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Preto Zezé

Um diálogo entre Medellín e as favelas brasileiras

Cidade colombiana é inspiração para políticas públicas voltadas às comunidades

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Preto Zezé

Ativista e empresário, é conselheiro da Cufa (Central Única das Favelas) e membro da FNA (Frente Nacional Antirracista)

Medellín, na Colômbia, é bastante popular por sua fama violenta, mas não foi isso que chamou nossa atenção. O que nos atraiu para a cidade foi uma ideia de favela como possibilidade, carisma e inovação. E saber como o lugar que afastava tanto as pessoas hoje acolhe a favela que é a mais visitada no planeta.

Ao conversar com jovens, moradores, gestores e especialistas, anotei algumas lições de Medellín e Moravia (dois territórios onde as políticas públicas integradas geraram impactos consideráveis). Dentre elas, a participação comunitária —aqui falo de uma participação mais ampliada, transparente, empoderadora, onde desde a concepção até a execução os usuários dos serviços estão presentes e participativos.

Não se trata de uma participação tutelada ou ligada aos interesses do gestor do momento. Até porque, como não existe reeleição, todos os esforços da governança local são em produzir continuidade das políticas como direitos, não como favor, prezando pela sustentabilidade de uma política de Estado, não de gestores ou políticos "x" ou "y".

A cidade construiu sobre o construído. Ou seja, nenhuma política pública eficiente estabelecida pelos prefeitos anteriores foi colocada de lado nas novas gestões apenas porque o prefeito mudou.

Ouvindo, os gestores viram que erram menos. Isso também impacta na ideia de pertencimento e da construção de uma relação mais satisfatória entre sociedade e Estado —o resultado é que não vi aparelhos depredados, pichados, quebrados ou sujos. E isso tem a ver com esse método e com uma escolha ética, que foi feita para definir que os equipamentos públicos para os pobres têm que ser de boa qualidade.

No imaginário popular, formou-se uma consciência de cuidado, de valorização da coisa pública. A presença combinada e dialogada do Estado gerou uma cidadania ativa, que identifica o valor das iniciativas e intervenções do poder público, produz uma identidade positiva e desmonta aquela ideia do Estado que se ausenta —e, que quando aparece, apenas pune, multa, controla, tributa e não devolve serviços, o que gera apartação e distanciamento.

Medellín quebrou definitivamente com a lógica perversa de fazer coisa malfeita e feia para quem é pobre. O princípio utilizado foi "o melhor para quem mais precisa". Seguindo a mesma lógica, a cidade trouxe dignidade para as suas intervenções públicas. Coisa simples para tratar problemas complexos, como uma delegacia onde havia torturas e que foi derrubada e, em seu lugar, construiu-se uma delegacia transparente. Ou de um local onde era uma fazenda de criminosos que virou um polo de abastecimento alimentar, com escolas, quadras de esportes e espaço para reciclagem de resíduos.

Como tudo tem uma conta, percebe-se que o pobre não só foi para o orçamento, mas gerou tributos, resultando numa administração municipal com alta capacidade de investimento. Do seu orçamento total global anual, 70% são utilizados para investimentos, 16% para a manutenção da cidade e 14% para o pagamento de pessoal. Nenhuma cidade brasileira chega perto dessa realidade.

Medellín também é dona da EPM (Empresa Pública de Medellín), que é responsável pelo fornecimento de água, energia, gás e coleta de lixo. Uma empresa 100% estatal e que está entre as cem melhores empresas públicas do mundo, quebrando o paradigma equivocado de que apenas a iniciativa privada é capaz de ser eficiente.

Todos os anos a EPM repassa para a Prefeitura de Medellín um montante equivalente a US$ 300 milhões, fruto dos lucros gerados pelos serviços prestados. E 100% desse recurso é empregado em projetos urbanos e sociais, de acordo com o mapa de maior pobreza e desigualdade da cidade.

Entre os anos 1980 e 1990, Medellín era a cidade mais violenta do mundo. Hoje, é a mais inovadora; não por ter fabricado um produto de tecnologia, mas sim pelas inovações sociais que implantou em seu território.

Um amigo, Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Cidadã do Recife, teve a função de ser o nosso guia na viagem e apresentou nosso interlocutor em terras colombianas, Jorge Melguizo, ex-secretário de Desenvolvimento Social e Cultura Cidadã durante a gestão do ex-prefeito Sergio Fajardo. A primeira frase de Jorge foi: "O pobre de Medellín é menos pobre que os demais pobres da América Latina porque conta com a presença da prefeitura e de políticas públicas eficientes, nas áreas mais pobres e desiguais da cidade".

Ao retornar de lá, ficou uma constatação: é possível, sim, transformar as comunidades pobres do Brasil em lugares decentes e dignos para se viver. Basta apenas articulação vontade política e engajamento.

A viagem para Medellín, bem como para Londres, França, Lisboa e Nova York, faz parte de uma iniciativa provocadora da Cufa (Central Única das Favelas) para adicionar ativos para um projeto mais amplo, que envolve a soma de inteligências e de boas práticas no país. Assim sendo, nessa missão se somaram o secretário que pilota a mais bem-sucedida política pública de juventude do país, Davi Gomes, de Fortaleza, o deputado Washington Quaquá (PT-RJ), ex-prefeito de Maricá (RJ), o CEO da Favela Holding e fundador da Cufa, Celso Athayde, Anderson Quack, do Ministério de Planejamento e Orçamento, e Karla Pereira, do Ministério dos Direitos Humanos.

No Brasil, antes de viajar para levar tecnologias sociais brasileiras e conhecer outras de fora do país, estávamos iniciando, com o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) e outros parceiros, uma discussão sobre a necessidade de se criar uma intervenção política com musculatura capaz de pautar uma agenda de políticas integradas. Ou seja, um cardápio de ações que o país já possui, mas que necessita ocupar um lugar de destaque e importância, capaz de pautar o debate político no Legislativo, Executivo, Judiciário e setor privado —e que tenha como agenda comum a favela e suas potências.

Dessa movimentação, surge da parceria de Cufa, Frente Nacional Antirracista (FNA) e Parlamento brasileiro, capitaneado pelo deputado Washington Quaquá, a maior iniciativa política de favelas que o país já teve conhecimento: A Frente Parlamentar em Defesa das Favelas e Respeito à Cidadania de seus Moradores, será lançada nesta quarta-feira (14), às 18h, no plenário 1 no anexo 2 da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Estarão presentes 15 ministros de Estado e 12 senadores, e já estão confirmados na nova frente parlamentar mais de 300 deputados, empresas nacionais, lideranças de favelas e parceiros.

A Frente Parlamentar em Defesa das Favelas e Respeito à Cidadania de seus Moradores vai atuar em parceria com a sociedade civil, dialogando com o Legislativo e produzindo repertório de políticas públicas inovadoras para incorporar as potências das favelas.

Todos os estados, através de seus parlamentares, de todos os partidos, têm assento regional e estadual para representar as suas respectivas regiões, de maneira que o país, através de suas representações políticas, estará presente nesse movimento inédito.

A favela ocupou a política para renovar esperanças de um país melhor. Nesses territórios vivem mais de 20 milhões de pessoas, que produzem R$ 202 bilhões em poder de consumo (maior que o PIB de vários países). Com a nova frente parlamentar, esperamos compartilhar oportunidades e benefícios gerados com o trabalho desses brasileiros —porque, como bem diz o professor Celso Athayde, a favela não é carência, a favela é potência.

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