Saúde Coronavírus

Suspensão de aulas devido ao novo coronavírus coloca a alfabetização de uma geração em risco

Embora municípios e estados estejam fornecendo materiais impressos, exercícios por meios virtuais, entre outras iniciativas,  educadores apontam que a complexidade da etapa requer a mediação de um professor para ser concluída com sucesso
Todos os estados do país estão com aulas suspensas Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Todos os estados do país estão com aulas suspensas Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

BRASÍLIA- Em um envelope de plástico Fernanda Mendes, de 7 anos, guarda as atividades enviadas pela escola durante o período de suspensão das aulas  devido à pandemia do novo coronavírus. No segundo ano do ensino fundamental, ela estava aprendendo a ler e a escrever antes da interrupção das atividades presenciais, mas agora mal consegue fazer os trabalhos escolares em casa. Sua mãe, Maria da Graça Mendes, de 31 anos, é analfabeta e a família tem como única fonte de renda o Bolsa Família.

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— Como vou ensinar para eles se não sei? Eu não estudei, não consigo ajudá-los no dever. A escola faz muita falta, minha sobrinha mais velha tenta ajudar, mas não é a mesma coisa — disse ao GLOBO Maria da Graça Mendes, que tem mais quatro filhos e vive em um cômodo no Morro dos Macacos, em Samambaia Norte, no Distrito Federal.

Fernanda é uma entre os 4.580.245 estudantes brasileiros que, segundo o Censo Escolar 2019, estão no ciclo de alfabetização das redes federais, estaduais e municipais, e podem sofrer o impacto da falta de aulas presenciais. Referências em estudos da área no país afirmam que o período será um "tempo perdido" para as crianças em ciclo de alfabetização e apontam que será necessário "começar do zero" quando as aulas presenciais retornarem.

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Embora municípios e estados estejam fornecendo materiais impressos, exercícios por meios virtuais, exibição de conteúdos pela TV aberta, entre outras iniciativas,  educadores apontam que a complexidade da etapa requer a mediação de um professor para ser concluída com sucesso e será a mais afetada pela pandemia. Desde a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017, a diretriz do Ministério da Educação (MEC) é que a alfabetização seja feita até o segundo ano do ensino fundamental, ou seja, até os sete anos.

— Na maioria das escolas as avaliações têm mostrado que as crianças estão chegando no terceiro ano sem estar alfabetizadas. Devido à pandemia, vamos ter um atraso de um semestre no mínimo, senão mais. Estamos vivendo uma situação de absoluta insegurança, não sabemos quando isso vai acabar, e, no caso da alfabetização, vai ser começar do zero — afirmou a pedagoga Magda Soares, maior especialista do país em alfabetização. — A essa altura estamos quase no meio do ano, as crianças já poderiam ter avançado bastante no processo de alfabetização, isso se perdeu. Isso para não falar do Poder Público, que mais atrapalha do que ajuda.

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O resultado da última Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), divulgado em 2017, mostrou que mais da metade dos estudantes brasileiros até o 3º ano — na época esse era o final do ciclo de alfabetização no país — apresentaram nível insuficiente de leitura e matemática. O cenário pode ser intensificado para a geração que passa pelo processo em meio à pandemia.

— Há um período inicial de adaptação da criança aos novos processos de aprendizagem de alfabetização que são diferentes da educação infantil, é um processo muito complexo, que depende fundamentalmente da interação da criança com o professor. O que significa aprender a ler e escrever? É aprender a representar o sons da fala em letras. Isso é impossível de ser feito sem orientação e interação de uma alfabetizadora bem formada. Os pais não têm a menor condição e nem obrigação de saber fazê-lo. Mesmo entre as crianças com acesso aos recursos tecnológicos, não sei de nenhum que substituta a intereção da professora com a criança para que ela dê esse passo fundamental — argumenta Magda.

Um parecer aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) no final de abril sugeriu que as redes de ensino orientassem as famílias durante a pandemia, ressaltando que a atuação dos pais não substitui  o papel da escola nessa etapa. O documento sugeriu elaboração de materiais impressos pelas escolas para enviar aos alunos, disponibilização de conteúdos on-line, aulas gravadas para televisão, sugestão para que os pais leiam para os filhos, orientação dos pais por meio de aplicativo de mensagens, entre outras. Mas a realidade socieconômica dos estudantes, muitas vezes, acaba impedindo esse processo.

