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Opinião

Também morre quem estuda

Um em cada cinco alunos tiveram seu aprendizado prejudicado no Rio de Janeiro devido a atuação do crime organizado

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Por Rafael Parente

Segunda-feira, 21 de agosto, Rio de Janeiro. Tiroteios e operações das forças especiais em comunidades deixaram 27 mil crianças sem aula. Na sexta-feira anterior, os confrontos já haviam deixado mais de 19 mil estudantes fora da escola – ao todo, 55 unidades de ensino da prefeitura fecharam as portas por causa de confrontos, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Educação divulgados em reportagens do O Globo e do Bom Dia Brasil.

Outros números já haviam chamado a atenção antes: os 100 primeiros dias letivos de 2017 não foram comemorados nas escolas do Rio de Janeiro. Isto porque, destes, 93 foram interrompidos por conta da violência em pelo menos uma escola, de acordo também com a Secretaria Municipal de Educação. Ao todo, 25% da rede municipal, cerca de 380 escolas, ficaram sem aula, em algum dia do ano, devido a tiroteios que ocorreram em suas proximidades. Isso significa que 129 mil crianças foram afetadas por um cenário aterrorizante.

Em outras palavras, um em cada cinco alunos tiveram seu aprendizado prejudicado pelo desgoverno no combate ao crime organizado. Nessa realidade, centenas de milhares de estudantes, professores e gestores de escolas precisam lutar diariamente para vencer o medo da possibilidade de não voltar pra casa, colocando a educação como prioridade.

Quase um mês depois da revelação dessas estatísticas preocupantes, dados oficiais do ISP (Instituto de Segurança Pública), da SSP RJ, revelaram que o número de mortes violentas no primeiro semestre deste ano (3.457) cresceu 15% em relação ao mesmo período de 2016. Foi o pior primeiro semestre desde 2009. A região onde essas mortes mais aumentaram foi a Baixada Fluminense (23%), com 3,7 milhões de habitantes. Em seguida, vem a capital, com 21%.

A rotina da violência acrescenta novos desafios ao rol de dificuldades do ensino público. Crianças, jovens e profissionais, que já encaram um cenário de políticas públicas falidas, esforçam-se para ensinar e aprender em um ambiente que não garante segurança. A ciência comprova que a capacidade de atenção e de concentração de uma criança é comprometida em situações de conflito. Quem conseguiria aprender em um lugar onde não se sente seguro?

Navegando no mesmo barco, que naufraga, estão os professores, que precisam desenvolver competências e habilidades que não são ensinadas nas universidades. O caso do professor Roberto Ferreira, do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) Roberto Moreno, emocionou o Brasil quando ele apareceu em um vídeo que viralizou porque ele tocava e cantava para seus alunos durante um tiroteio na comunidade de Três Pontes, em Paciência.

O professor não quis ser chamado de herói. Ele, como todos os outros docentes, precisa de boas condições para exercer o seu trabalho; quer um ambiente digno para que as crianças possam estudar e crescer como cidadãos. Ao contrário disso, são obrigados a exercer seu ofício sem acompanhamento psicológico e sem adicionais pela insegurança e insalubridade em seus ambientes de trabalho. O resultado disso é um número crescente de profissionais com problemas de saúde e decidindo abandonar a profissão, que deveria ser a mais valorizada de todas.

As crianças, por sua vez, precisam de uma educação de qualidade, que inclua a garantia de segurança num momento decisivo de construção do seu futuro. O estudo “Educação em alvo: os efeitos da violência armada nas salas de aula”, realizado pela Fundação Getúlio Vargas, aponta que as crianças que mais sofrem com a exposição à violência são as que estão na primeira infância, de zero a 6 anos. Várias desenvolvem bloqueios cognitivos por conta da frequente exposição a situações de conflito.

Em uma época na qual estamos discutindo a importância do ensino das competências socioemocionais em sala de aula, como colocar esse desafio em prática, se vivemos aterrorizados com o que acontece em nossa comunidade? A ciência e as melhores práticas internacionais nos oferecem algumas respostas. As políticas públicas educacionais têm de ser integradas com as políticas de outras pastas, como segurança, saúde e assistência social. Políticas de segurança falidas precisam ser substituídas. Os professores e diretores têm de ser bem formados e amparados enquanto encaram essa realidade cruel. A sociedade carioca tem de se mobilizar para criar nas escolas uma bolha de proteção para os alunos e profissionais.

Em uma de suas músicas mais famosas, a banda carioca O Rappa diz que “também morre quem atira”. Mas esta não é a única lei que impera em uma cidade partida e sofrida, que deveria ser maravilhosa para todos. Por aqui, também morre quem estuda e quem ensina. Levam, consigo, possibilidades e esperanças que carregavam em seus futuros, subitamente interrompidos.

Rafael Parente é PhD em Educação pela NYU e CEO da Aondê/Conecturma.

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