgiu como uma nova causa de morte entre crianças em comunidades pobres, conforme observado nas regiões Norte e Nordeste do Brasil."

Em entrevista à CNN, Ana Escobar, pediatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), disse que os índices também se destacam quando comparados a outras enfermidades:

“Das causas naturais por doenças, sem contar acidentes ou violência, a covid-19 já é, na faixa etária de 10 a 19 anos, a causa de óbitos número 1. Já passou do câncer, por exemplo.”

O retorno seguro não pode, portanto, ignorar o impacto da covid-19 entre os menores de 18 anos apenas comparando-o com os índices entre adultos. É preciso compreender os riscos específicos que crianças e adolescentes correm, a fim de garantir as condições sanitárias adequadas à retomada. Na avaliação da especialista, a reabertura é possível se feita de forma segura, com o corpo de funcionários devidamente vacinado e em consonância com as medidas restritivas:

“O ambiente escolar é seguro desde que as instituições mantenham o distanciamento de um metro [entre as pessoas]. Cada escola tem que ver quantos alunos cabem em uma sala para fazer o distanciamento. Adotar máscara para todo mundo acima de dois anos, higienização das mãos e arejamento dos espaços. Com isso, o ambiente escolar fica seguro.”

Direito à educação: em luta contra os retrocessos

No primeiro semestre de 2021, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) elaborou um documento com dados sobre os efeitos da pandemia nos índices de exclusão escolar no Brasil. De acordo com o último censo escolar, no final de 2020 mais de 5 milhões de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos estavam fora da escola. Desses, mais de 40% se encontravam na faixa dos 6 aos 10 anos, grupo etário no qual o acesso à educação era praticamente universal antes da covid-19.

O cenário em nosso país é grave e urgente. Por um lado, o avanço lento da vacinação preocupa especialistas sanitários e retarda a necessária previsibilidade para o planejamento de políticas públicas; por outro, direitos fundamentais, como a educação, correm o risco de sofrer retrocessos que equivalem a duas décadas de trabalho e conquista. A exclusão escolar, que esteve em queda entre 2016 e 2019, voltou a crescer, sobretudo entre os grupos etários de maior risco: entre 4 e 5 anos e de 15 a 17 anos. Além dessas faixas etárias, o Censo Escolar (2020) indica que crianças e adolescentes negros e indígenas, os que vivem em áreas rurais e aqueles cujas famílias possuem menor renda são ainda mais afetados, constituindo mais de 70% daqueles que estão fora da escola.

Além do acesso à educação ter sofrido um grande retrocesso, a pandemia também impactou o direito à aprendizagem, comprometendo o planejamento e a gestão escolar. Uma pesquisa realizada pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), com apoio do Unicef e do Itaú Social, apurou que até fevereiro de 2021 apenas 26,4% das redes de ensino haviam concluído a preparação para o ano letivo corrente. Há um processo de desescolarização em curso, no qual os direitos de crianças e adolescentes permanecem sendo violados. Entre as recomendações do Unicef estão investimento na metodologia de Busca Ativa; foco na comunicação comunitária; ampliação do acesso à internet; mobilização das escolas; e fortalecimento dos sistemas de garantia de direitos das crianças e dos adolescentes em todas as suas interseccionalidades, buscando promover a equidade de gênero, raça e classe.

Outra pesquisa, resultado de uma parceria entre o Instituto Unibanco e o Insper, buscou compreender a dimensão da perda da aprendizagem em 2020. Uma vez ausentes as avaliações somativas nesse ano, o estudo propôs compor uma estimativa de aprendizagem dos estudantes através de simulações e de um método comparativo. Os resultados apontam para um cenário alarmante, sobretudo para os concluintes do Ensino Médio. Quem concluiu o segundo ano em 2020 possivelmente inicia o terceiro ano em 2021 com 10 pontos a menos de proficiência em Matemática e 9 a menos em Língua Portuguesa. É importante ressaltar que se espera que, ao longo do Ensino Médio, o estudante obtenha 20 pontos em Língua Portuguesa e 15 em Matemática, de modo que a perda estimada é bem significativa.

Segundo Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, a retomada das aulas presenciais é crucial para se evitar uma tragédia ainda maior na educação. Na esteira da avaliação do Unicef, Henriques entende que, dado o momento crítico da educação brasileira, as crianças e jovens devem voltar a frequentar as escolas.

