EDUCAÇÃO

Por Mari Kateivas, G1 PR — Foz do Iguaçu


Reportagem mostra os desafios da educação especial durante a pandemia

Reportagem mostra os desafios da educação especial durante a pandemia

Eles são cegos, surdos, pessoas com deficiência física ou intelectual, têm transtornos globais do desenvolvimento e, como tantos outros estudantes, estão enfrentando e aprendendo com os desafios da educação remota em tempos de pandemia.

O Paraná tem 33,5 mil estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades na rede estadual de ensino que recebem atendimento educacional especializado. Eles e os demais 1,03 milhão de alunos estão em casa desde o dia 23 de março, quando as aulas presenciais foram interrompidas.

O conteúdo vai ser revisto. Não tem como passar por cima, vamos precisar preencher essa lacuna. O próximo ano terá que ter essa retomada do ensino, porque nem todos foram atingidos, nem todos conseguiram aprender, nem todos são autodidatas, não é fácil aprender em casa”, disse a professora Neca sobre o próximo ano.

Mariliese Malescki, conhecida como Neca, dá aulas para surdos no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. A adaptação do ensino tem sido feita com vídeos gravados, conteúdo escrito e mensagens pelas redes sociais.

Willian é surdo e explicou em Libras sobre o período com aulas remotas

Willian é surdo e explicou em Libras sobre o período com aulas remotas

Com uma conexão ruim, por exemplo, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) fica incompreensível com imagens travadas, exibidas aos alunos surdos. Estudantes cegos têm dificuldade nas aulas de exatas sem números e fórmulas que, nas aulas presenciais, contavam com materiais em relevo.

No caso dos autistas, a mudança forçada da rotina, com o distanciamento social, pode prejudicar o aprendizado. Para as pessoas com deficiência, ensinar de longe torna-se uma difícil tarefa aos educadores.

Calendário escolar segue com atividades remotas no Paraná — Foto: Aquivo pessoal

Mesmo sabendo que o distanciamento social é fundamental para a preservação da saúde, Neca acredita que haverá perdas no desenvolvimento dos alunos surdos.

“Com eles em casa, eles perdem o contato. Se o pessoal ouvinte já sente falta, os alunos surdos não têm com quem conversar. Em casa, em 90% dos casos, a família não conhece a língua de sinais, não tem fluência. Sem esse contato eles perdem demais e isso enfraquece a língua de sinais, porque se não tenho contato com a língua, ela vai ficando pobre, estabiliza e não desenvolve. Eles acabam ficando com um ano de língua parada, vamos dizer assim.”

A rotina com aulas em casa

Miguel é autista e tem recebido atividades adaptadas para fazer em casa, segundo a mãe Keila — Foto: Keila Faria/Arquivo pessoal

  • Autismo

Keila Faria é mãe da Fernanda, de 14 anos, e dos gêmeos Sofia e Miguel, de 5 anos. Com os três em casa, em Maringá, no norte do Paraná, as atividades remotas da rede municipal e estadual são muitas e nem sempre é possível dominar todos conteúdos.

“É bem frustrante, porque eles perguntam muita coisa e às vezes a gente não sabe, não tem uma resposta pronta. Aí a gente se vê em uma saia justa, tenta contornar, mas depois a gente para e pensa: nossa, eu não consegui responder. Fico bem chateada.”

O filho dela é autista e, por isso, além das atividades dos gêmeos, a mãe precisa ensinar o conteúdo adaptado ao pequeno. Aos poucos, a hora da lição foi ficando mais tranquila, mas o impacto das mudanças repentinas não foram fáceis para família.

“Às vezes a gente não dá tanta atenção para o professor, como a gente vai dar de agora em diante. Eu já valorizava, porque com uma criança especial a gente já vê o cuidado do professor, mas, a partir de agora, muito mais”, contou Keila.

A mãe Keila auxilia os gêmeos durante as atividades remotas, em Maringá — Foto: Keila Faria/Arquivo pessoal

  • Deficiência visual

Daniel Correia, de 17 anos, tem baixa visão e estuda no Colégio do Campo Pedro Américo, em Serranópolis do Iguaçu, no oeste do Paraná.

