Rio

Vidas errantes em desamparo: desemprego e pandemia empurraram famílias para a vulnerabilidade das ruas no Rio

Mulheres, muitas delas com crianças, e trabalhadores que nunca tinham vivido sem um teto integram grupos mais comuns no novo perfil da sarjeta na cidade
Moradores de rua Foto: Editoria de Arte
Moradores de rua Foto: Editoria de Arte

RIO — É na calada da noite, quando a Praia de Copacabana não tem quase ninguém, que o acampamento é erguido. Numa mesma maloca, três famílias, com seis crianças, de 5 meses a 9 anos de idade, amontoam-se com o que restou dos tempos em que tinham um teto: mochilas com roupa, meia dúzia de brinquedos e um carrinho de bebê. As estacas de madeira que, de dia, são usadas pelos barraqueiros da orla, servem de suporte para o abrigo com “paredes” de plástico. Na areia, papelão vira piso. Mas o casebre improvisado tem validade. Precisa ser desmontado ao amanhecer, para dar lugar à rotina de um dos cartões-postais mais conhecidos do Brasil. Sem muita chance de sonhar, o grupo se levanta para pedir doações ou fazer bicos que rendam algum trocado. É uma tentativa de romper a invisibilidade com um único objetivo — garantir o que comer.

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Como mostra a partir de hoje uma série de reportagens do GLOBO, eles integram uma multidão empurrada à vida nas ruas do Rio devido à crise econômica, agravada pela pandemia, que aniquilou postos de trabalho nos últimos anos. E revelam perfis que, assim como levantamentos recentes corroboram, profissionais que lidam diretamente com essa população afirmam ser preponderantes no novo fluxo de gente lançada à vulnerabilidade extrema da sarjeta. São, muitas vezes, famílias inteiras, sobretudo, mulheres, parte delas com seus filhos pequenos. E também desempregados ou quem mantém uma ocupação informal ou precária, sem renda suficiente para arcar com a moradia. São características que têm tornado ainda mais heterogêneos os rostos e históricos pessoais de quem para nas ruas, drama antes muito atrelado a fatores como conflitos familiares e uso excessivo de álcool e drogas.

Acampamentos na orla

Sem trabalho, famílias começaram a procurar a areia das praias da Zona Sul para passar as noites
Família em 'casa' na Praia de Copacabana Foto: Editoria de Arte, com foto de Fabiano Rocha / Agência O Globo
Família em 'casa' na Praia de Copacabana Foto: Editoria de Arte, com foto de Fabiano Rocha / Agência O Globo

Na barraca coletiva de Copacabana, vários desses contornos se encontravam. No começo da manhã do último dia 17 de fevereiro, três das crianças estavam coladas ao pai, Flávio dos Santos, de 28 anos, que usava uma tornozeleira eletrônica. A mãe dos pequenos, segundo ele, já estava de pé, vendendo doces. Sem trabalho fixo, contou Flávio, a família completou um ano e quatro meses sem teto. Deitados perto dos filhos de Flávio, estavam Juliana da Silva, de 24, seu companheiro e a filha, de apenas 5 meses. Num outro canto, despertavam Verônica da Costa, de 32, e suas duas meninas, de 5 e 2 anos, que vivem outra faceta das ruas.

— Tenho casa em Nova Iguaçu, na Baixada, mas sou sozinha e não tenho de onde tirar dinheiro. Aqui, vendo doce, e encontro quem dê café e almoço — contou Verônica.

Antes das 7h, as famílias de Nova Iguaçu, incluindo crianças, carregavam os pedaços de papelão e suas poucas coisas até as proximidades do calçadão, onde ficariam guardadas até a noite seguinte.

Nesse horário, o mineiro de Belo Horizonte Thiago Souza já tinha levantado. Outros três amigos, que dormem com ele no acampamento e formam uma verdadeira família de rua, ainda descansavam. Ele revela que está na rua há um ano, quando perdeu o emprego e precisou entregar a quitinete que alugava por R$ 400 na favela Pavão-Pavãozinho.

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— Trabalhava numa barraca de praia, mas fui dispensado na pandemia. Hoje, fico pela orla. Às vezes, consigo um bico numa barraca. Mas, mesmo com a liberação das praias, os banhistas não estão querendo gastar dinheiro. Vêm com R$ 100 e querem voltar com R$ 99 — brinca ele, que aprendeu a fazer artesanato com folhas de palmeira para vender.