“O Brasil é o país que ficou com mais tempo de aulas presenciais suspensas. Um recente estudo da Unesco determinou que a média mundial foi de mais ou menos cinco meses e meio de salas de aula fechadas; na América Latina são 10 meses, no Brasil ultrapassamos 13 meses. Precisamos olhar para o futuro dessas crianças e jovens e garantir uma retomada das aulas presenciais com o menor número de interrupções possível para que a educação entre na rota que a gente tinha antes.”

Um levantamento feito pela consultoria Vozes da Educação, encomendado pela Fundação Lemann, identificou 26 redes estaduais e 23 redes municipais de capitais que determinaram a volta às aulas em agosto, para combater a evasão e retomar a rota de aprendizagem. Para o superintendente, a retomada depende do compromisso e da confiança dos profissionais de educação, dos estudantes, das famílias e, obviamente, do avanço da vacinação desses profissionais e de toda a população. Segundo Henriques, as pesquisas e as evidências indicam que a reabertura em si não agravaria a curva pandêmica, ainda que haja risco de contaminação.

Várias pesquisas, realizadas no mundo todo, demonstram que voltar às aulas presenciais não aumentou a contaminação pela covid-19 na comunidade escolar. Estamos sujeitos ao aparecimento de novos casos sim, pois ainda há circulação do vírus, mas as evidências apontam nessa direção. As redes de ensino do Brasil já contam com programas de biossegurança. Temos escolas que ainda não estão em condições ideais e temos que trabalhar para adequá-las urgentemente.”

Apesar das dificuldades estruturais enfrentadas por escolas e redes de ensino de todo país, o superintendente aponta para as experiências bem-sucedidas como referencial do que pode ser realizado. O Instituto Unibanco, por exemplo, estabeleceu parcerias nessa direção com orientações sobre aferição de temperatura, uso correto de máscaras, regras de distanciamento e circulação. Sobre a resistência de alguns sindicatos de professores em relação à volta às aulas, Ricardo Henriques compreende que a insegurança é legítima, haja vista a diversidade de contextos que temos em nosso país:

“A gente vive em tempos de insegurança e todo medo é legítimo. São muitas as dúvidas, cada cidade brasileira tem uma realidade, há muita diferença territorial, então a preocupação de alguns sindicatos de professores é legítima. No entanto, felizmente, no Brasil existem evidências muito bem-sucedidas derivadas de bons protocolos implementados com diálogo, transparência e divulgação de dados.”

Os desafios de infraestrutura são os que melhor ilustram o tamanho da problemática da retomada às aulas presenciais em um país de proporções continentais como o nosso. Dados do Censo Escolar indicam que o número de escolas sem banheiros e acesso à banda larga aumentou entre 2019 e 2020. Enquanto, em 2019, 3,5 mil (2,4%) escolas públicas não possuíam banheiro, em 2020 esse número cresceu para 4,3 mil (3,2%). E também mais de 35 mil escolas não têm saneamento básico, como coleta de esgoto e lixo. Além da falta de estrutura apontada pelo Censo, dados da Undime apontam que quase 6 em cada 10 prefeituras ainda não desenvolveram protocolos de biossegurança para reabrir as escolas.

Frente a esse cenário, Ricardo Henriques considera que é preciso investir em protocolos de segurança e na infraestrutura das escolas, com base nas experiências bem-sucedidas espalhadas pelo nosso país, fortalecendo os laços e a confiança entre os diferentes atores da comunidade escolar:

“A retomada é crucial, a gente precisa evitar uma tragédia ainda maior na educação. Não há fatalismo na educação, mas o risco do fracasso escolar para uma quantidade enorme de estudantes. (...) Nesse momento, precisamos de confiança mútua de que os profissionais de educação, dos professores aos merendeiros, irão trabalhar para que os protocolos sejam seguidos e que as informações cheguem às famílias; que os estudantes e seus pais vão informar corretamente a situação de saúde. (...) A gente precisa de uma escola pública que mantenha o seu DNA: que seja humana, flexível, acolhedora, que a escuta seja forte e que todos cuidem de si e uns dos outros. Esse segundo semestre é vital para a educação como um todo, em particular para a educação pública e para os mais vulneráveis. A gente precisa se unir para recuperar o tempo perdido na pandemia e a perda de aprendizagem, não dá mais para adiar esse processo.”

