Cidadania, democracia e o papel das escolas
Boletim Aprendizagem em Foco - ed.101 | Novembro.2024
Convivência cidadã e democrática consta como objetivo educacional em diversas normativas
Desenvolvimento dessas dimensões está associado a melhores resultados de aprendizagem
Aprendizado se dá pelo exercício na prática da participação e do diálogo na escola
A formação para o exercício da cidadania e para a convivência democrática é um objetivo educacional previsto tanto na Constituição Federal quanto em normas e diretrizes curriculares nacionais. Mesmo assim, por vezes essas dimensões são equivocadamente entendidas como secundárias ou acessórias, frente à igualmente importante tarefa de garantir a aprendizagem de todos. No entanto, o recrudescimento de movimentos autoritários pelo mundo, alimentados por discursos de ódio e intolerância, reforça, mais uma vez, a necessidade de trabalhar esses temas na escola.
A Constituição, em seu artigo 205, estabelece como objetivos gerais da educação o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 3, também lista entre as finalidades da educação o apreço à tolerância e respeito à liberdade e à diversidade humana. Aspectos ligados à convivência democrática, responsabilidade coletiva e cidadania também permeiam toda a Base Nacional Comum Curricular, constando inclusive das competências gerais do documento. Ou seja, não falta respaldo jurídico e pedagógico para que essas dimensões sejam trabalhadas no ambiente escolar.
Além disso, mesmo considerando que a melhoria da convivência e o exercício da cidadania sejam objetivos em si mesmo, também não faltam evidências de que um ambiente de mais respeito e tolerância, e em que os conflitos são resolvidos de forma pacífica, é também favorável à aprendizagem. Por exemplo, analisando dados do PISA de 2018, Júlia Rizzoto e Marco Tulio França, pesquisadores da PUC-RS, mostram que um clima escolar negativo prejudica o desempenho acadêmico. Por outro lado, Simone de Melo e Alessandra de Morais, ambas da Unesp/Marília, ao analisarem dados do Enem de 2015, chegaram à mesma conclusão, mas destacaram efeitos benéficos de um clima escolar positivo em relação à aprendizagem de alunos mais vulneráveis.
“CRENÇA DEMOCRÁTICA COMBINA CONHECIMENTO E PARTICIPAÇÃO”
Há múltiplos aspectos a serem trabalhados para a construção de um clima escolar positivo. E um dos mais importantes deles é o preparo para o exercício da cidadania numa sociedade democrática. Em palestra no Seminário Internacional Educação Cidadã e Convivência Democrática, realizado em novembro pelo Instituto Unibanco, Cristián Cox, um dos maiores especialistas no tema, destacou a importância de trabalhar a educação cívica desde cedo na escola (e não apenas nos anos finais do Ensino Médio).
Professor da Universidade Diego Portales (Chile), ele tem pesquisado a forma como a educação cívica aparece em currículos escolares na América Latina, e alerta que é preciso evitar um foco estreito na aquisição de conhecimento, priorizando o desenvolvimento de competências e habilidades na prática. “Acreditar no ideal democrático é um desafio de conhecimento, mas também socioafetivo. É, ao mesmo tempo, intelectual e moral. A pedagogia para estabelecer e desenvolver o conhecimento, as habilidades e os valores necessários para a crença democrática combina conhecimento e participação”, afirma.
Cox destaca também dados preocupantes de diminuição nos níveis de apoio à democracia na América Latina nos últimos dez anos, inclusive entre jovens. Um estudo de 2022 do Observatório da Juventude da Iberoamérica, por exemplo, mostrou o desinteresse dos jovens da região por questões sociais e o aumento do individualismo e do consumismo. Entre 13.500 jovens de 15 a 28 anos ouvidos, 46% se disseram muito preocupados com sua imagem, 39% consideraram-se “consumistas” e apenas 9% afirmaram estar “comprometidos com a justiça social e a igualdade”. Além disso, há padrões preocupantes de descontentamento com o processo eleitoral e aumento no descrédito das instituições políticas.
Também presente no seminário, Clara Ramírez-Barat, diretora do programa de políticas educacionais do Instituto Auschwitz - que tem trabalhado com o tema da convivência democrática com estudantes e educadores brasileiros – destacou que a escola é, naturalmente, um espaço de conflitos, por reunir pessoas com diferentes trajetórias e visões de mundo. Para lidar positivamente com esses conflitos, ela destaca a importância do apoio de gestores escolares aos professores e alunos. A especialista lembrou ainda que países democráticos, justamente por serem democráticos, têm maior dificuldade de chegar a consensos na elaboração de currículos de educação para a cidadania. “A gente pensa em educação como veículo de emancipação, mas muitos exemplos no mundo mostram que a educação pode ser também opressiva e voltada para formação de pessoas acríticas”, alerta ela.
EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA NA PRÁTICA
Nas escolas, em linha com o que o professor Cristián Cox destacou em sua palestra no seminário, a formação cidadã e para o exercício democrático se traduz muitas vezes no estímulo à participação e ao protagonismo juvenil. Nesse sentido, a gestão escolar desempenha papel essencial, estimulando a criação de espaços em que os estudantes possam se expressar, se manifestar e incidir nos processos decisórios sobre questões que tocam toda a comunidade escolar.
É o que acontece, por exemplo, na Escola Cidadã Integral Técnica Daura Santiago Rangel, de João Pessoa (PB), liderada pelo gestor André do Egito. “Oferecemos uma ampla gama de opções para estimular o protagonismo, a autonomia e a participação democrática (..) Os estudantes participam ativamente no ambiente escolar, seja através de reuniões regulares com a gestão, participando de debates em sala de aula, através do Grêmio Estudantil, ou na organização de eventos e projetos, muitas vezes liderados pelos próprios alunos. Destaco também a presença e a voz dos alunos no Conselho Escolar, especialmente em momentos cruciais de tomada de decisões”, descreve o diretor em depoimento presente no e-book “Cidadania e democracia desde a escola: como a gestão escolar pode atuar?”, recém-lançado pelo Instituto Auschwitz em parceria com Instituto Unibanco.
Outra experiência relatada na publicação pautada no princípio da gestão democrática é a da gestora Regina Coelly Mendes da Silva, da ECIT Professor Luiz Gonzaga Burity. Ela conta que lá os estudantes são estimulados à participação por meio de uma série de ações, como a eleição de líderes de turmas, com quem se reúne semanalmente para escutar propostas e deliberar coletivamente, e a organização de fóruns e debates para discussão de temas da atualidade. “Nossos estudantes também são encorajados a participar de iniciativas que os inspirem a refletir sobre a participação política, como o Programa Parlamento Jovem Brasileiro. Através do nosso incentivo, uma de nossas estudantes candidatou-se e foi selecionada para representar o estado da Paraíba no Parlamento, em Brasília, no último ano. Esta experiência proporcionou a ela uma compreensão profunda do funcionamento do sistema legislativo e destacou a importância do engajamento político juvenil, demonstrando o impacto positivo que essas iniciativas podem ter na formação dos jovens”, afirma.
Em Minas Gerais, a prática da Justiça Restaurativa é outra estratégia que vem sendo utilizada com êxito em escolas da rede estadual com foco na resolução de conflitos, impactando positivamente o clima escolar. Durante seminário promovido pela Secretaria Estadual de Educação e pelo Instituto Unibanco na capital mineira, a professora Elisiane Barbosa, da E.E. Getúlio Vargas, apresentou a experiência da unidade com a metodologia e enfatizou como ela tem contribuído para escuta e acolhimento dos estudantes e promoção do diálogo. Para ela, é fundamental que docentes e gestores tenham esse olhar e sensibilidade, que extrapola o ensino dos conteúdos curriculares tradicionais.
Cidadania e democracia desde a escola: como a gestão escolar pode atuar?, Instituto Instituto Unibanco/ Instituto Auschwitz (2024)
Clima escolar como fator protetivo ao desempenho em condições socioeconômicas desfavoráveis, Simone Gomes de Melo e Alessandra de Morais/Cadernos de Pesquisa, v. 49, p. 10-34 (2019)
Indisciplina: o clima escolar das escolas brasileiras e o impacto no desempenho dos estudantes, Júlia Sbroglio Rizzotto e Marco Tulio Aniceto Franca/ PUC-RS (2021)
Liderança educacional para uma cidadania democrática – Coleção Políticas Públicas em Educação –nº 6, Universidade Diego Portales/Instituto Unibanco (2023)
Seminário Internacional Educação Cidadã e Convivência Democrática (vídeos de todos os painéis), Instituto Unibanco (12/11/2024):
Aprendizagem em Foco é uma publicação quinzenal produzida pelo Instituto Unibanco. Tem como objetivo adensar as discussões sobre o contexto educacional brasileiro, a partir de pesquisas, estudos e experiências nacionais e internacionais.
Produção editorial: Redação Antonio Gois e Fabiana Hiromi; Edição Antonio Gois e Fabiana Hiromi; Projeto gráfico e diagramação Estúdio Kanno; Edição de arte Fernanda Aoki