Por Fernanda Bastos, g1 DF


  • O Sol Nascente é, segundo o IBGE, a maior favela do Brasil. Em 2022, a prévia do Censo mostrou que a comunidade do Distrito Federal, que fica a 30 quilômetros da Praça dos Três Poderes, tem 32.081 domicílios. A Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 30.955.

  • Do total de 11.753 crianças de 0 a 6 anos que moram no Sol Nascente, 7.707 não frequentam nem escola nem creche. De acordo com a Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE-DF), a região tem duas creches e seis escolas públicas para crianças de 0 a 6 anos.

  • De acordo com a Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE-DF), a região tem duas creches e seis escolas públicas para crianças de 0 a 6 anos.

  • Os fatores de risco relacionados com a pobreza nos ambientes domésticos, escolares e de moradia das crianças podem afetar o desenvolvimento das suas competências cognitivas e socioemocionais na primeira infância, período do 0 aos 6 anos, segundo professora de Harvard.

Sala de aula em creche do Sol Nascente na hora do intervalo das crianças. — Foto: Fernanda Bastos/g1

O Sol Nascente é, segundo o IBGE, a maior favela do Brasil. Em 2022, a prévia do Censo mostrou que a comunidade do Distrito Federal, que fica a 30 quilômetros da Praça dos Três Poderes, tem 32.081 domicílios. A Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 30.955 domicílios.

Do total de 11.753 crianças de 0 a 6 anos que moram no Sol Nascente, 7.707 não frequentam nem escola nem creche. Ou seja, 65,6% da primeira infância da região não está incluida no sistema de educação.

Os dados são da última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), realizada em 2021 (veja gráfico abaixo).

Quantidade de crianças de 0 a 6 anos que frequentam e que não frequentam escolas e creches. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1

Heloisa, a filha de cinco anos de Ana Paula Mendes Pires, de 39 anos, é uma das crianças que não frequentam a escola. Moradora do Trecho 3 do Sol Nascente e mãe de três outras crianças, Ana Paula é dona de casa.

Mãe solo, ela conta que conseguiu uma vaga para a filha em um colégio público de Ceilândia. Mas, por causa da distância e da falta de transporte público até o local, não foi possível matriculá-la. No Sol Nascente, ela diz que é difícil conseguir vaga.

“Essa de 5 anos eu acho vaga para ela só lá no 68. Eu vou colocar ela. Porque aqui no 66, que é mais próximo, eu não consegui vaga. [...] Esse ano vou arrumar os papéis pra matricular ela. Vou ver se consigo encaixar ela em um transporte, porque pagar van particular é um absurdo”, diz Ana Paula.

Os filhos de 11 e de 7 anos de Ana Paula estão na escola, mas a mãe explica que quer matricular as duas crianças mais novas, de 1 e de 5 anos, para conseguir um trabalho, já que a renda da família vem de benefícios sociais. "Você vai no mercado tudo caro, tem conta para pagar, comida, remédio, roupa. Eu queria arrumar um serviço pra ter uma renda a mais”, diz.

Direito da criança

Mães de crianças e funcionários de creche do Sol Nascente contam como é o cotidiano. Edição de vídeo: Lucélia Fernandes.

Mães de crianças e funcionários de creche do Sol Nascente contam como é o cotidiano. Edição de vídeo: Lucélia Fernandes.

Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos, a creche não tem obrigatoriedade de matrícula, mas é um direito de toda criança.

“Não estamos falando de qualquer criança que não tenha condição de ir pra creche. Quando você olha, as mães do Sol Nascente não têm sequer condições de ficar com o filho e, ao mesmo tempo, ter subsistência. Elas precisam trabalhar, mas não tem com quem deixar [as crianças] A sobrevivência da família depende da mãe ter um espaço em que a criança esteja segura", diz a professora.

Catarina Almeida destaca que a discussão sobre falta de vagas não deveria existir, pois é obrigatória a partir dos 4 anos. A professora aponta que, se houver demanda, o Estado deve garantir a condição para os responsáveis colocarem a criança em uma instituição de educação infantil.

