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Universidade pode tirar negros da mira da bala, diz pesquisadora

Márcia Lima, professora da USP, defende cotas raciais, que podem ser revistas em 2022

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São Paulo

Ser jovem e negro no Brasil é viver sob risco. A taxa anual de homicídios entre homens pretos ou pardos entre 15 e 29 anos é de 185 para cada 100 mil habitantes, segundo o IBGE. Entre brancos, do mesmo sexo e faixa etária, a média é de 63,5 por 100 mil.

“Os nossos jovens negros têm que estar dentro das universidades para ficar bem longe da mira da bala”, afirma Márcia Lima, coordenadora do Afro —Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professora do Departamento de Sociologia da USP.

Em entrevista à Folha, ela defende que a inclusão de pessoas negras no ensino superior é um dos melhores remédios para a violência racial, e que as cotas sociais e raciais são parte essencial dessa agenda de inclusão.

Oficializadas em 2012, com a Lei de Cotas, essas medidas poderão ser revistas em 2022.

Qual o impacto da pandemia para os jovens negros? Os negros têm mais chances de morrer em razão das precárias condições de acesso à saúde e pela pobreza. Os jovens mais pobres, grande parcela dos estudantes negros, têm mais dificuldades para estudar. Soma-se a isso um histórico problema que não mudou. Os jovens negros têm que enfrentar a política de genocídio do estado. É inadmissível o que tem acontecido no Rio de Janeiro: jovens negros assassinados em operações criminosas em plena pandemia.

Quais os efeitos práticos das cotas raciais nas universidades combater o racismo? A presença de alunos negros não corrige só a desigualdade racial. Significa mais chances para esses jovens no mercado de trabalho e mais oportunidades para eles ampliarem suas redes de relações, o seu capital social. Há outros efeitos, como a ideia da diversidade, que não é só racial. O espaço da USP, por exemplo, uma universidade branca feita para pessoas brancas que formam pessoas brancas. É uma formação pobre do ponto de vista humano. E inferior se comparada às experiências de outras instituições. É cegueira absurda e intelectual não perceber isso. Não apenas os alunos negros se beneficiam desse processo —as instituições também, mas poucas entendem isso.

A professora e pesquisadora Márcia Lima
A professora e pesquisadora Márcia Lima durante entrevista à Folha - Karime Xavier / Folhapress

Contra as cotas muitas vezes há o argumento de vitimismo e meritocracia. Acusar de vitimismo é achar que se pode colocar na posição do outro e desqualificar sua trajetória e experiência. Não cabe a uma pessoa branca julgar situação que ela não vive. Quem tem o privilégio de não passar por determinadas situações não deve dizer se alguém está ou não sendo vítima de racismo. Em relação a meritocracia, podemos pegar o autor mais liberal da face da Terra e ele vai dizer que ela só é possível quando se tem igualdade de oportunidade. Em sociedades desiguais como a brasileira não podemos falar que os resultados são meritocráticos. Os estudantes cotistas também têm muito mérito. Considerando o sistema educacional brasileiro, um jovem negro que termina o ensino médio já é um vencedor. Ele já passou pelos maiores gargalos e está apto a entrar na universidade. Merece respeito.

Como avalia a política de cotas em duas décadas? Tem dois momentos. Dez anos sem a lei e dez anos com ela. Primeiro, com a adesão da UERJ [2003] e das universidades federais e, segundo, com a lei [nº 12.711/2012]. Nas instituições que implementaram ações afirmativas com recorte social e racial, há aumento significativo depois do Reuni (programa federal criado em 2008), que adotava políticas de inclusão. Em 2012, com a Lei de Cotas, houve outra transformação. Metodologicamente, é preciso cuidado na análise do impacto. A força-tarefa para defender a iniciativa não nos permitiu olhar para os problemas dela e nem avaliar ajustes. Passamos tanto tempo defendendo o seu princípio que não tivemos a oportunidade de mergulhar no aperfeiçoamento. Por isso que ela precisa continuar. Ela não está consolidada. Precisamos melhorá-la, porque entre os famosos 50,3% [dado do IBGE que indica que, em 2018, pretos e pardos se tornaram maioria nas instituições federais de ensino superior], existe outra questão. Estamos conseguindo resolver a desigualdade de acesso em algumas carreiras, mas em outras, não. Os cursos mais competitivos são aqueles em que os negros têm mais dificuldade de ingressar.

A USP só aderiu a cotas raciais em 2018. Por que demorou tanto? As cotas sociais e raciais não eram um projeto da USP, que nunca se colocou como instituição comprometida com o projeto de inclusão racial. A resposta que ela deu foi criar a USP Leste. No primeiro vestibular [2004] houve maior participação da população mais pobre, mas no segundo já estava com perfil não tão distante da USP oeste. Eu já era professora da universidade e vi a USP criando o Inclusp, a unidade na zona leste e outros projetos. Todos evitando a ideia de tratar da questão racial. Mesmo agora, com a lei, a USP continua blindando a Fuvest ao colocar as cotas sociais e raciais no Sisu [que usa as notas do Enem como critério de ingresso].


