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Economia e políticas públicas

Opinião|Transferências e subdesenvolvimento

Crescentes dimensão e centralidade no debate político dos programas de transferências diretas às famílias são sintoma de país que desistiu de se desenvolver.

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Atualização:

O presidente Jair Bolsonaro disse na quarta-feira (7/9) que o valor do Auxílio Brasil chegará a R$ 800 para beneficiários que consigam se empregar. Fica claro que o desespero pela imobilidade nas pesquisas de opinião está levando o candidato à reeleição a promessas de transferência de dinheiro público a famílias cada vez mais arrojadas.

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Aliás, esse é um assunto que está na boca de todos os candidatos. Promessas de transferir mais dinheiro às famílias viraram um dos temas mais quentes dos embates eleitorais no Brasil.

Há quem veja com bons olhos essa tendência. Afinal, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com grandes níveis de pobreza e extrema pobreza. O redistributivismo reforçado à cada eleição seria sinal de que nossa democracia está reagindo de forma produtiva aos grandes problemas do País.

Este colunista, no entanto, é menos otimista quanto a essa questão.

O Bolsa-Família surgiu em 2004, como consolidação e ampliação de diversos programas de transferências federais (a coluna sempre se refere ao governo central) existentes à época. Foi um programa muito bem pensado por técnicos de alto nível, privilegiando o foco nos mais pobres e introduzindo condicionalidades como manter os filhos na escola.

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O Bolsa Família foi concepção de formuladores de política social que levavam a sério a questão fiscal, e, portanto, a proposta era a de ter um máximo de impacto com um mínimo de recursos.

Era um programa paliativo com componente estruturante, à medida que permitia aos muito pobres ordenar melhor suas vidas e cuidar da nova geração. Mas não passava pela cabeça dos criadores do programa que a solução para a pobreza do Brasil seria transferir cada vez mais recursos públicos a famílias.

De 2008 a 2010, já bem consolidado, o Bolsa-Família dispendia cerca de 0,35% do PIB. Em seguida o programa deu um salto para uma faixa próxima a 0,45% do PIB, na qual se manteve até 2019.

Em 2020, na pandemia, surgiu o Auxílio Emergencial, um programa de transferência federal com universo de beneficiários e valor de benefício muitas e muitas vezes maiores do que o Bolsa Família.

Em 2020, gastou-se 3,64% do PIB com o Auxílio Emergencial e mais 0,41% com o Bolsa-Família, num total de transferências a famílias de 4,05% do PIB. As transferências federais a famílias, portanto, multiplicaram-se por quase dez vezes em 2020.

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(Sempre que menciona programas de transferências às famílias, esta coluna se refere ao Bolsa-Família, Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil. Estão de fora, portanto, toda a Previdência e programas como o BPC, destinado a pobres que sejam idosos ou deficientes.)

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2020, entretanto, foi um ano especial, em que a fase mais intensa de quarentena, por causa da pandemia, obrigou dezenas de milhões de brasileiros, com destaque para informais, a largarem seus trabalhos.

Só que, pós-pandemia, fica nítida a tendência, reforçada pela disputa eleitoral, de ampliar as transferências às famílias.

2021 ainda foi um ano de pandemia, até pior em termos de mortalidade, mas com menos quarentena do que 2020. A transferência às famílias atingiu 0,95% do PIB, com 0,4% do Bolsa Família (que virou Auxílio Brasil a partir de outubro de 2021) e 0,55% da segunda rodada do Auxílio Emergencial durante parte do ano.

2022 caracterizou o fim da pandemia (que virou endemia) e das quarentenas, mas as transferências às famílias continuaram subindo como proporção do PIB, devendo atingir 1,2% do PIB ao fim do ano. Esse total é todo do Auxílio Brasil (que absorveu o Bolsa-Família), com pagamento básico de R$ 400 até julho e de R$ 600 a partir de agosto.

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Segundo as estimativas do economista Bráulio Borges (IBRE-FGV e LCA), que calculou os números utilizados nesta coluna (mas a visão expressa aqui é inteiramente do colunista), as transferências às famílias devem subir para 1,37% do PIB em 2023, quando a pandemia provavelmente já estará inteiramente no passado.

Enquanto isso, os investimentos públicos federais (excluindo emendas parlamentares) caíram de um pico nas últimas duas décadas de 0,75% do PIB em 2010 para 0,26% e 0,22% do PIB, respectivamente, projetados para 2022 e 2023.

Segundo Borges, considerando-se o investimento líquido federal (que desconta a depreciação do estoque de capital), saiu-se de +0,33% do PIB em 2010 para -0,35% do PIB em 2021.

Os dados expostos nesta coluna parecem desenhar, simplificadamente, um país que "desistiu" de convergir para o padrão do mundo avançado. Assim, é uma nação que não tem como levar da pobreza para a classe média (padrão país fico) dezenas e centenas de milhões de pessoas - como fizeram e fazem a China e outros países asiáticos.

E, já que tudo vai ficar mais ou menos na mesma em termos de nível médio de renda, o que resta é distribuir cada vez mais recursos paliativos para as famílias pobres - que continuarão pobres em termos de emancipação produtiva, mas em situação um pouco menos lamentável.

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Evidentemente, os números dos programas de transferência às famílias e dos investimentos federais são emblemáticos, mas nem de longe explicam a opção nacional mencionada acima.

Há toda a Previdência privada e do funcionalismo público - com a qual o Brasil gasta muito mais como proporção do PIB que países de renda semelhante -, subsídios a grupos de pressão, altíssimos salários e benefícios no Judiciário e Legislativo etc.

Fora da seara quantitativa do gasto, estão a educação pública de má qualidade, o sistema tributário complexo e distorcido, a má qualidade do serviço público (com honrosas exceções) e por aí vai.

Ainda assim, o "leilão eleitoral" das transferências às famílias e também o de aumentos reais do salário mínimo (cujo efeito principal é aumentar transferências previdenciárias e de outros programas sociais) são sintomáticos de um país que parece ter se conformado com a condição de subdesenvolvimento.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

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Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 9/9/2021, sexta-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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