SP troca livros do MEC por material digital: 'Passam os slides e o aluno anota', diz secretário

Pela primeira vez, as escolas estaduais de São Paulo não mais receberão os livros didáticos do programa nacional gerido pelo Ministério da Educação (MEC), que compra obras para todo o País há décadas. O secretário da Educação paulista, Renato Feder, resolveu abrir mão de 10 milhões de exemplares para os alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) no ano que vem para usar apenas material digital. O ensino médio também deixará de ter livros impressos.

"A aula é uma grande TV, que passa os slides em Power Point, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai", disse Feder ao Estadão. Desde abril, a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem indicado aos professores que usem o diário de classe digital, onde estão aulas de todas as disciplinas, organizadas em cerca de 20 slides. O professor abre a aula em seu celular ou computador e projeta na TV da sala.

A decisão de agora, de trocar as obras do MEC pelo material digital, foi adiantada pelo jornal Folha de S.Paulo. "Não é um livro didático digital. É um material mais assertivo, com figuras, jogos, imagens 3D, exercícios. Ele pode clicar em links, abrir vídeos, navegar por um museu", continuou Feder.

Esse material, segundo ele, é produzido por uma equipe da Secretaria da Educação, com 100 professores, e alinhado ao currículo paulista. Segundo o secretário, a decisão de abandonar os livros didáticos impressos foi para não dar "dois comandos" para o professor e por questionamentos à qualidade das obras do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

"É para usar o livro ou o material digital da secretaria? O que cai na prova: o livro ou material digital? O professor ficava confuso", acrescenta o secretário.

De acordo com ele, o governo estadual também identificou que o material que seria distribuído pelo PNLD em 2024 estava "mais raso, mais superficial" e "tenta cobrir um currículo muito extenso de maneira superficial".

O PNLD existe - nem sempre com esse nome - há mais de 80 anos no País. Foi reestruturado no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) quando passou a estabelecer critérios rígidos de avaliação. Por meio do programa, o MEC compra livros didáticos para todas as escolas públicas do País, em um negócio que movimenta R$ 1 bilhão e 150 milhões de obras por ano.

As editoras precisam submeter seus livros a uma equipe de especialistas, que pode aprovar ou não as obras, conforme exigências dos editais. Erros conceituais, desatualização, preconceito são motivos de exclusão imediata.

Qualidade técnica de livros do MEC deve ser valorizada, diz especialista

"A qualidade técnica dos livros ofertados pelo PNLD tem de ser valorizada. Uma informação errada não passa, é uma grande responsabilidade ter um material que é lido por milhões", diz a diretora executiva do Instituto Reuna, Katia Smole. Em nota, o MEC informou que o PNLD é "uma relevante política do Ministério da Educação, com adesão atual de 95% das redes do Brasil". E que a permanência no programa "é voluntária, de acordo com a legislação, aderente a um dos princípios basilares do PNLD, que é o respeito à autonomia das redes e escolas".

Katia, que foi secretária da educação básica do MEC na gestão Michel Temer (2016-2018), pesquisa a introdução de livros digitais em vários países e diz que nenhum deles fez isso de forma abrupta e interrompendo o uso do material impresso.

Questionado sobre como São Paulo garantiria a qualidade do material criado pelo governo, Feder respondeu que há uma equipe de revisão na secretaria. Disse também que os próprios professores podem avaliar o material. Muitos dos livros do PNLD 2024, que foram recusados pelo Estado, são usados em escolas particulares de ponta da capital, como os das editoras Moderna, FTD e Saraiva. Eles serão enviados para as escolas públicas dos outros Estados também com uma versão digital interativa.

Por ter a maior rede de ensino do País, com cerca de 5 milhões de alunos, São Paulo representa 15% do PNLD. A decisão do secretário motivou críticas de especialistas, de editoras e de entidades de professores.

"Para toda a cadeia do livro, autores, gráficas, indústria do papel, corpo editorial é uma perda muito representativa", diz o presidente da Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros), Angelo Xavier. "E como o estudante vai estudar em casa, nem todos têm celulares, computadores, internet", completa.

Segundo Feder, as escolas podem imprimir o material para quem não tiver equipamentos em casa. Professores, porém, têm reclamado da falta de papel e impressoras de qualidade, o que o governo também promete investir no ano que vem.

O sindicato dos professores da rede estadual (Apeoesp) diz que Feder quer impor "pensamento único a professores e estudantes da rede estadual de ensino, contrariando, mais uma vez, a liberdade de cátedra e o princípio da liberdade de ensinar e aprender".

Depois de aprovados pelo MEC, são as escolas que escolhem os livros que pretendem usar entre os vários disponibilizados no catálogo. As redes de ensino também podem escolher um livro único de cada disciplina. Feder tomou essa decisão quando era secretário de educação no Paraná.

Unesco recomenda tecnologia apenas como complemento

Relatório do braço das Nações Unidas para a educação (Unesco), divulgado na semana passada, recomendou o uso da tecnologia como complementação a outras estratégias na sala de aula, e não como substituição. O documento cita pesquisas que indicam efeitos negativos na aprendizagem quando estudantes têm uso considerado intensivo de tecnologias na educação.

Um desses estudos analisou resultados de 79 países que participaram do Pisa, a avaliação internacional da OCDE. O resultado mostra que a melhora de desempenho ocorre até quando se usa moderadamente as tecnologias. Entre os estudantes que indicaram uso maior que "várias vezes na semana", os ganhos acadêmicos foram decrescentes, informa a Unesco.

Uma das razões apontadas é a distração causada por equipamentos eletrônicos, como no caso do celular, que tem sido proibido em 1/4 dos países analisados pela Unesco. Mas pesquisas também já mostraram que estudantes que lêem textos em papel podem ter desempenho melhor em testes de compreensão de leitura do que aqueles que o fazem em computadores. E que a leitura digital pode afetar a compreensão, a retenção e a reflexão. Feder deve comprar em agosto também obras literárias digitais para serem lidas nas escolas, nos computadores, pelos alunos.

Análises do Instituto Reúna sobre introdução de livros digitais nas escolas de países como Estônia, Coreia e Holanda, referências na educação mundial, mostram que ela foi feita de forma gradual, com a participação de professores e editoras. "As pesquisas mostram que há formas de melhorar a aprendizagem, combinando o digital e o impresso", diz Katia.

Segundo ela, os países investiram primeiro na formação digital dos professores para poder introduzir livros digitais e em avaliação criteriosa dos resultados. "É preciso um bom monitoramento. Se eu pegar um material, der aulas, fizer a prova, é obvio que tem chance dos alunos irem bem, mas e os processos metacognitivos?" questiona.

"Há muito tempo já se superou a ideia de educação como treinamento. Os fundamentos são importantes, mas não bastam para formar um cidadão do século 21?, acrescenta Katia.

A Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale), que reúne alguns dos principais autores do País, divulgou nota criticando a decisão de São Paulo. "A tecnologia na educação é inegavelmente indispensável nos dias de hoje, mas na dosagem adequada", diz. Citando o relatório da Unesco, a entidade completa que a medida "causa surpresa por ter sido tomada em um momento em que a comunidade internacional aponta para decisão contrária".