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Tema da redação do Enem, falta de registro civil atinge ao menos 3 milhões

Problema é frequente entre população mais pobre e atrapalha acesso ao auxílio emergencial e outros programas sociais
Alunos no primeiro dia do Enem no colégio Mackenzie, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Alunos no primeiro dia do Enem no colégio Mackenzie, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO - O tema da redação do Enem 2021 trouxe à tona um problema antigo no país: a população sem registro civil. Apesar de ter diminuído desde o início do século, o número de pessoas invisíveis ao Estado ainda é alto: cerca de 3 milhões, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, dado mais recente sobre o problema — contingente semelhante à população do Uruguai.

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Segundo especialistas, o problema aumentou na pandemia da Covid-19, pois unidades que poderiam fazer o registro de crianças em maternidades ficaram fechadas. Estudiosos lembram também que a falta de dados mais atualizados dificulta o acompanhamento de políticas públicas desenhadas para tentar diminuir esse problema.

A invisibilidade afeta principalmente a população em situação de vulnerabilidade social, em especial negros e mulheres. São pessoas que muitas vezes desconhecem a importância do registro civil ou não possuem condições de se deslocar ao cartório, que, em alguns casos, fica em outro município. Isso explica o fato de cidades como Amajari (RR) e Alto Alegre (RR), onde duas crianças ianomâmis foram mortas depois de serem puxadas por uma draga de um garimpo ilegal em outubro, possuírem apenas quase metade da população de até 10 anos registrada, segundo o Censo de 2010.

De acordo com estudiosos do problema, há ainda pessoas que até fizeram os registros mas não possuem mais o documento, perdido em enchentes, incêndios ou mesmo deixado para trás.

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— Há um problema de deslocamento nas cidades mais distantes, onde os equipamentos públicos não chegam. Por isso, as ocorrências mais elevadas de sub-registro são nas cidades mais distantes — disse Jefferson Mariano, analista socioeconômico do IBGE e doutor em desenvolvimento econômico.

Entre os estados, São Paulo aparece com o maior número de pessoas sem registro: são cerca de 869 mil, seguido por Ceará, com 273 mil, e Paraná, com 234 mil.

Auxílio emergencial

Fátima Saraiva, defensora no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio, diz que a gravidade do problema ficou mais evidente na pandemia, quando o governo exigiu documentos para garantir acesso ao auxílio emergencial.

Além de impedir o acesso a programas sociais, como o Bolsa Família, a ausência de registro civil também traz prejuízos na área da saúde, uma vez que o acesso a medicamentos de tarja preta exige documentação.

Fátima lembra que o fechamento das Unidades Interligadas, um braço do cartório dentro de maternidades, pode ter levado ao aumento de casos de pessoas sem registro na pandemia. Os postos são um dos principais mecanismos para combater a subnotificação, pois oferecem a possibilidade de se registrar a criança no local do nascimento.

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Em maio do ano passado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos criou um programa justamente para ajudar na implantação dessas unidades pelo país. Com um orçamento de R$ 119 mil para o ano que vem, a pasta planeja distribuir um computador e uma impressora para postos de 16 cidades que estão em regiões com taxas baixas de registro. O ministério reconhece que é pouco, tendo em vista o tamanho da população invisível, mas argumenta que a política depende da negociação entre as prefeituras e os cartórios, que muitas vezes não chegam a um acordo.

Além das Unidades Interligadas, Fátima diz que é preciso tomar mais medidas:

— Poderíamos ter políticas públicas voltadas para interligar os cadastros dos registros em cada estado, que hoje funcionam de maneira separada. Falta também um documento único nacional e a digitalização da declaração de nascidos vivos e a declaração de óbito, que ainda hoje só estão disponíveis em papel.

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Uma ação no Supremo Tribunal Federal que prevê limitar os poderes dos defensores públicos pode ter impacto negativo na redução da população sem registro no Brasil, segundo Fátima. A ação, proposta pela Procuradoria-Geral da República, quer impedir defensores de fazer a requisição de documentos pelos cidadãos, prática considerada necessária pelo órgão, tendo em vista que se trata de uma população vulnerável.