Por que em 2018 a USP assumiu as cotas? Por muita pressão. O Núcleo de Consciência Negra da USP é muito antigo. A pressão dos coletivos de estudantes da USP e da sociedade sempre foi forte. Foi ficando cada vez mais difícil negar essa agenda. Isso sempre foi uma decisão de um conselho universitário branco, masculino que domina a universidade desde a sua existência. É assim que as coisas são decididas na USP.

Quais as perspectivas da política de cotas para o futuro? O momento é bastante complicado. Não temos um governo federal que apoia essa lei. Estamos ou em inércia ou em desinstitucionalização. Não há investimento. A ministra Damares (Direitos Humanos) não investe nem fala disso. O ministro da Educação, muito menos. Não temos com quem dialogar no governo federal sobre inclusão racial. Até porque ele nega que isso seja um problema. A esperança é o Legislativo, a sociedade civil organizada e a imprensa para tentar manter a política. E cabe a nós, pesquisadores e intelectuais, demonstrarmos a importância dos avanços produzidos na sociedade brasileira a partir de estudos e investigações.

Como a senhora compara os efeitos das cotas raciais e das cotas sociais? Há uma percepção equivocada de como a Lei de Cotas funciona. Segundo a lei 12.711, a cota racial também é uma cota social. Muitos que se opõem às cotas raciais falam que elas apresentam privilégios e que não podemos distingui-las das sociais. Não faz sentido, porque elas não estão separadas. A lei reserva 50% das vagas primeiro para estudantes de escola pública, depois [os estudantes] são divididos pela renda, o segundo critério social. Só depois se aplica o critério racial [a proporção da população negra e indígena de cada unidade da federação]. Por que defendemos a cota social e racial? Quando enfrentamos a desigualdade social, a situação dos negros é sempre mais difícil, mesmo entre os mais pobres. As políticas de recorte social funcionam de forma tímida para incluir a população negra. Por isso, as cotas raciais são importantes.

Em 2022 deve haver a revisão da Lei de Cotas. Ela pode deixar de existir? Acho que esse processo ainda não está sendo pensado pelo governo. Como essa agenda não é prioridade, acho que não existe um encaminhamento formal. Mas as políticas estão funcionando, e as prerrogativas mais negativas em relação a elas não se consolidaram. A cota ainda é necessária. Olha no caso dos EUA. Quando as ações afirmativas foram suspensas, as desigualdades aumentaram. Imagina no Brasil? Dez anos é muito pouco para não dependermos mais da política de cotas. Acho imprudente, injusto e inconsequente pensar em não renovar. Ainda não temos institucionalidade.


Como o movimento negro vê a revisão da lei? O movimento negro está muito organizado com relação a tudo que diz respeito a este governo e a população negra. Temos a Coalizão Negra por Direitos funcionando muito bem. Esse governo conseguiu uma coisa importante, que foi fazer o movimento negro se alinhar. Estamos atentos, monitorando o que acontece no Legislativo. Embora com restrições orçamentárias, estamos produzindo conhecimento, análise e monitoramento. O momento é muito difícil. Tem a desinstitucionalização [a possibilidade de a lei cair] e há agendas neste governo que colocam a população negra em situações de maior vulnerabilidade.

Outras políticas estão sendo discutidas para o combate à desigualdade racial? Quando foi criada a Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no governo Lula, em 2003], a agenda era muito ampla. O Programa Brasil Quilombola, a política de saúde da população negra, a lei 10.639 —que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras— e políticas de qualificação profissional. Temos também a lei antirracismo que é punitiva. Nenhuma dessas leis foi revogada, mas elas estão na inércia. O que mais me preocupa é o oposto. A tentativa do governo federal no pacote anticrime de tentar passar a exclusão de ilicitude era uma política de morte. Ali era uma licença para matar negros. A violência racial é uma das maiores indicadoras de desigualdade que nós temos, e a população não vê isso como questão racial. O encarceramento é uma resposta rápida, e não existe discussão sobre isso. Eu acho que essa é a pauta mais regressiva e a mais perigosa que enfrentamos. Por isso, é muito importante mantermos a agenda da inclusão racial no ensino superior —porque os nossos jovens negros têm que estar dentro das universidades para ficar bem longe da mira da bala.

RAIO-X

Márcia Lima, 49, mestre e doutora em sociologia, com pós-doutorado na Universidade de Columbia (NYC); é professora do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora sênior associada do Cebrap, onde coordena o Afro (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial). Ela fez pós-doutorado na Universidade Columbia, em Nova York, com enfoque em desigualdade e relações raciais.

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