Ele está no 3º ano do ensino médio e se prepara para o vestibular, por isso, ele acha que as aulas pela internet foram uma boa opção para não perder o ano e atrasar a entrada em uma universidade. Entretanto, relata que em algumas áreas o ensino remoto é mais difícil.

“Nas matérias de humanas a gente se vira bem, mas nas aulas de exatas, que usa bastante número e gráficos, dificulta bastante. Na escola tinha o material de ajuda, em alto relevo, que professora mostrava para nós.”

O irmão dele, Lucas Correia, de 16 anos, é cego e está no 2º ano. Para estudar, ele tem auxílio de um programa de leitura no computador, mas ainda sente falta da professora ao lado.

“Prejudica porque no presencial tinha como perguntar para o professora quando eu não entendi alguma coisa. Hoje não, a gente tem que fazer, praticamente, tudo por conta própria e nem todo mundo consegue entender”, contou Lucas.

Daniel ainda disse que o interesse dos alunos é diferente no ensino presencial e remoto, pois a flexibilidade para estudar a distância é maior. Na sala de aula a disciplina era maior, com os horários estabelecidos.

Para os irmãos Daniel, que tem baixa visão, e Lucas, que é cego, é mais difícil estudar cálculos sem o auxílio do professor — Foto: Arquivo pessoal

  • Deficiência auditiva

William Francisco Valaschi, de 12 anos, é surdo e tem o auxílio da mãe, Cleusa Chimanski Valaschi, para fazer as atividades em casa. Ele contou que sente saudades da escola, dos amigos, dos intérpretes e professores.

“Estudar em casa é diferente, ficar com a família é bom. O importante agora é ficar em casa e se cuidar”, revelou o menino.

Cleusa disse que sempre acompanhou o estudo dos dois filhos de perto, mas a pandemia realmente reforçou esse trabalho e a fez ver, ainda mais, a importância do trabalho dos professores.

“É um período que serve para a gente aprender a valorizar mais a escola, o trabalho dos professores. Porque, às vezes, as pessoas pensam que o trabalho deles é fácil, mas aí a gente ficando com eles em casa e tendo que passar para eles, sendo que nós nem somos formados, vemos a real dificuldade que se tem em ensinar uma criança surda. É bem complexo, não é nada fácil”, disse.

A mãe entende que não será um ano totalmente completo, mas não pode se considerar perdido, pois os pais e professores têm feito tudo que podem.

Cleusa recebe a orientação do intérprete da escola para ajudar o filho Willian, que é surdo — Foto: Arquivo pessoal

Relação social

Para a professora Neca, o distanciamento também afastou os alunos das relações sociais. Na educação especial há um agravante, pois foram afastados de ambientes em que podiam ser ainda mais compreendidos.

Os alunos perdem o contato com o mundo. Não tem com quem conversar, com quem brincar. Quando você é criança ou adolescente, a escola é um lugar para compartilhar momentos com os amigos, é um lugar social. Primeiro é social, depois vem o aprendizado, então isso está fazendo muita falta. Sei que tem alunos que estão deprimidos.

A professora Neca tem adaptado as aulas com a gravação de vídeos com a língua de sinais — Foto: Arquivo pessoal

De acordo com a professora Priscila Faria, que tem atendido autistas no Colégio Padre Ângelo Casagrande, em Marilândia do Sul, no norte do Paraná, as aulas remotas reforçaram a importância da relação entre educador e estudante.

“Eu ouço nossos alunos dizendo: 'nunca imaginei que quisesse voltar para a escola e que eu sentiria falta do colégio'. Com isso, nós professores, ficamos contentes porque vemos nossa importância. Nós vemos que os alunos estão assustados ainda com a questão do online, porque o ser humano gosta do contato e isso está fazendo falta. Eles querem esse contato humano entre professor e aluno”, explicou.

Além do ensino

Para muitos educadores, ser professor vai muito além de ensinar. Estar perto, conhecer mais o aluno, aprender com ele e se relacionar fazem parte da missão.