Usando estacas de barraqueiros para facilitar a colocação do plástico, família cria acompamento improvisado em Copacabana Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Usando estacas de barraqueiros para facilitar a colocação do plástico, família cria acompamento improvisado em Copacabana Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Thiago já está no Rio há cinco anos. Atrás de trabalho, passou por Bahia, Espírito Santo, além de Macaé e Cabo Frio, no interior do Rio. Ele sabe que dormir na praia significa acordar cedo, porque os barraqueiros querem usar o espaço:

— De qualquer forma, eu me sinto no morro. A única diferença é que não tem luz. Mas vou sair dessa, em nome de Jesus.

O rapaz também lamenta o comportamento dos banhistas com eles:

— Parece que somos invisíveis. As pessoas passam. Não dão nem bom dia.

Números só tangenciam realidade

Último censo da prefeitura do Rio sobre a população nas ruas é de outubro de 2020
Na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, pessoas passam a noite e a madrugada na rua Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
Na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, pessoas passam a noite e a madrugada na rua Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Mensurar esse desafio social, porém, é pouco frequente. Na capital fluminense, o último censo da prefeitura se tornou antigo frente à velocidade com que o problema se aprofundou: é de outubro de 2020, quando foram identificadas 7.272 pessoas em situação de rua, das quais 1.803 sob acolhimento institucional, como nos abrigos, e 1.360 (18,7%) do sexo feminino.

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Um indicativo de como a questão tem evoluído vem das famílias em situação de rua do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania (embora não represente o todo, pois muitas sequer conseguem acesso ao direito). No município do Rio, em outubro de 2019, havia 6.771 delas inscritas, quantidade que foi a 7.663 um ano depois, alcançando, em outubro de 2021, um total de 8.009 — aumento de 18,3% no período. Nos dados mais recentes, de janeiro de 2022, eram 8.877 famílias cadastrados, entre elas 1.110 (12,5%) representadas por pessoas do sexo feminino, quase a totalidade recebendo ajuda do governo.

Medo de perder os filhos

Famílias temem ser separadas das crianças devido à situação de dificuldade enfrentada
Juliana dos Santos Barreto Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
Juliana dos Santos Barreto Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Para Juliana Barreto, de 22 anos, o Auxílio Brasil é a única renda fixa. Ela e o marido tinham um triciclo no Centro do Rio, onde vendiam lanches e bebidas. Como camelô, o casal ganhava pouco, mas dava para pagar o aluguel de R$ 400 no Morro da Providência. Com as ruas esvaziadas no início da pandemia, a clientela desapareceu. E a corda bamba em que viviam logo arrebentou. Não havia mais dinheiro para comprar mercadoria, que dirá pagar o aluguel.

À beira do precipício, o maior medo de Juliana era ir ao relento com as duas filhas pequenas. Temor que se intensificou ao imaginar que poderia perder a guarda delas — uma aflição que se revela comum a muitas das famílias com crianças sem lar. Para não ficar totalmente ao léu, Juliana conseguiu um espaço para dormir numa ocupação de sem-teto (extremamente carente, diz ela) na Zona Portuária, de onde a dona do imóvel tenta, na Justiça, expulsar o grupo. E com intenção de não depender só do governo, ela passou a vender bala no Catete, na Zona Sul. A filha mais velha, de 3 anos, fica na creche. A mais nova, de 1 ano e 3 meses, ela leva para o “corre”.

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— O dinheiro do auxílio acaba em 15 dias. Preciso trabalhar, mas não tenho com quem deixar a menina. Volta e meia o conselho tutelar me aborda. Esse é meu desespero: depois de ter perdido quase tudo de material, tirarem dos meus braços o que tenho de mais precioso — diz Juliana.

Enquanto amamenta a criança na porta de um banco, ela diz que também a dilacera o sentimento de humilhação ao ser julgada por estar nessas condições:

— Quantas vezes não enchi a barriga de água e dormi para não lembrar da fome? A hora que mais penso nessa situação é quando estou vendendo bala. Tem gente que passa e me xinga, me diz “vai trabalhar”. Uma mesma mulher que sempre insinua que exploro minha filha. Não sou um bicho para me tratarem assim.

