Sofremos uma tentativa de golpe e isso deve ser colocado para os estudantes, diz Renato Janine - PORVIR
Crédito: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Inovações em Educação

Sofremos uma tentativa de golpe e isso deve ser colocado para os estudantes, diz Renato Janine

Em entrevista ao Porvir, o ex-ministro da Educação fala sobre a importância de levar fatos políticos para o debate na escola

por Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira ilustração relógio 10 de janeiro de 2023

A tensão política que culminou no ataque do último domingo (8) a prédios públicos que abrigam os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em Brasília (DF) requer de educadores uma abordagem apoiada na ciência, na separação do que é fato e do que é opinião e nos valores éticos.

Esta é a proposta do ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, quando afirma que a tentativa de golpe deve, sim, ser assunto da escola. Em conversa com o Porvir, o professor de filosofia, cientista político, escritor e presidente da SPBC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) fez uma análise sobre o que simbolizam os atos cometidos por radicais e como combater (e falar sobre) esse tipo de comportamento desde cedo é importante.

Um dos caminhos, explica o professor, passa pelo debate aprofundado da Declaração dos Direitos Humanos, documento histórico da ONU (Organização das Nações Unidas). Elaborado por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948. Com esse material como base, seria possível estudar de maneira mais aprofundada o que foram a escravização e a ditadura militar, algo que segundo Renato Janine, não é feito da maneira adequada no país. “Toda essa tragédia pela qual o Brasil passou tem muito a ver com a omissão do país em lidar com um legado autoritário”, aponta.

Leia abaixo destaques da conversa com o Porvir

Porvir – Como professores devem tratar dos ataques em Brasília, e ao mesmo tempo não se sentirem acuados em fazê-lo?

Renato Janine Ribeiro – Essa questão é básica. O que você deve tratar na escola? Vejo três pontos. O primeiro, relacionado a conhecimentos científicos, que valem para as ciências, como física, química e biologia. Vale para a matemática, que é uma linguagem. Vale para as ciências humanas, como história e geografia. Você não pode ensinar que a Terra é plana ou confundir opinião com conhecimento. Um segundo ponto está relacionado ao conhecimento rigoroso, que não é ciência: ensino das línguas, como inglês, português, espanhol. Terceiro ponto: valores éticos, nos quais é preciso colocar certas questões que são consensuais. É um campo de batalha grande. 

Porvir – Poderia exemplificar?

Renato Janine Ribeiro – A base dos valores éticos em sociedade está nas declarações de direitos humanos, como a da ONU (Organizações das Nações Unidas), de 1948, e em outros documentos [que tratam da] igualdade das pessoas, dos direitos iguais, do direito de votar para o governo, do direito de se expressar dentro dos limites da lei. Nesse caso, em Brasília, ocorreu uma tentativa de Golpe de Estado. Um golpe “Tabajara” [gíria para falso] é um golpe: não é porque fracassou ou foi mal planejado que ele se torna brincadeira. 

Porvir – O que representou essa tentativa de golpe?

Renato Janine Ribeiro – Ela mostra que existe uma parte das pessoas que continua contra os valores das declarações de direitos humanos e contra a democracia. Por um lado, você tem de fazer valer a força da lei: os criminosos têm de ser punidos, os mandantes e financiadores têm de ser identificados e punidos. Por outro lado, é preciso superar esse clima de pessoas nutridas no ódio. Não é uma polarização, porque a polarização supõe que você tenha dois lados extremos. Não temos dois lados extremos: temos um lado extremista e outro lado que não é extremista. Polarização supõe, também, que o ódio esteja dos dois lados, e não está. Foi uma tentativa de golpe e isso é algo importante de ser colocado para os estudantes. 

Invasões às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro
Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil Invasões às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Porvir – Como inserir a educação em direitos humanos nas escolas? O que é importante fazer?

Renato Janine Ribeiro – Isso não é fácil, porque supõe que o próprio professor esteja comprometido com os direitos humanos. Sabemos que, devido à força da doutrinação direitista no Brasil, isso não é tão simples, mas questão é essa: estudem a Declaração dos Direitos Humanos, estudem as partes da Constituição dizem respeito aos direitos, como o artigo 3º sobre as metas do Brasil, o artigo 4º, sobre política internacional, o artigo 5º sobre direitos individuais o seguinte, sobre direitos sociais e todos os últimos capítulos. O que se quer para os indígenas, o que se quer para a cultura, para a saúde, para o meio ambiente. Isso tudo permite um conhecimento bastante bom do que são os valores da ética pública atual. 

Porvir – E em relação à formação desse profissional?

