Aprendizados sobre o uso pedagógico do celular

Boletim Aprendizagem em Foco - ed.104 | Maio 2025

Lei que restringiu aparelhos em escolas prevê exceções para o uso pedagógico

Letramento digital e educação midiática seguem como dimensões essenciais 

Uso desde cedo de celulares não significa preparo adequado para lidar com tecnologias 

Os debates públicos que motivaram a aprovação da Lei 15.100/2025, que restringiu a partir deste ano o uso de celulares em escolas de todo o país, foram pautados pela necessidade proteger a saúde mental, promover a socialização e evitar distrações prejudiciais ao desempenho acadêmico de crianças e adolescentes. A medida teve amplo apoio, mas especialistas também alertaram para o risco de as escolas deixarem de trabalhar competências fundamentais no século XXI, como o letramento digital e a educação midiática. A restrição poderia também inibir inovações pedagógicas a partir do uso adequado desses e outros dispositivos.

Essas dimensões não podem mesmo ser relegadas, pois vivemos num mundo cada vez mais guiado por dados e mediado por tecnologias. Entender a lógica por trás desses sistemas vai além do simples treinamento para o uso, pois demanda conhecimento e conscientização, por exemplo, de como a Inteligência Artificial generativa se desenvolve, de modo a melhor aproveitar seu potencial e estar mais consciente sobre seus riscos. O domínio dessa nova linguagem amplia horizontes também quando desenvolvemos o pensamento computacional, ou seja, a capacidade de abordar problemas complexos de forma lógica e estruturada, tornando sua resolução mais simples. Enfim, a necessidade de proteger crianças e adolescentes do mau uso de aparelhos tecnológicos não pode prejudicar o desenvolvimento dessas competências tão fundamentais para o exercício da cidadania.

É importante lembrar que a própria lei que restringiu celulares em escolas previu exceções para o uso de dispositivos móveis em atividades pedagógicas com acompanhamento dos professores e para estudantes que necessitem de recursos de acessibilidade. E, em março deste ano, uma diretriz do Conselho Nacional de Educação (Resolução CNE/CEB  2/2025) reforçou a necessidade de garantir a educação e a cidadania digital nas escolas, a partir do uso intencional e orientado da tecnologia.

Um levantamento divulgado em março deste ano pela associação SaferNet, que promove a defesa dos Direitos Humanos na Internet, mostrou que menos da metade das redes estaduais de Ensino Médio têm uma matéria exclusiva sobre uso seguro e consciente de tecnologias. A pesquisa TIC Educação 2022, realizada com coordenadores pedagógicos de escolas de Ensino Fundamental e Médio, revelou também que menos da metade (47%) desses profissionais afirmaram que atividades sobre o uso crítico e seguro de tecnologias digitais estavam previstas nos conteúdos de uma ou mais disciplinas do currículo.

Educação midiática e cultura digital

Gestores e professores de escolas que, mesmo depois da Lei nacional, não deixaram de utilizar a tecnologia em sala de aula relatam que um dos maiores desafios é combater a ideia, predominante e muitas vezes equivocada, de que os estudantes, por terem nascido depois da popularização dos smartphones e das redes sociais, seriam já “naturalmente adaptados” ao mundo digital, os chamados nativos digitais.

Na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Silva Mello, em Guarapari (ES), por exemplo, aplicativos e plataformas digitais que auxiliam na aprendizagem começaram a ser utilizados principalmente no período da pandemia, e seguem fazendo parte da rotina pedagógica da escola, mesmo com a nova legislação sobre uso de celulares. Polyanna Vicente, professora coordenadora de inovação na escola, relata que muitos alunos têm dificuldades para algumas das tarefas mais básicas, como fazer o login na plataforma. “Mas eles não tem vergonha de dizer que não sabem. Se há alguma dificuldade, comunicam e a gente ajuda”, afirma.

O apoio dado pela escola, porém, não se restringe a essas tarefas mais básicas. Neste ano letivo, por exemplo, em paralelo às novas restrições legais, as aulas de projeto de vida passaram a trabalhar também a conscientização sobre o uso seguro do celular. Nesse trabalho de educação midiática, a coordenadora pedagógica Letícia Regina conta que é comum o uso de reportagens para mostrar os perigos do uso desenfreado do celular, e suas consequências negativas, como o aumento da ansiedade. “O caminho é sempre de muito diálogo”, resume a diretora Vanilda Loureiro.  