Segundo a pesquisa "Desenvolvimento infantil e parentalidades no Distrito Federal" de 2023, do Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (IPEDF), entre as crianças de 0 a 6 que não frequentam berçário/creche/escola, o principal motivo apontado pelos cuidadores/as foi não encontrar vaga em unidade escolar pública30,8% no DF e 38,9% nas regiões administrativas de renda média-baixa.

Longe das metas dos planos de educação

Arte explica a etapa da creche na educação infantil. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1

No último ano para adoção do Plano Nacional de Educação (PNE), desenvolvido pelo Ministério da Educação, a primeira meta – de universalizar a educação infantil na pré-escola para crianças de 4 a 5 anos e atender no mínimo 50% da demanda de creches para crianças de até 3 anos – está distante para o Sol Nascente, segundo Catarina.

“Junho de 2024 é o final da vigência do plano e temos 65,6% das crianças fora da creche. Estamos falando da capital do país. Ou olhamos da mesma forma para todas as regiões administrativas do DF, ou as mais pobres ficam cada vez mais prejudicadas. Quem é que tá fora? Qual o perfil desses estudantes, qual é a cor da pele?”, questiona a educadora.

No monitoramento da meta 1 do PNE, o DF aparece com 94,5% de crianças atendidas em 2022. No entanto, Catarina de Almeida Santos destaca que o número leva em conta tanto locais como o Lago Sul, de alto poder aquisitivo, como também regiões como o Sol Nascente, que não têm cobertura de direitos básicos fundamentais, sendo a educação um deles.

"Regiões mais periferizadas, mais pretas, são as regiões que ficam em maior déficit da educação de qualidade. Em déficit de todos os direitos, saúde, saneamento, educação. Políticos vão muito na hora de pedir voto, mas para atender direitos onde estão?”, diz Catarina.

LEIA TAMBÉM

Em relação ao Plano Distrital de Educação (PDE), a distância em relação ao Sol Nascente é ainda maior. Na meta 1, além de universalizar a educação infantil para crianças de 4 a 5 anos, a ideia é ampliar a oferta de creches públicas e conveniadas em, no mínimo, 60% da população – e ao menos 90% em período integral.

De acordo com a Secretaria de Educação do Distrito Federal, foi autorizado, em 2023, um investimento de R$ 499,2 milhões e foram empenhados R$ 369 milhões na educação infantil.

"Em uma realidade da educação infantil de um não acesso, não há boas soluções sem acesso. O Estado tem que garantir a infraestrutura naquela localidade, não só garantir construção de educação infantil, garantir transporte, iluminação. Fazer com que aquele local seja lugar adequado para viver, lugar habitável. Não há como apresentar boas soluções na Educação em um lugar que nem acesso tem", diz a professora da UnB Catarina de Almeida Santos.

Onde estão as unidades de ensino do Sol Nascente

Localização das creches e escolas públicas no Sol Nascente. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1

De acordo com a Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE-DF), o Sol Nascente tem duas creches e seis escolas públicas para crianças de 0 a 6 anos. No entanto, uma das escolas -- o Centro de Ensino Fundamental 28 (CEF 28) não tem nenhum aluno da primeira infância.

O g1 questionou a SEE-DF sobre o motivo da escola não ter crianças de 0 a 6 anos. Mas, até a última atualização desta reportagem, não obteve resposta.

As creches e as escolas do Sol Nascente recebem alunos que moram no local, mas também crianças de Ceilândia, que é a região mais próxima. No mapa acima, você vê onde estão localizadas as unidades de ensino e a quantidade de crianças na primeira infância em cada uma delas.

Como é feita a seleção para as creches e escolas no DF

A matrícula nas escolas do DF é realizada de forma online ou pela Central Única de Atendimento Telefônico (156). O responsável não indica a escola de preferência, já que a SEE-DF leva em conta o CEP para direcionar o estudante para uma vaga mais próxima.

