Por Ana Carolina Moreno, G1


Discutir o racismo não faz parte de projetos temáticos em 24% das escolas públicas do Brasil. Dados do questionário do Censo Escolar de 2015, aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com 52 mil diretores de escolas, mostram que em 12 mil delas não existem projetos com a temática do racismo.

Esse número, extraído do levantamento mais recente disponível, aumenta quando o assunto é a desigualdade social, tema que 40% das escolas não abordam em suas atividades pedagógicas, e diversidade religiosa. Nesse caso, as escolas que não incluem o tema em seus projetos sobe para 52%.

Para Cida Bento, fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), os números mostram que, 15 anos depois, a Lei 10.639, que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira, ainda não é uma realidade em todas as escolas.

Nesta quarta-feira (21), Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, o Ceert realiza um evento no Sesc 24 de Maio, no Centro de São Paulo, para debater os resultados da lei, com a presença da professora Petronilha Gonçalves, uma das responsáveis pela criação da lei, e da atriz Taís Araújo.

Questionário do Censo Escolar ouviu mais de 52 mil diretores de escolas públicas sobre atividades em sala de aula que lidem com temas sobre as desigualdades racial e social — Foto: Rodrigo Cunha/G1

Poucas estatísticas

Desde 2003, todas as escolas são obrigadas por lei a ter, no currículo do ensino fundamental e médio, o ensino de história e cultura afro-brasileiras. Porém, o Brasil não tem mecanismos oficiais para garantir que a lei é cumprida, como acontece com outros temas, como o ensino religioso – no questionário do Censo Escolar aplicado pelo Inep aos diretores, existem três perguntas específicas sobre o ensino religioso na escola.

No Censo Escolar realizado pelo Inep, as questões sobre o racismo, as desigualdades sociais e a diversidade religiosa são tratadas como temas de projetos relacionados a "fatos que afetam a segurança" nas escolas, como bullying, uso de drogas e sexualidade na adolescência.

Questionário aplicado pelo Inep em 2015 a mais de 52 mil diretores de escolas públicas brasileiras — Foto: Reprodução/Inep

Neste mês, um acordo entre os ministérios da Educação e dos Direitos Humanos criou uma iniciativa para garantir o cumprimento da lei, que, em 2008, também incluiu a obrigatoriedade do ensino da cultura indígena nas escolas.

Entre as iniciativas está a identificação e promover boas práticas no ensino desses temas, além da capacitação dos professores e outros profissionais da educação.

Segundo o MEC informou no site http://etnicoracial.mec.gov.br, com notícias e publicações para subsidiar o tema, o edital deve ser divulgado ainda neste mês, e as inscrições estão previstas para abril.

Um dos projetos premiados pelo Ceert foi realizado por mais de 20 professores do Centro de Ensino Fundamental 602 do Recanto das Emas (DF); a escola mapeou discriminações por meio de um questionário e depois promoveu palestras, oficinas de capoeira, grafite, maculelê e penteado afro, e realizou um desfile de beleza negra — Foto: Divulgação/Ceert

ONG já capacita professores

O Ceert já realiza capacitações para professores desde 1998 e, a partir de 2002, começou a mapear e premiar boas práticas de ensino da cultura afrobrasileira nas escolas. Nesse périodo, mais de 24 mil professores e educadores passaram pelas formações da ONG e 3 mil iniciativas foram catalogadas em 1.146 municípios. Os projetos premiados são listados no site do Ceert.

Cida afirma que a falta de dados suficientes para avaliar se a lei está sendo cumprida em território nacional ou não afeta diretamente a permanência e o desempenho dos estudantes negros na escola, e também a percepção de igualdade entre os estudantes brancos.

Por outro lado, os estudos com as escolas que já introduziram o tema no currículo escolar e que realizam atividades de resgate da cultura e da história afro-brasileira mostram que os resultados são positivos tanto para a auto-estima dos estudantes quanto para o próprio desempenho da escola em indicadores de avaliação como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Uma escola de educação infantil em São Paulo foi premiada na última edição do Prêmio Educar, do Ceert; as educadoras e educadores usaram um teatro de boneco para a 'construção da identidade e do juízo moral da criança, baseada na justiça social, na igualdade racial, na equidade e na felicidade para cada um e todos os seres humanos, respeitando as diferenças, dissociando sempre a diferença da inferioridade' — Foto: Divulgação/Ceert

Transformação por meio da escola

Segundo ela, os projetos despertaram, além de conhecimento sobre a história da África, que reflete na autoestima dos estudantes negros, iniciativas de ajuda mútua entre eles. Cida citou o caso de uma escola na Bahia onde a permanência de mães adolescentes foi garantida pelo apoio dos próprios colegas.

