Educação para relações étnico-raciais precisa ir além do 20 de novembro
Boletim Aprendizagem em Foco - ed.102 | Fevereiro 2025
Diagnóstico sobre a implementação da ERER nas redes mostra falta de iniciativas estruturais
Evolução nos indicadores educacionais não foram suficientes para superar as desigualdades históricas
Grupos de estudos e produção artística são algumas das estratégias utilizadas pelas escolas
A homologação das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo escolar, representou um marco na luta dos movimentos sociais. Foram conquistas importantes também por propor que essas temáticas sejam trabalhadas de forma transversal, integradas ao Projeto Político Pedagógico (PPP) e debatido por toda a comunidade escolar. Essa abordagem contínua fortalece a identidade e a autoestima de estudantes de diferentes etnias e promove reflexões sobre desigualdades e a responsabilidade de todos na construção de uma educação antirracista.
Passadas mais de duas décadas da entrada em vigor da 10.639, a maioria das redes municipais e estaduais ainda patina na implementação de mecanismos e políticas estruturais que amparem e possibilitem o cumprimento dessas leis. É o que revela o levantamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação (MEC), divulgado em novembro de 2024.
No quesito formação, pouco mais da metade das redes estaduais (51,9%) avalia o nível de conhecimento das Leis 10.639 e 11.645 na seleção de gestores escolares. Além disso, quatro em cada 10 secretarias ainda não possuem protocolos para seguir em casos de racismo ou injúria racial nas redes. Em termos de financiamento, a transferência de recursos para as escolas que levem em consideração o perfil socioeconômico dos estudantes é uma política da minoria das secretarias estaduais (29,6%).
“Ao longo de 21 anos, programas e ações foram realizados, mas de forma muito individual, sem grande articulação nacional”, afirmou a secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão, Zara Figueiredo, durante o evento de lançamento do levantamento. “O diagnóstico aponta para a ausência de uma coordenação federativa mais forte nesse período — que ocasionou uma grande diferença no avanço da implementação da política entre estados e municípios — e para melhorias menos estruturais e mais eventuais na educação para as relações étnico-raciais.”
DESIGUALDADES PERPETUADAS
A criação de uma ferramenta como o Painel Diagnóstico Equidade, que apresenta um panorama de como a legislação está sendo colocada em prática pelo Brasil, é um passo importante para redução da distância entre o desempenho educacional de estudantes brancos e pretos, pardos e indígenas. Os avanços dos indicadores educacionais dessas populações nos últimos anos não foram suficientes para superar as desigualdades históricas que ainda marcam suas trajetórias escolares.
O estudo O círculo vicioso da desigualdade racial na educação do Brasil, lançado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em novembro de 2024, mostra que essas disparidades estão presentes inclusive na qualidade da infraestrutura das escolas. Elas se manifestam também em relação ao nível dos professores. Crianças e jovens pretos, pardos e indígenas têm menor probabilidade de contar com docentes com formação superior –exigência da Lei de Diretrizes e Bases.
A desigualdade na distribuição dos recursos educacionais – que abrangem desde a infraestrutura escolar até o corpo docente – está entre as hipóteses explicativas presentes na literatura relacionada às desigualdades raciais na educação, conforme descreve Luciana Alves, doutoranda em Educação pela Unicamp, no segundo número da coleção Em Debate, ERER e Equidade Racial: Princípios e Perspectivas. A publicação, lançada no fim de 2024 pelo Instituto Unibanco, aborda noções de justiça e equidade e os processos de reprodução das desigualdades raciais na educação.
A defasagem educacional desses estudantes se amplia à medida que eles avançam na escolaridade básica. Ao chegar ao Ensino Médio, muitos têm de escolher entre permanecer na escola ou ingressar no mercado de trabalho – fatores como a renda familiar, o nível de desigualdade e o sexo têm influência direta nas suas aspirações de carreira, como aponta a pesquisa do BID.