Os sindicatos, por sua vez, apontam para a ausência de um plano de retomada orientado de maneira articulada entre os diferentes níveis da administração pública (federal, estadual e municipal) que garanta condições sanitárias adequadas para toda comunidade escolar. Nesse sentido, se é possível identificar inciativas coerentes por parte de algumas secretarias, o posicionamento do governo federal, além de genérico, não vem acompanhado de garantias orçamentárias e orientações mais robustas a fim de conferir maior previsibilidade e segurança à volta das atividades presenciais.

De acordo com um levantamento da Central Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), até julho de 2021 o Ministério da Educação (MEC) não havia executado nenhuma parcela dos R$ 1,2 bilhão destinados à restruturação das escolas. Em nota, a CNTE destacou que nesse mesmo período, enquanto negligenciava o dever de garantir as condições de infraestrutura necessárias à abertura, o MEC recomendou, através de comunicado, a retomada das aulas presenciais nos estados e municípios do país, sem dar garantias ou ao menos anunciar um plano para a execução desse orçamento.

Até o momento o ministério resumiu sua ação apenas à edição de um Guia de Implementação de Protocolos de Retorno das Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica, com orientações sobre o funcionamento das atividades escolares dentro dos parâmetros de segurança, sem, contudo, fornecer as condições materiais para o cumprimento das mesmas. Além disso, enquanto os trabalhadores da educação se organizaram pela defesa da Lei da Conectividade – projeto que prevê o acesso gratuito à internet para estudantes de escolas públicas –, o governo entrou com recurso junto ao Supremo Tribunal Federal para tentar barrar a iniciativa.

Em todo o país, as secretarias estaduais e municipais de Educação planejam a retomada. Estados como Rio de Janeiro e Pará já elaboraram plano de retomada das atividades presenciais prevendo medidas para a garantia dos parâmetros de segurança. No Rio de Janeiro, a Secretaria Estadual de Educação coordena junto à Secretaria de Saúde um mapeamento dos níveis de infecção, suspendendo ou autorizando as aulas presenciais nos municípios de acordo com os riscos sanitários. No Pará, o planejamento das secretarias municipais estabeleceu parâmetros adequados às diferentes realidades territoriais, garantindo maior exequibilidade aos planos de retomada. Além disso, o retorno acontecerá de maneira gradual, inicialmente com 25% dos estudantes em sala. Os profissionais da educação demonstram preocupação, sobretudo pelo fato de o esquema vacinal desses trabalhadores ainda não estar completo.

Desafios do retorno: construindo escolas sem muros

Nesse cenário de volta das atividades presenciais, as comunidades escolares estão diante de grandes desafios. Estreitar ou até mesmo recuperar vínculos perdidos, garantir a segurança de todos e retomar os processos de aprendizagem, enfrentando os riscos do retrocesso, do abandono e da evasão, são questões enfrentadas por gestores nos diferentes contextos do nosso país. Para Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da Undime e dirigente municipal de educação de Sud Mennucci (SP), esse é o momento em que a organização e o planejamento das redes são fundamentais, sobretudo no que se refere à realização de busca ativa para o combate à evasão e a realização de matrículas a qualquer tempo:

“Nós esperamos que as redes retomem suas atividades, que façam um processo de busca ativa efetivo para entender quem não deu resposta às atividades não presenciais, quem não estava na escola e continuou fora dela nesse período. Também falar da importância da execução de matrículas de quem estiver fora da escola a qualquer tempo, em qualquer momento. Como gestores, nós temos essa obrigação e esse compromisso, como cidadãos, receber os alunos nas nossas escolas, receber a qualquer momento como ato de cidadania plena.”

Nesse momento de retomada, é importante garantir, de um lado, o direito à vida, aplicando protocolos de biossegurança, e, de outro, o direito à aprendizagem, através de metodologias de combate à evasão, de acolhimento e diálogo com a comunidade escolar. Para Garcia, a matrícula em qualquer tempo significa inclusão, cidadania e garantia de direitos.  Dessa forma, é a pedra angular do retorno às atividades presenciais associada a iniciativas de busca ativa que enfrentem a problemática da evasão:

“A Undime, durante a pandemia, realizou diversas pesquisas a fim de desenvolver políticas públicas que atendessem aos problemas reais e evidentes do país. Uma questão muito importante, apontada por mais de 70% dos dirigentes, é a busca ativa escolar como principal estratégia para a inclusão dos alunos que neste momento estão silenciados durante a pandemia.”

