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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Tiros no futuro': no Rio, volta às aulas é a volta a um campo de guerra

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. Imagem: FG Trade/Getty Images

Colunista do UOL

09/02/2022 04h00

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A volta à escola, à medida que caminha a vacinação de adultos e crianças, ativou em casa a memória dos anos pré-pandemia. Não teve pai ou mãe que não passou perto de um ataque de nervos durante o confinamento, quando a cozinha de casa se transformou em ambiente de trabalho e sala de aula. No nosso caso, com uma criança que ameaçava abrir o berreiro toda vez que o sinal da aula online tocava.

Já não nos lembrávamos de como era mandar um filho para a escola e buscar no horário combinado.

O retorno restituiu em casa uma certa sensação de normalidade. E isso é um privilégio do tamanho do assombro em saber que, para 74% das escolas públicas no Rio de Janeiro, voltar à carteira escolar é voltar a uma zona de guerra, onde o "normal" é correr risco.

A grande maioria das unidades de ensino cariocas registrou ao menos um tiroteio em seu entorno em 2019, ano anterior à pandemia. Os dados foram levantados no estudo "Tiros no Futuro", do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), e visa mensurar o quanto custa a proibição do uso de drogas no país.

No campo educacional, essa política oficial é um estrago.

A guerra às drogas, afinal, é o que move os agentes de segurança pública a entrarem em territórios periféricos em horário comercial — e colocar em risco os alunos das 1.154 unidades da rede municipal de ensino fundamental, que ficaram em algum momento no meio da artilharia em 2019.

Trinta dessas escolas do 5º ano do primeiro ciclo do ensino fundamental testemunharam a guerra em 19 ocasiões. Mais de uma por mês, portanto. Nesses locais, a primeira lição que se aprende é diferenciar barulho de tiro e de rojão, como relataram os pais de uma criança em uma reportagem do jornal O Globo.

A cor da pele atravessa as estatísticas como bala: nas cinco unidades que registraram mais de 20 operações em seu entorno, 77% dos alunos eram negros.

Enquanto escrevo este texto, ouço ruídos irritantes de um cortador de grama e de um escapamento descalibrado na avenida mais próxima. Manter a concentração é difícil — paro um pouco, saio para dar uma volta, boto um protetor auricular no ouvido e retorno. Fico imaginando como sairia esse texto se precisasse me esconder embaixo da mesa para não ser alvejado pelos tiros de uma guerra travada a poucos metros de casa. O texto, no mínimo, chegaria retalhado. E se isso fosse uma constante?

Esse pesadelo é a realidade para milhares de alunos. Não sem impacto: nas escolas que vivenciaram seis ou mais operações policiais, o estudo mostrou que a redução no aprendizado esperado foi de aproximadamente 64% em língua portuguesa e quase total em matemática. A exposição frequente a tiroteios com a presença de agentes de segurança pode gerar um aumento de 2,09% na taxa de reprovação nessas escolas e de 46,4% na probabilidade de ao menos um de seus alunos abandonar a sala de aula.

Para quem ainda não se dá conta do desastre, a socióloga Julita Lemgruber, ex-ouvidora da polícia fluminense e coordenadora do CESeC, costuma traduzir o prejuízo para a linguagem que o cidadão bem protegido mais entende: o bolso.

O impacto da perda do aprendizado, calculado a partir de uma comparação entre escolas que vivenciaram tiroteios e outras que passaram ilesas, representou uma perda financeira de R$ 24 mil na vida produtiva de um aluno do 5º ano em posição de vulnerabilidade. É o suficiente para comprar 337 botijões de gás ao longo da vida. Ou 48 cestas básicas. Ou 13 anos de passagens de ônibus. Ida e volta.

"Esse prejuízo afeta o futuro do indivíduo e a sociedade como um todo. E todos perdemos nessa guerra", afirmou a socióloga no estudo.

Histórias como a de Maria Eduarda, estudante de 13 anos assassinada com tiros de fuzil disparados pela polícia dentro de uma escola em Acari, na Zona Norte, em março de 2017, são a face visível da tragédia.

Essa tragédia tem início quando o lápis e a caneta são trocados pelas armas como símbolo do direito básico de cidadania. Estranho é que alguém se espante quando o futuro do país manda a fatura com uma folha em branco cravejada de balas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL