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Uma deficiência plural

Surdos e educadores discutem como atender quem se comunica por Libras e oralizados

Glória Dorneles, Michelle de Figueiredo e Mariana da Silva concluem o ensino médio no CAp-Ines e prestaram Enem

Por Clarissa Pains

Não existe apenas um tipo de surdo. E isso é fundamental para entender que a educação para esse grupo inclui uma lista um tanto extensa de particularidades, alertam especialistas. Diferentemente de instalar rampas e elevadores para dar acesso a usuários de cadeira de rodas em escolas — uma iniciativa que é pontual —, para atender alunos surdos é preciso uma série de esforços contínuos: capacitar intérpretes e professores em Língua Brasileira de Sinais (Libras); legendar todo o material didático audiovisual, o que ajuda tanto quem se comunica por Libras quanto aqueles que ouvem com aparelho auditivo ou implante coclear; e preparar professores para que não falem de costas enquanto escrevem no quadro, impossibilitando a leitura labial. E esses exemplos nem chegam à metade do que é preciso.

ASSISTA AO VÍDEO 'DESAFIOS DA SURDEZ'

O assunto veio à tona na última semana, após a redação do Enem ter como tema os desafios para a educação de surdos. O que pegou de surpresa parte significativa dos candidatos do exame faz parte da rotina do coordenador do Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos (CAp-Ines), Fabrício Migon.

Uma das principais consequências geradas por tantos desafios, segundo ele, é que grande parte dos estudantes chega ao instituto com enorme disparidade entre idade e série.

— A vida escolar deles costuma ser marcada por falta de acesso à Libras e por preconceito — diz o educador. — Então, interrompem muitas vezes os estudos, repetem de ano e não se sentem confortáveis no ambiente escolar.

‘TORTURA’ NO APRENDIZADO

Três alunas do colégio exemplificam isso. Glória Dorneles, de 52 anos, Michelle de Figueiredo, de 35, e Mariana da Silva, de 20, estão no 3º ano do ensino médio. Passaram por um sem-número de escolas antes de chegarem ao Ines, e, durante esse período, acumularam experiências ruins.

— Meus professores insistiam em estimular minha oralidade, mas eu sempre me senti mais à vontade me comunicando por sinais — conta Michelle, que nasceu ouvinte, mas perdeu a audição aos 4 anos por conta de uma doença jamais diagnosticada. — Colocavam fones em mim, que geravam zumbidos nos meus ouvidos e em nada me ajudavam. Eu senti que, por um longo tempo na minha vida escolar, eu simplesmente não me desenvolvi.

O CAp-Ines é referência em estrutura de ensino para surdos, mas consegue atender atualmente cerca de 400 alunos — bem pouco comparado aos 9,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva, segundo o IBGE. Destes, o universo dos que utilizam Libras é pequeno: somente 700 mil, de acordo com os dados oficiais. Alguns não utilizam a língua, embora precisem: esses estão realmente isolados, em grande parte por desconhecimento da família.

No entanto, a maioria não utiliza porque, de fato, não precisa. São os oralizados que, em grande parte dos casos, só se tornaram surdos tempos depois de começar a falar, logo conseguem se comunicar pela fala e por leitura labial. E há, ainda, aqueles que têm implante coclear, dispositivo eletrônico capaz de “simular” a audição.

Isso contraria o senso comum, segundo o qual ensinar Libras nas escolas regulares basta para resolver o problema.

— A língua de sinais, para os alunos surdos que falam, leem lábios e usam (ou não) aparelho auditivo e implante coclear, não tem serventia alguma. É como se fosse chinês — destaca Paula Pfeifer, que é implantada desde 2013. — Aparelhos auditivos e implantes cocleares não curam a surdez e nem nos devolvem a perfeição da audição. Nos ajudam a ouvir, mas não como o ouvinte que está na sala de aula ouvindo e entendendo tudo.

Autora do livro “Crônicas da surdez”, Paula, hoje com 36 anos de idade, tem surdez severa desde os 16.

— Nós, implantados, precisamos de aro magnético [aro que pode ser instalado em pisos, por exemplo, e amplia a audição de quem usa aparelho], de legendas, de salas com tratamento acústico, de professores que falem de frente, e não escrevendo no quadro de costas — elenca Paula. — Em 2017, com toda a tecnologia disponível, chega a ser bizarro que se continue insistindo nessa associação exclusiva da surdez com Libras. Não faz o mínimo sentido. Mas a lei só fala em intérprete de Libras [dentro de instituições de ensino], o que causa prejuízos indescritíveis na nossa vida acadêmica.

Bernardo Lucas Piñon de Manfredi, de 20 anos, sabe bem desses prejuízos. “Nota mil” na redação do Enem do ano passado e aprovado em 1º lugar em História na UFRJ e em 2º lugar em Filosofia na PUC-Rio, ele não conseguiu cursar nenhuma das faculdades por falta de acessibilidade. Com surdez severa, ele se matriculou primeiro na PUC, onde havia intérprete de Libras. Mas Bernardo não domina a língua, e não conseguiu se adaptar às aulas porque não havia lá tradutor simultâneo de leitura labial. No início do segundo semestre, ele tentou a UFRJ, mas foi ainda pior: maior quantidade de disciplinas, sem qualquer profissional instrutor para ajudá-lo.

Este ano, Bernardo fez o Enem novamente, torcendo para que a vaga que conseguir venha com os recursos necessários para que ele possa estudar.

— O tema da redação, para ele, foi muito importante. Revigorou as esperanças — comenta a mãe de Bernardo, Carmen Terezinha Piñon.

ENSINO SUPERIOR ENGATINHA

Não existem dados oficiais sobre acesso de surdos ao ensino superior, nem sobre quantos chegam a cursar níveis de mestrado e doutorado. Mas, de acordo com uma compilação da surda Marianne Stumpf — que é, ela própria, doutora —, existem no Brasil 69 surdos mestres, 26 surdos doutores e duas mulheres pós-doutoras.

— Eu quero fazer um mestrado, e, embora haja ainda muito poucos em quem me inspirar, já temos um ganho porque até bem pouco tempo atrás não tinha ninguém — analisa o estudante de Pedagogia Augusto Machado, de 26 anos, que trabalha como educador surdo no Programa Educativo do CCBB, no Rio. — Só é uma pena que, quase sempre, os surdos fiquem limitados à pedagogia e ao ensino de Libras. E ainda é preciso muito esforço para ampliar as ferramentas para quem não ouve, seja usuário ou não de Libras.

Entenda as diferenças

Surdez leve ou moderada

Deficiente auditivo: Pode usar aparelhos auditivos comuns

Surdez severa ou profunda

Surdo sinalizado: Comunica-se pela Língua Brasileira de Sinais (Libras)

Surdo oralizado: Usa a língua portuguesa e faz leitura labial

Surdo implantado: Usa implante coclear, que recupera boa parte da audição

Bilíngue ou bimodal: Fala tanto português quanto Libras, em geral porque nasceu ouvinte

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