LETRAMENTO RACIAL NAS ESCOLAS
O enfrentamento de um problema tão estrutural exige ações coordenadas, multisetoriais, em todas as instâncias e envolvendo todos os entes federativos. Mas há muito que pode ser feito já a partir da gestão escolar. Por exemplo, na Escola Estadual de Ensino Profissionalizante Profa. Alda Façanha, localizada em Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza (CE), os esforços da gestão em promover ações relacionadas à Educação para as Relações Étnico-Raciais de forma perene – e não apenas em datas comemorativas – deram origem, entre outras iniciativas, a um centro de estudos permanentes na escola sobre a temática, conhecido como LEAF (Laboratório de Estudos Alda Façanha). Além disso, ao longo do ano letivo, são promovidos eventos para reflexão sobre o assunto, como palestras e festival de documentários. Também foi produzido um folder explicativo sobre essas ações, que é distribuído e apresentado anualmente para as novas turmas.
Para a coordenadora da unidade, Lara Saraiva, o principal impacto observado é no reconhecimento e na identificação étnico-racial dos estudantes negros. “Entre aqueles que atuam diretamente no laboratório eu percebo um maior desenvolvimento, emocionalmente, psicologicamente, intelectualmente; de se reconhecer no mundo enquanto uma pessoa negra e atuando como agentes transformadores dessa escola que pretende realmente ser uma escola antirracista”, acredita.
Na EEEFM Ana Monteiro de Paiva, situada no município de Alegre (ES), uma iniciativa similar foi realizada como estratégia de enfrentamento a comportamentos racistas (como apelidos pejorativos) observados entre os estudantes. A partir de discussões envolvendo toda a comunidade escolar foi proposta por professores da área de Ciências Humanas a criação em 2023 de um grupo de estudos intitulado “Racismo e Negritudes”, com o objetivo de promover esse letramento racial dos participantes. A primeira ação foi a realização de um levantamento sobre o perfil étnico racial dos estudantes (como eles se autoidentificavam), que se mostrou importante por atestar essa diversidade racial existente na escola.
“O que tem chamado muito a nossa atenção é a mudança de comportamento. A gente não tem mais professores, funcionários se queixando sobre isso [atitudes racistas]. Isso tudo porque eles começaram a debater e conhecer [o assunto] através desse grupo de estudos”, explica a diretora da unidade, Amélia Figueira.
Já na E.E. Dr. Francisco Freitas Lima, localizada também no Espírito Santo, mas no município de Vila Velha (ES), os professores viram na produção artística um caminho para atender à demanda de criação de espaços de escuta e expressão dos estudantes sobre suas percepções sobre o racismo e as relações étnico-raciais. Diante da vocação e do interesse dos jovens por arte, a produção de pinturas em tela foi o caminho encontrado.
Na avaliação do prof. Marcio Freitas, professor de Filosofia e Projeto de Vida que leciona na unidade, o letramento racial dos estudantes é o principal impacto desse projeto. “Hoje eles são capazes de identificar o tipo de racismo que eles estão sofrendo e lidando dentro do contexto escolar, social e familiar em que eles vivem. O grande ganho é esse posicionamento antirracista que os alunos adquirem”, avalia.
Painel Diagnóstico Equidade, MEC (2024): bit.ly/painelEquidadeMEC
O círculo vicioso da desigualdade racial na educação do Brasil, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (2024):
bit.ly/relatorioBIDdesigualdade
ERER e Equidade Racial: Princípios e perspectivas, Luciana Alves, Instituto Unibanco (2024):
bit.ly/EmDebateERER
Afrocaminhos: Juventudes Negras e Educação (webserie), Instituto Unibanco/ABPN (2024):
bit.ly/webserieAfrocaminhos
Aprendizagem em Foco é uma publicação periódica produzida pelo Instituto Unibanco. Tem como objetivo adensar as discussões sobre o contexto educacional brasileiro, a partir de pesquisas, estudos e experiências nacionais e internacionais.
Produção editorial: Redação Carmen Nascimento; Edição Antonio Gois e Fabiana Hiromi; Projeto gráfico e diagramação Estúdio Kanno; Edição de arte Fernanda Aoki