Peculiaridades regionais

Característas dos grupos de moradores de rua diferem pelos bairros do Rio
Na madrugada, moradores de rua em calçada de Copacabana Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
Na madrugada, moradores de rua em calçada de Copacabana Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Assistentes sociais e equipes de Saúde da prefeitura que atendem à população de rua chegam a dizer que o medo de serem separadas dos filhos é tamanho que, não raramente, as famílias driblam as abordagens do município. A realidade de Juliana ainda revela outro aspecto que os profissionais têm observado. Na região central do Rio, o expressivo aumento dos sem-teto tem se manifestado no crescimento das invasões de imóveis vazios. Enquanto que, na Zona Sul, quem antes passava dias na rua para economizar dinheiro de transporte, mas eventualmente voltava para casa, agora tem permanecido em definitivo nas calçadas. Na Zona Norte, o que os preocupa é o superpovoamento das cenas de uso do droga, como o crack.

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Diante do desalento, em novembro passado o prefeito Eduardo Paes chegou a se dizer envergonhado por constatar no Centro barracas de pessoas na rua. No mês seguinte, informou que estudava a criação de uma secretaria voltada exclusivamente para o tema, mas nenhuma decisão foi tomada até agora.

— O que se precisa pensar é em profissionalizar essas pessoas, oferecer cursos, e abrir vagas de emprego — afirma o sociólogo João Clemente de Souza Neto, professor da Mackenzie de São Paulo, frisando que o aumento da população de rua no Rio e em outras metrópoles é resultado de múltiplos fatores, entre eles a pandemia, mas principalmente as crises econômica e política do país. — Numa crise dessa dimensão, cresce a desigualdade social. Depois, há os desdobramentos do desemprego (atualmente numa taxa de 14,2% no Rio, acima da média nacional) e da falta de moradia. Quem não tem casa própria, não tendo salário, não tem como pagar aluguel.

Influência até da milícia

Em Campo Grande, sem-teto que cometer furtos pode sofrer sanções dos grupos paramilitares
Lucas Henrique Nunes da Silva, 25 anos, faz malabarismo nas ruas de Campo Grande Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Lucas Henrique Nunes da Silva, 25 anos, faz malabarismo nas ruas de Campo Grande Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Pela cidade, das praças de Ipanema às da Pavuna, o sofrimento se repete. Mas, em cada região, o povo de rua também tem particularidades. Nas vizinhanças de Irajá, muitos se alimentam ou vão atrás do trabalho na órbita da Ceasa. Já bairros como Glória e Copacabana concentram pessoas LGBTQIAP+, muitas transexuais e travestis. No Centro, cabem vários perfis, como os que buscam mais segurança para dormir na Avenida Marechal Câmara, próximo a órgãos como o Ministério Público, ou os que confessadamente realizam furtos no coração financeiro da cidade. Situação impensável para os moradores de rua do centro comercial de Campo Grande, na Zona Oeste, onde a milícia proíbe esses crimes, sob a ameaça das penas dos grupos paramilitares.

No bairro, outra singularidade é a relação da população de rua com o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) local, ao qual recorrem diariamente, por exemplo, para tomar banho. É o ponto de apoio de moradores como Lucas Henrique da Silva, de 25 anos, conhecido como Du’Coco devido aos malabarismos com cocos que faz nos sinais de trânsito. Tem quatro meses que ele chegou com a família de Palmas, no Tocantins. Na internet, sua mulher fez uma busca por “lugar barato para morar no Rio”. Encontrou aluguel a R$ 250 numa comunidade de Campo Grande. Ao se mudarem, perceberam que não era bem assim, e não conseguiram assumir as despesas que surgiram:

— Achamos um canto cedido para meu filho e minha mulher, e eu segui na rua, onde encaro preconceito e pressão psicológica para sustentá-los.

Homem-Aranha do Méier

Ele quer um dia abrir sua própria barbearia
Darlan Rodrigues, de 38 anos, o ex-Homem-Aranha do Méier Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Darlan Rodrigues, de 38 anos, o ex-Homem-Aranha do Méier Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Em janeiro de 2010, o noticiário estampava a prisão do “homem-aranha” do Méier, que apavorava a região escalando paredes para assaltar apartamentos. Darlan Rodrigues, oriundo das comunidades do Lins, desde a infância perambulava pelo bairro da Zona Norte, entregue ao vício, cheirando cola, esmalte e até redutor. Depois de pego pela polícia, seu destino foi o Complexo Penitenciário de Gericinó, de onde só saiu em condicional em março do ano passado, de volta, literalmente, para as ruas.

Em parte dos dias, ele tem refúgio numa invasão no Centro. Noutros, passa nas sarjetas do mesmo Méier em que cresceu à própria sorte, porque ali consegue bicos para sobreviver, enquanto sonha em ter a própria barbearia, para pôr em prática o ofício que aprendeu na cadeia.

