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Por Rafael Vazquez — De São Paulo


Viviane Senna: “Se a criança nem sequer foi alfabetizada, como vai aprender matemática, ciência ou qualquer outra coisa?” — Foto: Silvia Zamboni/Valor
Viviane Senna: “Se a criança nem sequer foi alfabetizada, como vai aprender matemática, ciência ou qualquer outra coisa?” — Foto: Silvia Zamboni/Valor

O Brasil precisa avançar para um novo modelo de educação que prepare crianças e adolescentes para enfrentar os desafios do século XXI e que atenda as exigências do mercado de trabalho. Essa modernização precisa ser feita, porém, sem negligenciar que problemas clássicos como analfabetismo e desenvolvimento de pensamento lógico ainda atrasam a vida das pessoas e o crescimento econômico do país.

É a visão da psicóloga e presidente do Instituto Ayrton Senna, Viviane Senna. Para ela, as escolas e os professores precisam abraçar a missão de desenvolver habilidades socioemocionais nos alunos desde a educação infantil, sem deixar de promover a aprendizagem cognitiva e as disciplinas clássicas.

À frente do Instituto Ayrton Senna desde 1994 em um trabalho essencialmente voltado à formulação de políticas públicas e assistência na área de educação, ela defende que a nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC) está apta a ajudar no processo de modernização do sistema educacional brasileiro sem que represente um empobrecimento do ensino de disciplinas científicas, conforme criticam alguns educadores.

Segundo Viviane, transformar as escolas em um ambiente de preparação para as demandas do planeta e do mercado de trabalho tende a reduzir a desigualdade social e é a maneira mais eficiente de evitar que os jovens de hoje sejam “párias sociais” no futuro. O mundo está mudando velozmente com inovações importantes a cada cinco anos e as escolas ainda funcionam no mesmo modelo de 200 anos atrás, critica.

Leia os principais trechos da entrevista exclusiva ao Valor:

Valor: Qual o maior desafio para o Brasil hoje na educação?

Viviane Senna: Temos dois desafios estruturais de caráter macro. Colocando o Brasil como uma espécie de “espadachim”, precisa lutar em duas frentes de batalha ao mesmo tempo. Pelas costas, precisa vencer tarefas não feitas de maneira eficiente nos séculos XIX e XX, que é ensinar a ler, calcular, escrever e pensar logicamente. Competências que levaram os países desenvolvidos aonde estão hoje e que o Brasil falhou. Temos 50% de crianças não alfabetizadas mesmo depois que entram na escola. Isso era antes da pandemia, agora são mais de 70%. Se a criança nem sequer foi alfabetizada, como ela vai aprender matemática, ciência ou qualquer outra coisa? É um front tipicamente do ensino clássico, de um tipo de escola que todos nós conhecemos.

Valor: E qual é o segundo grande desafio?

Viviane: O problema é que cumprir essa tarefa que mencionei deixou de ser a linha de chegada e agora é apenas a largada. Além dessas competências clássicas [ler, calcular, escrever e pensar logicamente], que são de natureza cognitiva, precisamos desenvolver nas crianças novos grupos de competência e habilidades que vão além. Falo de habilidades socioemocionais e híbridas, como criatividade, pensamento crítico, trabalho em equipe, colaboração, empatia, tolerância, respeito, capacidade de resolução de problemas e conflitos, liderança, responsabilidade, foco, persistência e resiliência à frustração e à situações adversas. Mente aberta ao novo, saber se relacionar bem com o outro. São habilidades que vão muito além da fronteira cognitiva.

Competências socioemocionais são três vezes mais poderosas para desenvolver a aprendizagem do que o nível socioeconômico”

Valor: São habilidades sociais que costumavam ser ensinadas fora da escola. Por que a escola deve se dedicar a esses ensinamentos agora?

Viviane: Porque são habilidades cada vez mais importantes no momento de transição histórica que estamos passando. Todos os estudos relevantes que têm sido feitos no mundo, por governos ou consultorias privadas, mostram que as habilidades que serão exigidas ao longo do século XXI serão desta natureza, e não mais as habilidades básicas e cognitivas que nós conhecemos. Isso vai ser importante porque estamos entrando em uma era onde a velocidade da mudança é tão exponencial que as pessoas vão precisar de uma musculatura socioemocional bastante substancial para poder fazer frente às mudanças que teremos pela frente. Uma grande invenção acontecia a cada cem anos e agora acontece a cada cinco. As crianças que hoje estão na escola vão trabalhar em empregos que não foram criados ainda, exercendo atividades que nem sequer foram inventadas para resolver problemas que ainda não existem e precisarão de novas competências para isso. Inclusive as competências cognitivas vão ser absorvidas pela inteligência artificial nos próximos dez, 15 anos.

Valor: No seu exemplo do espadachim, é como lutar atacando pela frente e pelas costas. O Brasil tem condições de vencer essa luta?