Já para a creche, são cinco etapas que compreendem o processo de matrícula:

  1. Pré-inscrição: realizada pelo responsável por meio da Central Única de Atendimento Telefônico (156). Informar região administrativa e sub-região e critérios de prioridade de atendimento.
  2. Validação: entrega de documentos (certidão de nascimento, caderneta de saúde, entre outros) na Unidade Regional de Planejamento Educacional e Tecnologia Na Educação (Uniplat) na Coordenação Regional de Ensino (CRE) da região administrativa.
  3. Classificação: lista de crianças para vaga se dará em ordem decrescente de pontuação, obtida a partir dos critérios de prioridade de atendimento que envolvem renda familiar, mãe trabalhadora, família de baixa renda, medida protetiva, risco nutricional e mãe adolescente.
  4. Encaminhamento: SEE-DF gerentia o processo de preenchimento de vagas disponíveis para a educação infantil.
  5. Matrícula: responsável entrega documentos na unidade de ensino.

Em setembro de 2023, mudanças foram realizadas no processo de matrícula para creches. A inclusão do critério de renda familiar, que é o somatório da renda dos responsáveis, foi uma destas alterações.

Além disso, a Secretaria de Educação destaca que serão atribuídos pontos adicionais para famílias que se enquadram em situações de vulnerabilidade socioeconômica, como famílias monoparentais, beneficiárias de programas sociais.

A professora Catarina de Almeida Santos lembra que, mesmo que os novos critérios tentem corrigir distorções no sistema, o problema não será resolvido. Segundo a especialista, é preciso a ampliação das vagas em creches.

“Mudança dos critérios não vai fazer com que a gente resolva a questão, algumas crianças perdem as vagas. É uma escala de miséria de quem está na pior situação, mas não significa que outras mães e famílias não precisem. No Sol Nascente são quase 12 mil crianças de 0 a 6 anos, 34,4% frequentando [as creches] , 65,6% fora. A revisão dos critérios pode fazer com que algumas dessas 34% saiam e algumas das 65% entrem, mas, no final das contas, continuaremos tendo 65% fora”, diz.

A professora explica que a educação infantil não é para a escolarização, mas sim para estimular as bases do desenvolvimento como a socialização, a interação social, o acesso a arte e cultura. "Quando o Estado nega acesso à creche, nega direito ao desenvolvimento, ao cuidado, à alimentação adequada", afirma.

Escolaridade das mães do Sol Nascente

O Sol Nascente está entre as regiões administrativas do DF com menor proporção de mães com ensino superior completo, são 5,5%. Em relação ao número de mães que estão trabalhando, a proporção aumenta e chega aos 33,5%, mas é a menor do DF. Os dados são do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPE-DF).

Em média, as mães do Sol Nascente utilizam mais de 20h semanais com afazeres domésticos. Para a professora da UnB Catarina de Almeida Santos, existe um ciclo de negação de direitos em locais como o Sol Nascente.

“As crianças que estão fora, que estão nesse processo de exclusão, são filhos e filhas dessa população que não teve acesso à escola, a escolaridade das mães deve ser baixa. É um processo histórico de negação de direito”, diz a especialista em educação.

A professora ainda complementa que a negação de direitos é muito demarcada por questão de raça e gênero, além de destacar que o abandono parental no Brasil é enorme – por dia, são quase 500 registros feitos sem a identificação de paternidade da criança. "Tem várias mães solo tentando sobreviver", diz.

A importância da creche na primeira infância

Crianças na creche do CEPI Jandaia, no trecho 2 do Sol Nascente — Foto: Fernanda Bastos/g1

Os fatores de risco relacionados com a pobreza nos ambientes domésticos, escolares e de moradia das crianças podem afetar o desenvolvimento das suas competências cognitivas e socioemocionais na primeira infância, período do 0 aos 6 anos. É o que estuda a professora Dana Charles McCoy, da Escola de Pós-Graduação em Educação de Harvard.

