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Brasil

Temas variados são marca do Enem, criticado por suposto viés de esquerda

Bolsonaro acusou prova de não 'medir conhecimento'; pesquisa mostra que diversidade esteve presente no exame na última década
Mais de quatro milhões de candidatos fizeram as provas de Ciências Humanas, Linguagens e redação no último domingo; exame foi questionado por suposto viés à esquerda Foto: Edilson Dantas
Mais de quatro milhões de candidatos fizeram as provas de Ciências Humanas, Linguagens e redação no último domingo; exame foi questionado por suposto viés à esquerda Foto: Edilson Dantas

RIO — Um dia após a primeira etapa do Enem 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) fez coro às críticas presentes nas redes sociais que apontam uma predominância ideológica da esquerda na prova. Os julgamentos não são novos, mas também não são unânimes. Especialistas e levantamento feito pelo GLOBO indicam que o exame dá destaque para questões minoritárias, mas também traz autores e temas de diferentes ideologias. Para Bolsonaro, em seu governo, a prova focará apenas em temáticas “de interesse de todos”.

— Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no futuro a garotada se interesse mais por esse assunto. Temos que fazer com que o Enem cobre conhecimentos úteis. Não tratar questões menores — declarou ontem em entrevista ao “Brasil Urgente”, da Band.

Bolsonaro mencionou a questão que abordou o pajubá, descrito como “dialeto secreto” de gays e travestis. A pergunta traz um texto de quatro parágrafos descrevendo o dialeto e uma pergunta sobre linguística que, para responder, não era necessário compreender nenhum termo desse universo.

— A prova conseguiu ligar duas questões importantes: uma interpretação complexa e assuntos pertinentes do nosso cotidiano. Do ponto de vista educacional, isto é pertinente. Falar de minorias não é falar de quantitativo. É falar de grupos, que podem até ser maiorias quantitativas, mas são tratados como inferiores — analisa Gabriella Jardim, professora de Linguagens do colégio Pensi.

O hino do Brasil, memes do Facebook e artigos acadêmicos sobre o empoderamento negro também foram utilizados na prova. A aluna Sônia Antunes, de 17 anos, prestou o exame e diz acreditar que a posição política da prova era “desnecessária”:

— Você não era obrigado a saber sobre o dialeto gay para resolver aquela questão, poderia ser um texto de uma tribo tupi que teria o mesmo resultado. Mas o fato de colocarem exatamente um texto desse é querer forçar uma pauta política em uma prova nacional que mexe com a ansiedade de milhões de estudantes. Achei imprudente.

Já o estudante Rodrigo Simões, também de 17 anos, discorda. Ele afirma que a questão era só mais uma em meio a outras.

— Se as pessoas estão se incomodando com essa questão, deve ser por um problema individual. A prova era de 90 perguntas, teve deficiente, preconceito linguístico, negros, mulheres e até celíacos (pessoas com reação imunológica ao glúten). Eu não precisava ser celíaco para responder à pergunta. Precisava só entender o texto, como a maioria das outras (perguntas da prova de Linguagens) — analisa.

PLURALIDADE DE AUTORES

Uma das críticas feitas ao exame nas redes sociais se referia a um “viés esquerdista” da prova. Uma série de questões traz autores com esse perfil, mas eles não são hegemônicos.

— Como citar Santo Agostinho, Rousseau, Kelsen, Sun Tzu, Epicuro, Hobbes, São Tomás de Aquino e até o Leonardo Padura, crítico ao regime cubano, pode ser visto como uma prova de esquerda? É tentar, sob o pretexto de combater uma ideologia, silenciar sobre a pluralidade e diversidade da prova — avalia Marcus Dezemone, professor de História da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Um levantamento feito pelo GLOBO aponta que, nas últimas dez edições, foram utilizados 284 autores na prova de Ciências Humanas. Nomes como Karl Marx e Adam Smith aparecem uma só vez. O autor mais citado da prova é o geógrafo Milton Santos, especialista em urbanização no Terceiro Mundo e ganhador do Vautrin Lud (o “Nobel” da Geografia). Na sequência, aparecem nomes conhecidos do mundo acadêmico, mas sem repercussões nos calorosos debates ideológicos polarizados.

Para Dezemone, um erro que acontece na análise da prova está na compreensão da pauta dos direitos humanos como de esquerda.

—É preciso acabar com a falsa ideia de que direitos humanos é uma pauta exclusiva das esquerdas. Os direitos humanos percorrem toda a prova em temáticas sobre negros, mulheres e outros grupos. Mas isso não é defesa de um único grupo.