Viviane: A boa notícia que a ciência nos mostra é que essas habilidades novas que precisam ser treinadas são aliadas valiosas não apenas para preparar esses jovens para o século XXI, mas também para ajudar a fazer a lição de casa não feita no passado.

Valor: Já estamos no 22º ano do século XXI e esse mundo de transformações rápidas já se faz presente há algum tempo. Por que as escolas negligenciaram essa necessidade de preparar os jovens para a vida moderna e o mercado de trabalho por tanto tempo?

Viviane: O modelo de escola que ainda está majoritariamente vigente no Brasil e no mundo foi criado no fim do século XVIII com o advento do Iluminismo, durante a Revolução Industrial. Foram os iluministas que criaram o conceito de escola pública gratuita e universal, o que foi uma revolução na época porque a maior parte das pessoas vivia na profunda ignorância. Conhecimento era coisa rara. A visão dos iluministas, portanto, era a de que era necessário libertar a sociedade do obscurantismo religioso e político que imperava. O caminho para libertar as pessoas se deu através do conhecimento e da razão. A razão substituiu Deus. O desenvolvimento de ordem racional e cognitivo passou a ser a grande vertente e daí nasceu a escola para distribuir conteúdo e conhecimento com capacidade cognitiva racional. E foi um sucesso, uma das coisas mais importantes que a humanidade criou, porque daí veio todo o desenvolvimento cientifico e tecnológico que contribuiu para a melhoria da qualidade de vida.

Valor: A escola não deve abrir papel desse papel, certo? Ainda mais diante de questões delicadas como disseminação de ‘fake news’, radicalização política e religiosa...]

Viviane: De maneira nenhuma. Uma coisa não deve ser oposta a outra. As escolas precisam continuar desenvolvendo os aspectos de competência racionais como antes. A questão é que só isso não é mais suficiente. Inclusive muito disso, no mercado de trabalho, será substituído pela inteligência artificial. Portanto, se o jovem aprender só isso, vai virar obsoleto. Todos os estudos mostram que o mercado exigirá, cada vez mais, que os jovens se desenvolvam com competências além daquelas clássicas que a escola vem ensinando nos últimos 200 anos. Temos uma escola ainda funcionando do jeito que foi criada há 200 anos.

Valor: Já temos um modelo bem desenhado para reformular as escolas brasileiras seguindo esses princípios?

Viviane: Sim. Isso já é parte da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) [aprovada por lei em 2017]. Não se trata mais de opção. É a lei para seguir, seja em escolas públicas, seja em privadas. Desenvolver competências que vão além das habilidades clássicas se tornou tão lei quanto ensinar a ler e calcular. O Japão entendeu tudo isso e lá, por exemplo, na educação infantil dão brinquedos grandes demais para os alunos de maneira a induzi-los a precisarem uns dos outros para conseguir brincar. Entenderam que essas crianças precisarão desenvolver habilidades de colaboração para enfrentar o mundo do século XXI. É uma maneira de preparar as pessoas para trabalharem em times multiculturais. Antes, uma montadora se dava ao luxo de importar borracha e aço e exportar carros. Hoje, para produzir um simples carro, pode envolve mais de 50 países entre criação, matéria-prima, componentes, propaganda, marketing, vendas.

Valor: Essas habilidades socioemocionais serão mais importantes que os conhecimentos técnicos?

Viviane: Um funcionário vai precisar de habilidades técnicas, porém apenas isso não será suficiente. Veja bem, quais são os grandes problemas que temos no mundo hoje? É falta de conhecimento para resolver os problemas ambientais, econômicos e sociais? Não. Nós temos conhecimento para resolver a grande maioria dos problemas. O que falta é atitude, tolerância, respeito, colaboração, confiança, abertura ao novo. Veja a guerra da Rússia com a Ucrânia. O que explica aquilo? Ou o que acontece na Coreia do Norte? Nós temos no comando pessoas despreparadas para tomar decisões do ponto de vista socioemocional. O Trump, por exemplo. Um Hitler. Não lhe faltou conhecimento racional ou cognitivo. Esses líderes foram à escola, aquela clássica. Faltaram outras coisas, como compaixão.

Não adianta ter empresa sem capital humano bem preparado. Até por questão de mercado, isso deveria ser prioridade”

Valor: Avançar nesse modelo de educação, então, pode ajudar a harmonizar uma sociedade?

Viviane: Sim. Olhemos para a questão do meio ambiente, por exemplo. É um problema relacional nosso com o meio em que vivemos. E competências relacionais é você com o outro, depois com o grupo familiar, depois em âmbito nacional. E também vale para a natureza, que é um outro ente a se relacionar. Se você não entende o outro como uma extensão sua, se a sua relação é de uso, e não de respeito, existe um déficit socioemocional. A pessoa não aprende a se relacionar com a natureza, apenas a usá-la. Nós estamos colhendo as consequências disso agora a ponto de estarmos colocando a própria sobrevivência humana em risco. Essa incapacidade de se relacionar com o outro, seja por uma questão de raça, gênero, política e religiosa, é um déficit relacional. Não é falta de conhecimento. Acabamos desenvolvendo muito o racional e pouco a capacidade relacional.