— O que mais me motiva para estar longe do crime é minha filha. Ela nasceu, e eu fui preso. Hoje, está com 11 anos. Pela primeira vez, passei o Natal, o Ano Novo e um aniversário com ela. Não aguento mais ficar um dia longe dela — diz Darlan, que conta segundos para cumprir sua pena completa.

Ao sair da prisão, pela primeira vez na vida conseguiu um trabalho temporário, em barracões da Cidade do Samba. Mas, aos 38 anos e ex-presidiário, conta quase sempre encontrar as portas fechadas. Até para tirar os documentos que ainda não tem, como o título de eleitor, enfrenta burocracia. Emprego com carteira assinada, então, acredita ser o mais difícil.

— Mas é o que eu busco. Ou isso, ou minha barbearia. Na cadeia, passei anos sem visita, na solidão. Agora, que tenho minha filha por perto, é só o que eu quero — diz Darlan.

Trans cata comida no lixo

Da vida de rainha a tempos, segundo ela, de desgraça
Scarllety Ohanna Bezerra de Andrade procura material reciclado e comida no lixo Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Scarllety Ohanna Bezerra de Andrade procura material reciclado e comida no lixo Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Garimpando o lixo da Zona Sul do Rio, Skarllety Ohanna de Andrade, de 39 anos, sobrevive. Cata material reciclável para vender e também restos de comida para se alimentar. Com uma flor vermelha na cabeça, gargantilha no pescoço e saião rodado até os pés, na noite do último dia 9 de fevereiro ela praticamente se metia nas caçambas da Avenida Nossa Senhora de Copacabana quando encontrou uma embalagem com dois dedos de ketchup. Não titubeou e pôs no carrinho de compras que usa para carregar seus achados no que os outros descartam.

— É uma sensação de humilhação, porque preferem jogar no lixo e não te dar. Mas deixei minhas unhas curtas e, com as mãos, reviro as sobras — diz ela, que, sem interromper o garimpo, deixa entrever que não é de hoje que enfrenta privações. — Onde passei ninguém quer passar.

A paraibana conta ter experimentado uma “vida de rainha” em Belo Horizonte, onde foi casada. Mas o marido morreu e, no Rio, diz Skarllety, foi “só desgraça”. Ela levanta o saião até a panturrilha para mostrar a tornozeleira eletrônica que precisará usar até setembro, depois de ter sido presa. E, debaixo da gargantilha, esconde cicatrizes de tempos sombrios:

— Na prisão, me trataram como um bicho. Cortaram meu cabelo, me vestiram de homem. Mas, quando saí de lá e me vi na rua, teve momento em que eu preferia até voltar para a cadeia.

É uma coleção de preconceitos que a vão calejando.

— Se uma trans com casa já encara muita discriminação, imagina na rua. Até para conseguir doação de roupa é difícil. E muitos já tentaram me agredir — diz ela, que antes de ir embora se desfaz da flor no cabelo e a deixa no lixo.

À procura do filho

Elicarla Maria Alvares sofre com a ausência do menino de 4 anos, dado para adoção
Elicarla Alvares:
Elicarla Alvares: "Tiraram o meu filho de mim" Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

No celular, a ex-moradora de rua, e hoje representante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua Elicarla Maria Alvares, guarda fotos de seu caçula, ainda bebê, tiradas com ela e o esposo na unidade Bia Bedran, da prefeitura. É assim que tenta matar, há três anos, as saudades do pequeno. O garoto completa 4 anos em setembro, e, segundo a mãe, foi dado para adoção de forma irregular.

— Fizeram um complô, e tiraram o meu filho de mim. Ele é uma gracinha, lindo, simpático. Quando fui vê-lo na Bia Bedran, no fim de 2019, disseram que havia uma ordem judicial e que eu não poderia mais visitá-lo — reage ela. — Não podem fazer isso. Quantas mães não estão sofrendo como eu sem notícias de seu filho? É muito triste. Queria saber como ele está, se está bem, ver meu bebê...

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Elicarla conta que, quando estava grávida de seu menino e morando de aluguel, por ex-moradora de rua um conselheiro tutelar a aconselhou a pôr a criança numa creche:

— Coloquei meu filho na Obra do Berço, na Lagoa, mas pegava nos fins de semana, e levava para casa. De lá, sem minha autorização, transferiram ele para a Bia Bedran. Continuei a ver meu bebê, até me proibirem. Por que? Nunca bebi, nunca usei droga. Podem perguntar a quem me conhece. O meu esposo bebe, mas trabalha, é pedreiro.