Na Escola Básica Estadual Érico Veríssimo, em Santa Maria (RS), a Lei nacional que restringe o uso de celulares foi recebida sem traumas, pois a escola já estabeleceu no ano passado uma política sobre o uso desses aparelhos, com normas elaboradas pelos próprios jovens em assembleia. O diretor da unidade, Lucio Ramos, afirma que a nova legislação não impediu o uso pedagógico de tecnologias, o que foi facilitado também pelo fato de a escola ter recibo computadores. “Muitos estudantes já não trazem o aparelho para a escola por conta da Lei, então, se um educador vai utilizar, ele avisa antes. Mas isso é cada vez menos necessário porque os alunos utilizam computadores da escola”.

Além disso, ele destaca o fato de a escola oferecer também a disciplina de cultura digital, que faz parte da matriz curricular da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul. “Eles também têm aulas que ensinam como realizar pesquisas e formatar trabalhos, porque a gente percebeu que tinham dificuldade com isso”, explica o diretor. Trabalhos realizados pelos estudantes durante as aulas de cultura digital também são apresentados continuamente no monitor que fica no espaço destinado ao grêmio estudantil.

A cultura digital continuou presente também no Colégio Estadual Professor Antonio Lemos de Araújo, em Cacequi (RS). A diretora Cláudia Teixeira conta que os próprios estudantes criaram uma página para compartilhar com a comunidade escolar as atividades realizadas: “Foi uma ideia deles, e é uma forma pedagógica de usar o celular”. 

Outro aspecto que não deve ser esquecido pelas escolas e redes no contexto da nova Lei é o uso da tecnologia no apoio à aprendizagem de estudantes com deficiência, também previsto na legislação. Daniel da Silva Tavares, professor na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Professora Tecla Ferreira, em Fortaleza (CE), lembra que programas instalados em celulares permitem, por exemplo, que um aluno com alguma deficiência visual faça a leitura de uma página em versão ampliada, sem que seja necessário imprimir a atividade em tamanho maior. Ele cita também soluções nacionais, como o Dosvox, software que faz a descrição de conteúdos que estão na tela do computador, também fundamental no apoio a alunos com deficiência visual.

"Muitos estudantes já não trazem o aparelho para a escola por conta da Lei.
Então, se um educador vai utilizar, ele avisa antes. Mas isso é cada vez menos
necessário porque os alunos utilizam computadores da escola”.

 

Lucio Ramos, diretor da Escola Básica Estadual Érico Veríssimo, em Santa Maria (RS)

Estratégia de redes 

Algumas das ações pedagógicas com uso de tecnologia partiram de sugestões de alunos ou professores, mas o papel das secretarias é também essencial, para que as escolas não deixem de trabalhar a educação midiática e o letramento digital. Em Minas Gerais, por exemplo, a secretaria tem investido em diversas plataformas. Uma delas é a Enem MG, que oferece materiais didáticos, videoaulas, correção de redações por Inteligência Artificial, trilhas formativas, simulados e relatórios detalhados focados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Outras plataformas são a Elefante Letrado (focado na leitura de alunos do 6º ano), o Google Workspace for Education Plus (com ambientes colaborativos e recursos de inteligência artificial), além de uma parceria com a Britannica Education, que dá acesso a acervos digitais, com conteúdos alinhados ao Currículo Referência de Minas Gerais.

Julia Sant’Anna, diretora-executiva do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), afirma que, para que a legislação nacional não iniba o uso pedagógico de aparelhos digitais, a situação ideal hoje seria que todo aluno tenha acesso a um dispositivo oferecido pela escola, com os programas e plataformas selecionados por um educador, sem necessidade de recorrer ao seu próprio aparelho. Mas, segundo ela, a oferta de equipamentos é apenas uma etapa, pois é fundamental que o currículo esteja estruturado de maneira que a tecnologia seja incluída de forma multidisciplinar, e que os professores recebam capacitação sobre o melhor uso de dispositivos em sala de aula. 

Aprendizagem em Foco é uma publicação periódica produzida pelo Instituto Unibanco. Tem como objetivo adensar as discussões sobre o contexto educacional brasileiro, a partir de pesquisas, estudos e experiências nacionais e internacionais.

Produção editorial: Redação Raphael Preto Pereira; Edição Antonio Gois e Fabiana Hiromi;
Projeto gráfico e diagramação Estúdio Kanno; Edição de arte Fernanda Aoki