"Como as meninas negras são as que mais engravidam, os alunos e professores ajudavam a cuidar do bebê naquele tempo de amamentação para elas não abandonarem. Saídas para não deixar ir embora da escola que é bem interessante."

Para a especialista, a falta de conteúdos que reflitam a realidade dos estudantes negros na sala de aula é o início de um processo que, muitas vezes, acaba culminando no abandono da escola. "Não existe nenhuma chance de o Brasil avançar no problema de educação se não prestar atenção no 53% da população que tem maior chance de evasão escolar e desempenho, porque sua cultura não está representada", afirmou ela.

Cida Bento ressalta, ainda, que a maior parte dos jovens assassinados tem baixa escolaridade. "O abandono da escola te deixa mais vulnerável para drogas e uma série de fatores. A gente tem que deixar as crianças na escola, com educação de qualidade pra todas elas."

No Amazonas, os professores de uma escola decidiram alfabetizar seus alunos também na língua Tuyuka, valorizando o conhecimento de seus ancestrais e preservando a cultura da comunidade; entre os resultados do projeto, que foi premiado pelo Ceert, está a produção de livros didáticos específicos na língua indígena — Foto: Divulgação/Ceert

Formação e livros didáticos

Ao G1, o Ministério da Educação informou que, um ano depois da lei entrar em vigor, homologou as diretrizes curriculares para a "educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana", e que "apoia os sistemas de ensino no desenvolvimento de política de formação continuada de professores e gestores para que a escola possa cumprir o seu papel na formação e transformação social à medida que pode proporcionar 'acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados e na conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais'".

O MEC disse ainda que, a pedido dos próprios sistemas de ensino, "apoia a oferta de cursos desenvolvidos por universidades públicas, em nível de extensão, aperfeiçoamento e especialização, nas modalidades presencial e a distância, em diversas áreas, entre as quais a temática da Educação para as Relações Étnico-Raciais".

Dados do MEC mostram que pelo menos 21 publicações foram produzidas e distribuídas "com o objetivo de subsidiar os sistemas de ensino no cumprimento da legislação", entre eles livros e artigos teóricos, além de almanaques, jogos e manuais de práticas pedagógicas.

De acordo com Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), existe um "movimento no sentido de incorporar essa temática ao cotidiano dos conteúdos" e que é estimulado principalmente pelos livros didáticos.

"Se o livro didático incorpora o que está previsto na legislação, já é uma maneira de fazer com que o tema seja discutido no cotidiano da sala de aula, além dos eventos que falam sobre a contribuição da cultura negra para o povo brasileiro, como o Dia da Consciência Negra", explicou ele.

"O livro didático é o mecanismo para esse tema chegar em todos os lugares."

Ele lembra, ainda que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vai ser "uma importante aliada" para a abordagem do tema na sala de aula. O documento referente ao ensino fundamental foi aprovado no fim de 2017 e contempla a temática principalmente no sexto e sétimo ano do fundamental. A base referente ao ensino médio ainda não foi enviada pelo MEC ao Conselho Nacional de Educação (CNE).

Conheça alguns temas sobre história e cultura afrobrasileira e africana incluídas na parte de história da BNCC:

  • 3º ano: Identificar e comparar pontos de vista em relação a eventos significativos do local em que vive, aspectos relacionados a condições sociais e à presença de diferentes grupos sociais e culturais, com especial destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes.
  • 4º ano: O surgimento da espécie humana no continente africano e sua expansão pelo mundo; Os processos migratórios para a formação do Brasil: os grupos indígenas, a presença portuguesa e a diáspora forçada dos africanos
  • 5º ano: Identificar formas de marcação da passagem do tempo em distintas sociedades, incluindo os povos indígenas originários e os povos africanos.
  • 6º ano: Povos da Antiguidade na África (egípcios), no Oriente Médio (mesopotâmicos) e nas Américas (pré-colombianos); Os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais; As diferentes formas de organização política na África: reinos, impérios, cidades-estados e sociedades linhageiras ou aldeias; O Mediterrâneo como espaço de interação entre as sociedades da Europa, da África e do Oriente Médio
  • 7º ano: Saberes dos povos africanos e pré-colombianos expressos na cultura material e imaterial; As lógicas internas das sociedades africanas; As formas de organização das sociedades ameríndias; A escravidão moderna e o tráfico de escravizados
  • 8º ano: Uma nova ordem econômica: as demandas do capitalismo industrial e o lugar das economias africanas e asiáticas nas dinâmicas globais; O imperialismo europeu e a partilha da África e da Ásia
  • 9º ano: O colonialismo na África; As guerras mundiais, a crise do colonialismo e o advento dos nacionalismos africanos e asiáticos; Os processos de descolonização na África e na Ásia

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