Elicarla completa 40 anos em agosto e chegou a cursar o ensino médio. Com um problema de visão de nascença, recebe um benefício do governo. De Viçosa, em Minas Gerais, foi violentada em sua festa de 15 anos. A família a colocou num convento desde então. Para se tornar freira, teria que passar um tempo num local onde não tivesse parentes. E foi mandada para o Rio, com uma carta de recomendação de um padre para uma instituição na Lapa. Só que, ao se apresentar, em 4 de agosto de 2014, foi informada que só aceitavam homens. Sem ter onde ficar, acabou na rua:

— Adormeci e, quando acordei, não tinha mais nada. Na rua, me roubaram tudo.

Pouco depois, nas calçadas do Centro, conheceu Leonardo de Jesus Maciel, que se tornou seu marido e pai de seus dois filhos:

— Ele foi meu salvador. Quando eu conheci o Leonardo, muitas pessoas queriam se aproximar de mim, para querer abusar, mal intencionadas.

Foram sete anos alternando a rua com casas alugadas e abrigos. Há quase um ano, ela e o marido moram numa quitinete atrás da Central, alugada por R$ 600. O casal costuma receber a visita da filha mais velha, de 6 anos, que passa a maior parte do tempo com a madrinha.

— Quando a Maria Eduarda nasceu, em 2016, estava numa casa. Ela tinha quatro meses, e eu fui para a rua de novo. Com medo de tirarem minha filha, deixei a Maria Eduarda na casa da madrinha. Mas eu vou lá, e ela vem na minha casa. Minha filha me chama de mãe. A madrinha, ela chama de mãe madrinha — conta Elicarla.

Uma vida de tantas quedas transformou Elicarla numa batalhadora pelas causas da população em situação de rua:

— O Rio é uma cidade bonita para gringo. A população em situação de rua está crescendo. São famílias perdendo a casa, pessoas que não têm como garantir o sustento das suas famílias. A prefeitura acha que abrigo resolve. Passei por vários. E, hoje, dou graças a Deus porque tenho um lugar para morar. Quem está em situação de rua precisa é de trabalho, uma casa para morar, de escola para seus filhos e de atendimento bom de saúde.

Como o processo de adoção do filho de Elicarla corre em segredo de Justiça, o nome e a foto dele não podem ser divulgados. Por e-mail, a Secretaria municipal de Assistência Social afirma que o menino chegou à Bia Bedran em abril de 2019, e, “depois de várias tentativas de reinserção junto à família de origem, sem sucesso, a Justiça determinou que fosse adotado, o que aconteceu no dia 17 de julho de 2020”.

O Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ) cita dois processos em tramitação. Segundo o órgão, o de destituição do poder familiar ultrapassou o prazo de 120 para sua conclusão, “pelas dificuldades de localização dos próprios pais”. Ainda de acordo com o TJRJ, a criança é acompanhada pelo Poder Judiciário desde 13 de abril de 2019, quando foi aplicada, “por encaminhamento do Conselho Tutelar, a medida protetiva de acolhimento institucional”. Acrescenta que houve duas audências com a participação dos pais, da Defensoria e do Ministério Público para reavaliar a medida.

Também na versão do TJRJ, nos autos constam três mandados de citação e intimação nos endereços disponibilizados, “sendo que todos retornaram negativos, pois as partes não foram encontradas quando das diligências”. “Passado um ano do acolhimento institucional da criança, que é provisório”, prossegue o Judiciário, “os pais foram suspensos do poder familiar, e as visitas vedadas”.

Os pais, conforme o TJRJ, “poderão obter informações sobre o filho, procurando a Defensoria Pública, ou através de advogado, ingressando regularmente no processo”. A Defensoria alegou que os pais não foram encontrados nos endereços que constavam no processo, sendo citados por edital. O órgão pediu ainda que compareçam ao órgão na próxima terça-feira, para falar com a defensora Jucyane de Castro Borba.

Entre o amor e volta ao lar

Ana Paula não que se separar do homem que a tirou da Vila Mimosa
Ana Paula de Freitas Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
Ana Paula de Freitas Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

É por amor que Ana Paula de Freitas Araújo, de 39 anos, ainda não retornou à vida com um lar. Ela conta que sua mãe abriu as portas de casa para morarem juntas. Mas sua família não aceitaria Sebastião Neto, de 47, por quem se apaixonou há quase dois anos. Um romance, diz ela, que não é como outro qualquer, a começar pelo cenário atual, a penúria sob as marquises da Cinelândia.