“Durante os primeiros anos de vida, o cérebro das crianças cresce mais rapidamente do que em qualquer outro período de desenvolvimento. Este também é o momento em que o cérebro é mais sensível aos estímulos ambientais, tanto positivos quanto negativos”, diz Dana Charles McCoy.

Neste período, o cérebro desenvolve capacidades motoras, de linguagem, de cognição, socioemocionais, de saúde mental e de saúde física.

“A exposição a ambientes acolhedores, calorosos, estimulantes e receptivos no início da vida – incluindo creches e escolas de alta qualidade – pode apoiar o desenvolvimento saudável do cérebro, levando a melhores resultados ao longo da vida”, diz a professora Dana.

'Um leão por dia'

Hellen Louise Moreira de Paula Mota, diretora do Centro Comunitário da Criança, e Rita Silva Ramos, diretora pedagógica da CEPI Jandaia. — Foto: Fernanda Bastos/g1 DF

Em uma realidade da educação infantil de não acesso, para quebrar este ciclo de negação de direitos, professores, diretores pedagógicos, educadores "enfrentam um leão por dia" nas duas creches públicas do Sol Nascente: o Centro de Educação de Primeira Infância (Cepi) Jandaia e o Centro Comunitário da Criança III.

A expressão, usada para falar das dificuldades enfrentadas no cotidiano, é utilizada pela diretora do Centro Comunitário da Criança, Hellen Louise Moreira de Paula Mota, que completa que a cada dia, o "leão" vai se tornando cada vez mais dócil.

O nosso núcleo de atendimento é a criança, mas não tem como atender a criança sem acolher a família, e não tem como atender a família sem acolher a comunidade. Se ensina a criança, ela faz e coloca todo mundo em casa para fazer. Então, pela criança, a gente transforma o hoje. A criança não é o futuro é o presente. A criança é o agora”, diz Hellen Louise.

As duas creches atendem 280 crianças e recebem da Secretaria de Educação R$ 957,53 mensais, por criança. O recurso é usado para:

  • Compra de materiais didáticos, de higiene, vestuário
  • Pagamento de profissionais
  • Atendimento 10h por dia
  • 5 refeições

As duas unidades de ensino são equipamentos públicos geridos pela organização social Centro Comunitário da Criança, criada em 1986, a partir da união de mães da região. Uma delas, a Luzia, que assumiu a liderança da organização, é a mãe de Hellen Louise.

“A nossa diretoria e as pessoas que estão à frente da instituição são adultos que, quando crianças, foram formados pelo Centro Comunitário. Inclusive eu. É um sentimento de pertencimento”, afirma a diretora.

Assim como Hellen Louise, a diretora pedagógica do CEPI Jandaia, Rita Silva Ramos, que está na creche há 30 anos, destaca que o objetivo da unidade de ensino é desenvolver a aprendizagem na criança durante diversos momentos da rotina de ensino. Confira alguns dos projetos realizados nas duas creches do Sol Nascente:

🏙️ Cidade dos Sonhos: uma cidade mini sustentável (produzida com material reciclável) onde as crianças vivenciam toda a dinâmica de uma cidade real. Um lugar onde elas têm a oportunidade de vivenciar diversas profissões.

🎼 História da Música: cada turma estuda durante um ano um estilo ou gênero musical.

🍉 Alimentação: crianças têm o contato com a horta e alimentação da creche faz o aproveitamento integral dos alimentos.

📗 Viajando no mundo da leitura: projeto de incentivo à leitura

📎 Matrícula humanizada: no processo de matrícula, a creche busca, além da entrega da documentação, entender em qual contexto a criança vive. A diretora Rita Ramos explica que há questões de vulnerabilidade social, desemprego, mães solo, violência doméstica, mães na faculdade que são entendidas já no momento em que a criança entra na creche.

“Acolher a criança é um processo também de trazer segurança às famílias. Porque, afinal de contas, nós somos o primeiro espaço para além da casa que a criança chega. É preciso potencializar o outro, porque ele já tem em si essa essência. O que nós fazemos é oportunizar”, diz Rita.

Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University.

Leia mais notícias sobre a região no g1 DF.

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!