A pesquisa citada por Garcia averiguou também a necessidade de políticas públicas de suporte aos diretores para a retomada, com material de apoio e avaliações diagnósticas para identificar as lacunas de aprendizagem, possibilitando o planejamento adequado das atividades pedagógicas. Para Ítalo Ferreira, chefe de educação do Unicef Brasil, o processo de reabertura segura e sustentável não pode acontecer sem uma articulação que envolva todos os atores: professores, equipe gestora, comunidade escolar, estudantes e suas famílias.

“É fundamental a gente entender a defesa institucional da rematrícula a qualquer tempo como garantia do direito à educação. Compreendendo que o direito à educação é inalienável e não pode esperar o início do ano letivo e tem como responsáveis um conjunto de atores: o Estado, a família e a sociedade. Quando uma criança ou um adolescente está fora da escola, há um direito violado e ele deve ser restaurado o mais rápido possível, independentemente de quando estivermos no ano letivo.”

Enquanto a rematrícula a qualquer tempo garante o acesso à educação, outras medidas são importantes para acolher os estudantes após e durante uma crise que afetou sobremaneira suas capacidades socioemocionais. Priscilla Oliveira Silva Bomfim, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF),  liderou um estudo sobre o impacto da pandemia na saúde mental de crianças e adolescentes, observando a mudança comportamental ocorrida durante os meses de isolamento social:

“A maneira como as crianças processam a informação é muito diferente da dos adultos. Como mãe e com cabeça de cientista, comecei a observar os sinais que meu filho estava me dando. Percebi que ficou mais irritado e retraído. Não queria mais dormir sozinho, ficou com medo de tudo. Na época, imaginei como estariam os filhos de pais que trabalham na linha de frente, por exemplo, e comecei a buscar dados bibliográficos de pandemias, epidemias, furacões. Nessa literatura, vimos relatos de crianças que foram acompanhadas até os 18 anos e desenvolveram transtornos. Fui juntando isso para que a comunidade científica também olhasse para essas crianças e adolescentes que estão vivendo a pandemia de covid-19.”

A importância do acolhimento tanto de estudantes quanto dos profissionais de educação tem sido destacada por muitos gestores e pesquisadores. No Sudeste, na capital paulista, a experiência da Escola Estadual Professor Milton da Silva Rodrigues foi de um retorno gradual para a modalidade presencial. O gestor Osmar Carvalho também considera fundamental o acolhimento e a escuta dos estudantes em um planejamento de boas-vindas. É fundamental, para Carvalho, compreender como cada ator está se sentindo após todo esse tempo longe da escola, sobretudo considerando as possíveis perdas de pessoas e processos de luto provocados pela pandemia. Mais do que nunca, as habilidades socioemocionais devem ser desenvolvidas em sala de aula.

Em Manaus (AM), Lúcia Cristina Santos, diretora da Escola Municipal Professor Waldir Garcia, em evento do Centro de Referências em Educação Integral (Crei), compartilhou como a criação de um grupo terapêutico para os funcionários da escola e estudantes, com a participação de psicólogos, foi fundamental no processo de retomada:

“A gente tem feito a Roda dos Sentimentos e essas discussões no dia a dia. A gente precisa mais que nunca ter essa sensibilidade. Quando a gente retornou, a gente teve uma preocupação muito grande com o emocional das pessoas. Em escola que não proporciona o acolhimento, vem o adoecimento.”

Maria Thereza Marcílio, presidente da ONG Avante – Educação e Mobilização Social, também participou do evento promovido pelo Crei. A especialista considera que a retomada deve pensar a escola de maneira integrada à comunidade, privilegiando espaços abertos e alternativos, garantindo a construção de um espaço seguro:

“A gente tem que pensar uma escola literalmente sem muros. Não pode ter mais escola sem ventilação, isolada, fechada nos seus muros. As crianças não devem e não podem ficar todas numa sala o tempo inteiro, quatro horas por dia. A ideia é ter espaços alternativos, dentro e fora da escola. Essa é uma oportunidade única para a escola se abrir para a comunidade. Se tiver praça perto, vamos levar as crianças da escola. Se a praça não está bem cuidada, vamos cobrar limpeza.”