Longe das salas de aula, conseguir descobrir algum problema pessoal e tentar ajudar os estudantes é quase impossível. Além disso, segundo a professora Neca, o atual momento econômico revela outras situações que impactam o educador.

O que impacta a gente é a miséria, no todo sentido da palavra. É muito difícil quando você vê famílias que você conhece e estão passando dificuldade. A falta de acesso, a internet ou isso e aquilo, a gente ainda consegue se virar, mas quando você vê que a tecnologia não resolve aquele problema, isso é o que mais impacta. A gente se deparou com o outro lado, o lado da miséria. De não ter emprego, não ter comida… Isso é o pior. Isso impacta muito mais do que a falta de acesso à educação.

Retorno das aulas

O governo do estado avalia o retorno das aulas presenciais em setembro, por meio de rodízio semanal com ensino remoto.

Segundo a Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed), apesar da programação, a retomada pode ser alterada dependendo do desenvolvimento da pandemia.

As aulas remotas tiveram início em abril e, até o momento, alcançam 97% dos estudantes da rede estadual, conforme a secretaria.

Imagem mostra escola de Curitiba pouco antes do fechamento por conta da pandemia de Covid-19 — Foto: Theo Marques/Framephoto/Estadão Conteúdo/Arquivo

De acordo com a professora Neca, a retomada das aulas presenciais é vista de forma perigosa, pois o rodízio de alunos não deve funcionar na prática. Além disso, ela não acredita que os alunos não terão contato um com o outro e a aglomeração será inevitável.

“Não existe nenhuma chance do aluno não se abraçar. Vão perder a máscara, vão trocar borracha, vão pegar caneta colocar na boca e emprestar para o outro… isso eu tenho certeza.”

Segundo ela, de certa forma, os alunos têm acompanhado as aulas remotas, apesar de não ser 100% que têm acesso.

“Acho que essa é uma pressão maior das escolas particulares. Eles vão colocar aquelas câmaras de desinfecção e tudo mais, mas a escola pública não vai ter isso, mal tem álcool em gel e sabonete. Acho muito difícil, pois a realidade é outra.”

Para a professora Priscila o retorno é um assunto bastante delicado, principalmente, com a educação especial.

A gente se preocupa bastante com esse retorno, com esses alunos, porque nós temos que conversar muito com eles. Temos que colocar na cabecinha deles que precisam usar a máscara, que precisam ter cuidado, que não pode tocar no amiguinho, que não pode ter tanto contato.”

Aulas foram suspensas em 20 de março pelo Governo do Paraná — Foto: Reprodução/RPC

Neca destacou ainda que é preciso pensar na saúde de todos. Que quando precisarem voltar, vão voltar, mas é necessário ter muito cuidado. Por isso, acredita que as atividades remotas deveriam durar por mais tempo.

“Melhor estarmos preparados para uma educação a distância do que preparados para a morte. Nesse momento a saúde é mais importante que a educação. Esse é um momento em que a saúde está em primeiro. De nada adianta eu ter conhecimento e não ter saúde.”

Educação na pandemia

De acordo com a Seed, os professores das salas de recursos multifuncionais continuam atendendo, pela internet, os estudantes da educação especial.

Além disso, as mais de 3 mil aulas do estado contam com interpretação de Libras. Em caso de dificuldades, os pais podem entrar em contato com o núcleo de educação ou escola em que o filho está matriculado.

Aluno recebe apoio da professora da educação especial por videochamada — Foto: Arquivo pessoal

O governo do Paraná conta com três Escolas Estaduais Bilíngues para surdos e 10 Escolas Bilíngues para surdos que são parceiras da secretaria. O ensino bilíngue trata-se da língua portuguesa e de sinais.

No caso dos autistas, o estado conta com os trabalhos desenvolvidos pela Escola Estadual Lucy Requião, uma modalidade de educação especial, onde quase 100% dos estudantes apresentam diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Conforme a secretaria ainda, a rede estadual tem parceria com associações mantenedoras de escolas especializadas, que também ofertam escolarização para estudantes autista associada a outras deficiências.

Paraná tem mais de 33,5 mil estudantes com deficiências, transtorno global do desenvolvimento e altas habilidades — Foto: Arquivo pessoal

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