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Sonho roubado

O valor recém-liberado para as universidades é pequena parte dos 2,4 bilhões de reais bloqueados no MEC

Penúria. O bloqueio de verbas do primeiro semestre já inviabiliza o fim do ano nas universidades. Os recursos para infraestrutura escolar despencaram 97% - Imagem: Viktor Braga/UFC e Eliton Santos/Semed/Prefeitura de Manaus
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Nós oferecemos complementação do ensino das disciplinas e orientação pedagógica para que nenhum jovem perca as oportunidades que ainda possui para acesso e permanência na universidade”, explica Amanda Almeida, coordenadora do pré-vestibular social Gente Formando Gente, que atende dezenas de estudantes na comunidade do Caramujo, localizada no município fluminense de Niterói. Amanda é uma guerreira na batalha contra o fim da educação no Brasil. Aos 29 anos, diplomada em Letras e especializada em Gestão Escolar pela Uerj, ela atua na interseção entre o término da formação secundária e a entrada na universidade, e convive com o drama dos estudantes de baixa renda que veem a cada dia se desmanchar o sonho de emancipação.

Graças à obra de um governo que nos últimos quatro anos depauperou sem dó ou distinção a educação básica, os ensinos secundário e profissionalizante e as universidades e institutos federais, o Brasil hoje virou as costas para milhões de crianças e jovens que tentam exercer o simples direito de estudar e almejar uma profissão no futuro. A falta de material escolar e o déficit de professores, as escolas caindo aos pedaços e as universidades sem verbas nem sequer para pagar a limpeza e a conta de luz encaminham o Brasil para se transformar em um país de ignorantes à imagem e semelhança de Jair Bolsonaro.

Diante da péssima repercussão em plena campanha eleitoral, o governo foi obrigado a recuar e reverter parcialmente a nova garfada anunciada no último dia útil antes do primeiro turno das eleições. A “revisão de empenhos” anunciada pelo ministro da Educação, Victor Godoy, tira da linha de corte 475 milhões de reais das universidades e institutos federais, mas é parte pequena do total de 2,4 bilhões de reais bloqueados. Detalhe: o Ministério da Economia, possivelmente temeroso do impacto junto aos eleitores, deixou de especificar no dia seguinte ao anúncio do bloqueio, como de praxe, de onde serão cortados os 2 bilhões restantes. Fará isso somente em novembro, após o segundo turno. “Esse movimento está sendo feito mantendo a responsabilidade fiscal, que é um pilar do nosso governo”, disse Godoy.

Os recursos contingenciados em 2022 superam os 3 bilhões de reais, segundo auditoria do Senado

Segundo um levantamento feito pela Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão subordinado ao Senado, os bloqueios de recursos da Educação em 2022 superam os 3 bilhões de reais. Isso sem falar que a dotação orçamentária para o MEC, somente no item universidades e institutos federais, já acumula uma redução de cerca de 30% desde o início do governo Bolsonaro. A segunda pasta mais prejudicada é a Ciência e Tecnologia, que teve 1,8 bilhão de reais bloqueados este ano, corte feito também sobre um orçamento defasado. Diante disso, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes) afirmou em nota que o recuo do governo é insuficiente e pediu a “reversão integral” dos sucessivos cortes feitos entre maio e julho, que acumularam perdas de 7,2% no orçamento discricionário das universidades. “O recuo do governo é uma vitória, mas o bloqueio que ocorreu no primeiro semestre já inviabiliza o fim de ano na maioria das universidades federais”, diz Ricardo Fonseca, presidente da entidade e reitor da UFPR.

Para quem luta por levar adiante o sonho de estudar, a dilapidação provocada por Bolsonaro causa angústia: “Cara, eu já passei por muita coisa. Fiquei dias sem ter para onde ir, acampei para conseguir cumprir minhas horas de estágio”, conta Lucca Modzelefski, 24 anos, que é morador de Cabo Frio, na Região dos Lagos fluminense, e estudante de Geografia na UFRJ desde 2017. Como muitos universitários, Lucca foi atingido em cheio – e de forma simultânea – pela pandemia e pela política do governo para a educação: “Por um tempo eu consegui recursos para a permanência na universidade. Depois da pandemia, tive de voltar a morar em Cabo Frio. Quando as aulas presenciais retornaram, consegui uma bolsa de auxílio-transporte que usava para pagar o aluguel do alojamento universitário, até porque não havia como ficar indo e voltando do Rio todo dia. Consegui também uma bolsa de auxílio-alimentação, e essas ­duas coisas me sustentaram dentro da universidade. Com muita dificuldade”.