A pandemia traz, dessa forma, um desafio positivo ao provocar a gestão a repensar metodologias e processos pedagógicos que estavam estagnados. Já havia um desejo de formatos menos engessados e de maior investimento no diálogo e na relação com a comunidade na qual a escola está inserida. A chamada “ocupação extensa” descrita por Marcílio é uma estratégia que combina medidas de segurança sanitária – garantindo circulação do ar e distanciamento social – com estratégias pedagógicas de integração da escola com a comunidade:

“Vamos nos articular com o pessoal da limpeza urbana para o entorno da escola estar limpo, para podermos utilizar as calçadas. Vamos falar com o pessoal do trânsito para isolar uma rua, para as crianças poderem brincar se eu não tenho pátio dentro da escola. Diversas coisas devem ser repensadas, que podem ajudar a escola a ser mais próxima, que dialogue mais com seu entorno, que traga mais a vida ao seu entorno para dentro, transformando a escola num lugar de vida, diálogo e convivência.”

Marcílio também aponta que a pandemia possibilitou um estreitamento entre as famílias e as escolas, pois a educação entrou nas casas. Educadores e responsáveis forjaram uma parceria que, para a especialista, deve ser reforçada na retomada das aulas presenciais:

“Vamos fazer encontros com os pais em horas que eles possam participar, sobre temas que são importantes para eles, não para falar mal dos filhos ou para explicar os conteúdos da escola apenas. Mas encontros para dialogar, para estabelecer uma coisa mais participativa e viva. Essa nova escola tem que acontecer com segurança, preservando o direito à vida, à saúde e à educação.”

A Undime do Pará promoveu recentemente um webinário para abordar a retomada das atividades presenciais, defendida pela instituição. Estado com grandes proporções territoriais, o Pará enfrenta dilemas muito representativos, sobretudo do ponto de vista infraestrutural. Para Roselma Milani, presidente da Undime/PA e secretária municipal de Educação de Canaã dos Carajás, a prioridade atual é “não deixar que a educação sucumba aos escombros da pandemia”.

A professora Elanne Menezes compartilhou o planejamento para o retorno às aulas presenciais em dois municípios paraenses, Eldorado do Carajás e Pacajá. Com cenários diversos e de regiões diferentes, os municípios conseguiram elaborar um plano comum para a retomada, atendendo às suas especificidades e observando os parâmetros de biossegurança necessários ao controle pandêmico. Para a educadora, o primordial é que o retorno não seja guiado de maneira arbitrária, articulando a volta às aulas de forma gradual, por exemplo, através de critérios etários ou mesmo por séries e turmas. Dessa forma, o plano envolveu medidas comuns e ações diferenciadas.

De maneira universal, foram adotados protocolos rígidos de isolamento em casos de sintomas ou contato com alguém sintomático, o uso obrigatório de máscaras garantido pelo estado e a checagem de temperatura diária. Além disso, o plano incluiu avaliação psicológica de estudantes e profissionais de educação, que identificou que ao menos 33% da comunidade escolar apresentava sintomas de adoecimento emocional. Entre as medidas diferenciadas, destacam-se as entradas supervisionadas nas escolas em filas organizadas nas áreas externas, garantindo o distanciamento físico quando este não é possível no espaço interno. Segundo a educadora:

“Fizemos todo o estudo, passo a passo, e, a partir do documento norteador da secretaria estadual, chegamos nesse momento de comunicar nosso plano a toda a comunidade educativa. Fizemos um diagnóstico com os alunos ainda no remoto e estamos colhendo os frutos agora no retorno gradual.”

O plano é dividido em quatro fases: a primeira tem foco na preparação dos espaços físicos, garantindo os parâmetros adequados de biossegurança; num segundo momento, é feita a avaliação emocional das equipes e dos estudantes; em seguida, promove-se a abertura das escolas, com um plano de comunicação voltado para as comunidades de caráter pedagógico, informando e formando estudantes, famílias e equipes; finalmente, há uma fase de busca ativa, a fim de trazer de volta os evadidos.

Um país com desafios e proporções continentais é também um território fértil de estratégias inovadoras e práticas pedagógicas que inspiram. O que esse emaranhado de experiências revela é que apenas através da ação articulada entre gestão, secretarias, educadores, equipes escolares, estudantes, famílias e sociedade poderemos garantir os direitos de crianças e adolescentes.