Valor: O desenvolvimento socioemocional na escola pode ajudar a combater problemas como a desigualdade social?

Viviane: A ciência mostra que as competências socioemocionais são três vezes mais poderosas para desenvolver a aprendizagem do que o nível socioeconômico da criança. Ou seja, o nível de desenvolvimento socioemocional do aluno pesa três vezes mais na determinação do resultado escolar do que o nível socioeconômico dela. E, no Brasil, o nível socioeconômico é o principal fator de baixa aprendizagem a ponto de que as crianças mais pobres têm cinco vezes menos chances de terminar a educação básica do que as crianças mais ricas.

Valor: Uma criança pobre com habilidades socioemocionais bem desenvolvidas terá mais chances de disputar com crianças mais ricas?

Viviane: O Pisa de 2017 mostrou que 29% dos alunos brasileiros tiveram desempenho pior na avaliação por falta de motivação, enquanto apenas 14% dos alunos tinham desempenho pior devido ao nível socioeconômico. Isso significou 50 pontos a menos no Pisa, uma barbaridade de diferença. Também mostrou que crianças de nível socioeconômico mais baixo, mas com alta motivação, tiveram um desempenho melhor do que crianças com nível socioeconômico alto, mas com baixa motivação. Ou seja, o CEP, no fim das contas, não determina o resultado porque uma grande parte está ligada a fatores volitivos [de vontade]. E esses fatores volitivos são possíveis de se ensinar, a ciência mostra isso.

Valor: Parece ser uma arma potente para a figura do “espadachim” lutando pelas costas e pela frente...

Viviane: A ideia é usar essas alavancas poderosas, socioemocionais e volitivas, para fazer a lição de casa do século XIX. Por exemplo, se a escola ajudar o aluno a se desenvolver socioemocionalmente, uma pessoa que adquira essa habilidade terá 52% a menos de chance de ser presa, além de aumentar a possibilidade de ganhar um salário melhor no futuro. Ajudaria a reduzir problemas como violência, por exemplo. Isso que estou falando é um estudo do [economista americano James] Heckman, um ganhador do prêmio Nobel de Economia. Por exemplo, um adolescente que tem vulnerabilidade à violência tem três vezes menos capacidade de cooperação, confiança e tolerância, que são habilidades socioemocionais. Não desenvolver isso gera consequências. Impacta a renda, a saúde, a longevidade, o bem-estar-social e a aprendizagem. A escola não se propôs a desenvolver isso nos últimos dois séculos. Agora, terá que desenvolver. Isso está sendo feito em vários países e nós trouxemos esta nova fronteira para o Brasil há mais de dez anos. Hoje já é lei. É o horizonte que temos que buscar.

Valor: A BNCC e a chamada reforma do ensino médio ainda recebem críticas de uma ala de educadores. Uma delas é a de precarização intelectual por permitir que os estudantes acompanhem menos disciplinas como história, sociologia, física...

Viviane: Uma ala da educação e dos sindicatos resiste, mas a escola tem a missão de preparar as pessoas para a vida. Isso está na nossa Constituição [artigo 205]. Preparar pessoas para o trabalho, para a cidadania. É um preconceito que não se sustenta. E, hoje, se não fizermos isso, vamos estar delegando os jovens a serem párias sociais.

Valor: O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ao menos nos discursos, tem falado mais de ensino superior do que da educação básica e dessas necessidades. Qual é a sua visão?

Viviane: Ninguém consegue construir uma casa pelo telhado. Tem que construir a partir dos alicerces, da base, e isso é a educação básica. Todos os países que deram certo priorizaram a educação básica. Ela é a base de qualquer desenvolvimento econômico, social e político. Estamos atrasados na lição, mas dá tempo se tivermos a persistência e o foco necessários para fazer esse esforço nacional que vai além do governo.

Valor: As empresas terão que contribuir com esse processo até mesmo por necessidade, correto?

Viviane: As empresas não só podem como devem contribuir. Elas serão as grandes escolas do futuro, porque a pessoa vai sair da escola, mas com o nível de mudanças constantes e exponenciais à vista, não será mais viável sair da escola ou da universidade e achar que está preparado para a vida como era antigamente. Antes alguém se formava engenheiro e aplicava o que havia aprendido ao longo da carreira. Hoje já não é mais assim. É preciso ter empresários na sala do Ministério da Educação, pois são fatores importantes de colaboração para que essa agenda seja permanente. Não adianta ter uma empresa se não tem capital humano bem preparado. Até por uma questão de mercado, isso deveria ser prioridade. Para o Brasil dar certo, precisamos de pessoas dando certo. E todos nós precisamos entender que somos corresponsáveis pelo país.

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