Essa história nasce em 2019, com a Favela de Antares, em Santa Cruz, onde Ana Paula morava, invadida pela milícia. Devido ao envolvimento de um de seus filhos com o tráfico, a família acabou expulsa da comunidade. Vagando desnorteada, ela encontrou saída na Vila Mimosa, conhecido ponto de prostituição do Rio.

— Eu não consigo, moço. Não é de mim. Eu estava sofrendo muito. Até o Sebastião me resgatar — conta Ana Paula, aos prantos.

Foi, sim, num programa barato que eles se conheceram para não se separarem mais. Primeiro, foram morar na Favela do Jacarezinho. Mas, lá, foi o tráfico o empecilho. Acabaram, então, indo para as ruas, um protegendo o outro. Nem todo cuidado de Sebastião, no entanto, impediu mais um drama no caminho de Ana Paula: no ano passado, ela foi atropelada por um caminhão perto do Aeroporto Santos Dumont. Precisou colocar duas placas e nove parafusos numa das pernas, que ficou torta, o que a deixa a maior parte do tempo numa cadeira de rodas:

— Eu me sinto a ovelha negra da família, que só tem advogado, magistrado... Eu sou dona do lar, não queria dormir assim, na rua. E deixo um recado à minha mãe: “te amo”. Mas fico dividida. Não posso abandonar o meu Sebastião, que me salvou.

A dependência da droga

'Uso cocaína e crack, e tem dia que estou tão mal que não consigo ir para o trabalho', diz guardador de carros que dorme na rua
Carlos Roberto da Silva Lima:
Carlos Roberto da Silva Lima: "Preciso de ajuda, por favor" Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

A droga permeia a vida de boa parte de quem vai para as ruas. Alguns elegeram os jardins do Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque do Flamengo, para viver. Carlos Roberto da Silva Lima tem 50 anos e não constituiu família. Aos 12, brigou com a mãe e foi embora de casa, numa comunidade do Santo Cristo. Ele não conta o que fez ao longo de quase 40 anos. Quer esquecer esse passado. Diz apenas que, já adulto e viciado em álcool e drogas, até conseguiu um trabalho: dia sim, dia não, reveza com outro operador o controle de vagas do Rio Rotativo na Avenida Atlântica, em Copacabana. Só que várias vezes não chega até lá.

— Uso cocaína e crack, e tem dia que estou tão mal que não consigo ir para Copacabana. Já estive em abrigo, casa de recuperação, NA (Narcóticos Anônimos)... Cheguei a ficar três anos limpo, mas voltei. Preciso de ajuda, por favor — implora, com lágrimas nos olhos. — Tudo o que procurei não deu certo. Não sei mais o que fazer. Quero me internar, não aguento mais, vou morrer. Do jeito que estou, não se tem dignidade, não se tem caráter.

O dinheiro que ganha, Lima gasta quase tudo com drogas. O pouco que sobra, se sobra, se dá um luxo:

— Às vezes, consigo alugar um quarto numa hospedagem e sair da rua por alguns dias.

De Caxias, Josilene Magalhães dos Santos, de 32 anos, chegou a fazer cursos de auxiliar de enfermagem, cuidadora de idosos e auxiliar de serviços gerais. Há sete anos, por causa da bebida, foi expulsa da casa dos pais. E perdeu a guarda dos filhos, de 14 e 13 anos, um deles autista. Conseguiu uma casa para morar na favela São José Operário, em Caxias, e por lá ficou.

Há cerca de um ano, Josilene estava pela Central quando conheceu Alan Machado, um morador de rua de 39 anos. Levou para sua casa em Caxias, mas, no mês passado, o casal passou a morar nos jardins do MAM.

— Perdi emprego e meus filhos. Tudo por causa da bebida. Conheci meu esposo na Central, e levei para a minha casa, mas ele não conseguia trabalho. O meu esposo tenta tirar a cachaça de mim, mas sou doente. Bebo dia e noite. Ainda bem que ele está comigo. A rua é ruim, ainda mais para uma mulher. Chamam logo a gente para roubar — diz ela, segurando uma garrafa de cachaça.

Recentemente, ela saiu da rua, deixando o marido no MAM. Voltou para a favela, em Caxias. Por quanto tempo? Não sabe.

— Preciso conseguir um emprego, quero mudar de vida — afirma, usando o celular de um vizinho.