Dificuldade de contato

Coordenadora pedagógica da escola Classe 831, em Samambaia Norte, Hérica Gomes relatou ao GLOBO que em uma de suas turmas de alfabetização, entre os 27 alunos, conseguiu contato telefônico com apenas dez. Desses últimos, uma minoria podia acessar conteúdos enviados on-line, como vídeos.

— A alfabetização é a base do processo, quando ela não é bem feita, a criança carrega impactos para o restante da vida, sobretudo no sistema que temos, que é um sistema de ciclos, onde não há um controle eficaz da criança que se alfabetizou ou não, a criança acaba perpetuando essa defasagem. Temos alunos de quinto ano que ainda não estão alfabetizados mesmo em uma realidade na qual estavam indo para a escola, imagine nesse momento — conta.

Um dos estudantes da escola de Hérica, Arthur Nunes de Oliveira, de 7 anos, ainda não havia recebido o material impresso para alfabetização devido à dificuldade de contato. Nenhum dos três números fornecidos pela família na matrícula funcionavam. A reportagem acompanhou pessoalmente a ida de duas professoras de Arthur até sua casa.

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O menino vive sob os cuidados da avó Lindaura Ferreira, de 58 anos, que é analfabeta, e do pai Isaias Ferreira, que sabe ler e escrever, mas não consegue auxiliar o filho nas atividades escolares. Na casa que tem o chão de terra e pouca ventilação, a família sobrevive com o salário mínimo de Isaias e o Bolsa Família, já que Lindaura não conseguiu acesso ao auxílio emergêncial oferecido pelo governo.

— Ele reclama que quer ir para aula, tentamos ajudá-lo, mas não é a mesma coisa da escola. Acho que os professores ganham pouco para o trabalho que é ensinar — diz a avó.

Vínculo escolar

Diante do desafio, a pedagoga Francisca Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG, organização referência na área há 30 anos, destaca que é preciso focar em reduzir os danos e preservar o vínculo das crianças com a escola.

— O que eu vejo é que no caso do processo de alfabetização, vamos ter um período de readaptação das crianças na escola, ver que aprendizado elas conservaram, lidar com as dificuldades, fazer um trabalho de socialização junto aos colegas. Se tivéssemos, desde o início, a possibilidade de distribuição de livros de literatura, de jogos educativos, material para pintar, faria toda a diferença quando as crianças retornassem à escola — explica.

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O Censo Escolar mostra que 67,6% das matrículas nos anos iniciais do ensino fundamental estão sob responsabilidade dos municípios. Nesse sentido, são esses atores que, majoritariamente, executam as ações voltadas à alfabetização na ponta. Para o presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, Luiz Miguel Martins Garcia, articular ações voltadas à alfabetização durante a pandemia é a questão mais sensível no momento:

— Sem dúvida, esse é o maior nó que temos em termos metodológicos. Tanto na educação infantil como nos anos iniciais, orientamos que haja atividades que trabalhem para que os alunos não percam o que já conquistaram. Se a criança está num momento que começa a ter os primeiros contatos com letras, que as atividades encaminhadas, não importa se por meio digital ou impresso, possam trabalhar isso para tentar não ter a perda do aprendizado.

Ainda que os municípios sejam os entes executores, Garcia afirma que o papel do MEC é fundamental para apoiar as redes, já que boa parte delas não têm condições técnicas e financeiras para lidar com o processo. O GLOBO questionou o MEC sobre o que o papel do Governo Federal para garantir a aprendizagem dos alunos de alfabetização nesse momento, o ministério afirmou que "disponibiliza, em ambiente virtual, uma série de vídeos com orientações e dicas simples e diretas para que os pais comecem o quanto antes a colocar em prática com seus filhos estratégias de alfabetização". De acordo com a pasta, no âmbito do programa “Tempo de Aprender”, o MEC disponibilizou, um curso on-line de formação continuada em práticas de alfabetização para professores e coordenadores, cujo número de inscrição chega a 187.702 pessoas.