Aos poucos, as coisas foram piorando. “No meio deste ano, a bolsa de auxílio-transporte, que era emergencial, não foi renovada. O auxílio-alimentação, de 200 reais em espécie, passou a ser pago em tíquetes do bandejão. Mas aí, como eu já não tinha mais dinheiro para pagar o aluguel no alojamento, o tíquete não me valia de nada, pois eu não conseguia chegar nem perto do bandejão”, conta. A solução foi recorrer à proteção afetiva, que no Brasil muitas vezes cumpre o papel do Estado: “Fiquei um pouco na casa de amigos, um pouco na casa da minha madrinha”.

2023. Ao menos 12 milhões de alunos do 1º ao 5º ano podem ficar sem livros didáticos – Imagem: Cláudio Vieira/Prefeitura de S.José dos Campos

O Brasil hoje começa a roubar de seus cidadãos mais pobres o sonho da educação ainda na infância. Para o Orçamento de 2023, Bolsonaro propôs cortes acima de 90% nos recursos da Educação ­Básica, o que deve aprofundar o mergulho do ­País no analfabetismo iniciado com a pandemia. Segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica divulgado pelo Inep, 33,8% das crianças matriculadas no 2º ano ao fim do ano passado ainda não sabiam ler e escrever. Estes e outros efeitos nocivos da paralisação das aulas por tão longo período são e serão acentuados pelos cortes de recursos.

No ano que vem, no que depender do atual governo, eles atingirão, por exemplo, as rubricas Infraestrutura, responsável pela construção, ampliação e reforma de escolas (97%), Capacitação de Professores (95%) e Caminhos da Escola (95%). O orçamento dessa última, reduzido a 425 mil reais em 2023, será suficiente para comprar um único ônibus escolar, diante de uma demanda de milhares de veículos em todo o Brasil. Para completar, o bloqueio de 800 milhões de reais nos recursos do Programa Nacional do Livro Didático deverá fazer com que 12 milhões de alunos do 1º ao 5º ano na rede pública não recebam seus livros de Matemática, Português e outras disciplinas no início do próximo ano letivo, em março.

“Darcy Ribeiro dizia que a crise da educação no Brasil é um projeto”, cita Amanda Almeida, acrescentando que, desde a largada no ensino primário, “não há dúvidas de que os jovens oriundos da rede pública estão em maior desvantagem na disputa por uma vaga na universidade”. Ela defende políticas afirmativas, como as cotas sociais e raciais. “É extremamente injusto que jovens negros, pobres, favelados e que acessaram essa educação deficitária tenham as mesmas prerrogativas de ingresso à graduação que os demais”, diz. Além das cotas, Amanda destaca a importância de oportunidades como bolsas de estudo e programas de financiamento estudantil: “Elas facilitam a entrada dos jovens oriundos de pré-vestibulares comunitários e populares no ensino superior”.

“O ataque à educação é deliberado e acontece em todos os níveis”, lamenta o professor Marcelo Campello, da UFRJ

Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ, Marcelo Campello é professor do Colégio de Aplicação da universidade e atua em diferentes projetos, da educação básica à pós-graduação. Ele lamenta que as políticas para garantir a permanência de estudantes carentes no ensino superior venham sendo ameaçadas pelos sucessivos cortes de verbas e resume o clima entre estudantes e professores: “Nos últimos anos, percebo claramente uma espécie de desânimo coletivo, que foi acentuado no governo Bolsonaro. Não são apenas os estudantes que estão sofrendo por ansiedade em razão das dúvidas quanto ao futuro da universidade pública e da própria economia brasileira, mas também os profissionais da educação”.

Campello lembra que os professores da rede federal de ensino não receberam aumento algum nem reposição inflacionária durante todo o atual governo. “É um descaso jamais visto desde a redemocratização, um processo de precarização das condições de trabalho sem precedentes”, diz. Para os docentes e técnicos da rede federal de ensino, acrescenta, a gestão de Bolsonaro é marcada pela precarização: “O presidente manifesta uma forte repulsa aos professores, visto como doutrinadores e alvos da narrativa conservadora e privatista do bolsonarismo. O ataque à educação brasileira é deliberado e acontece em todos os níveis”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sonho roubado “

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