Renato Janine Ribeiro – O próprio professor tem que ser formado nessa direção; não pode ser um professor que apenas repete a ideologia em que ele foi nutrido. É preciso acabar com essa história de dizer que a esquerda é ideológica e a direita é pragmática. É preciso ensinar que existe uma direita democrática: há uma pessoa chamada Angela Merkel [ex-chanceler federal da Alemanha], uma governante democrática, comprometida com direitos humanos, e de direita. Há uma esquerda democrática, temos como exemplo o próprio presidente Lula. Mas existe gente que não é democrática. O Bolsonaro é uma negação da democracia, o Trump e toda essa patota, vamos dizer assim. 

Porvir – Como levar assuntos políticos para a escola? 

Renato Janine Ribeiro – É um ponto sério. Quando eu estudei história no ginásio, que hoje seria o fundamental e o ensino médio – e na época se chamava clássico –, nós nunca chegamos ao tempo presente na história do Brasil ou do mundo. As aulas paravam antes de Getúlio, para evitar assuntos que fossem “pegar pesado”. São Paulo era um estado muito antigetulista e não se chegava a falar da Revolução de 1930 ou de 1932, quanto mais nos anos mais recentes. Isso foi nos anos 1960.

Retrato de Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação
Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil Renato Janine Ribeiro foi ministro da Educação entre abril e setembro de 2015. Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil

Porvir – O que deve ser feito, em sua opinião?

Renato Janine Ribeiro – Se você chega, por exemplo, ao período da ditadura militar, é preciso criticar. Não vale dizer: “Era legal porque a gente não via crimes ou não sabia da corrupção que existia”. Você não pode dizer isso. É um ponto delicado. Toda essa tragédia pela qual o Brasil passou tem muito a ver com a omissão do país em lidar com um legado autoritário. Nós nunca fizemos um balanço decente sequer da escravização: nas escolas, trata-se quase como se fosse moderada. O Brasil foi o último país importante do mundo a acabar com a escravização, que já estava abolida em praticamente toda América Latina. Independência e abolição andam próximas, não necessariamente na mesma data. No Brasil não se tratou da escravização, não se tratou da tortura na ditadura militar. Isso tudo é mal estudado. 

Porvir – Qual o motivo dessa resistência?

Renato Janine Ribeiro – Há medo de tratar desses assuntos. Há escolas que demitem os professores, embora existam escolas façam uma doutrinação de direita. Recentemente, foram noticiados colégios no qual os alunos fizeram propaganda nazista. Esses alunos, dizem, de alguma forma foram punidos, mas são escolas que toleram isso. Outros colégios toleraram propaganda contra a [presidenta] Dilma Rousseff em sala de aula. Agora, se o professor falar de pobreza e miséria, mandam embora. Isso mostra uma partidarização à direita do sistema escolar que é grave, sobretudo nessas escolas de gente com mais dinheiro. 

Porvir – Existe uma receita contra isso? O medo de dizer as coisas como elas devem ser criou esse termo mediano, chamado polarização, que esconde um radicalismo. Há algo a ser feito?

Renato Janine Ribeiro – Tem, sim. Retomando o que disse no começo, é preciso ensinar aquilo que é inconteste. Você não pode dizer que a água ferve a 50 graus ou que o Brasil foi descoberto pelos marcianos. Quando chegamos à questão da ética, é preciso se basear na nas declarações de direitos, na igualdade de direitos, em todas essas conquistas dos últimos séculos e na Constituição. 

Porvir – O que diz a Constituição Brasileira a respeito?

Renato Janine Ribeiro – A Constituição diz, por exemplo, que uma das metas do Brasil é ter paz com os outros países, promover uma cultura da paz, erradicar a pobreza, etc. Entendo que essas metas, eticamente muito valiosas, devem ser preservadas. Agora, como você chega lá, é diferente. Posso dizer: “quero erradicar a pobreza com uma atuação mais forte do Estado” ou “quero erradicar a pobreza com uma atuação mais leve, deixando mais para iniciativa privada”. Um professor pode, se estiver bem-informado, expor as duas posições políticas e mostrar as qualidades e as limitações delas. Isso é difícil, porque requer uma formação muito boa e ao mesmo tempo de disposição para não fazer doutrinação. 

Palácio do Supremo Tribunal Federal é destruído, após tentativa de golpe
Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil Palácio do Supremo Tribunal Federal é destruído após tentativa de golpe. Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Porvir – Como aproximar as famílias das escolas, mesmo as famílias estando divididas nas questões políticas? 

Renato Janine Ribeiro – O que pode ser feito é o seguinte: o pai e a mãe terem noção da importância da educação e encorajar os filhos a aprender, a estudar. Esse é o ponto importante. Mas no Brasil isso é muito difícil, pois estamos em uma sociedade que valoriza a falta de público, valoriza a ignorância, valoriza a opinião em lugar da ciência. Mas é a luta que deve ser feita. Se o pai puder ajudar o filho a fazer a lição de casa, sem fazer por ele, encorajando, explicando as dificuldades, beleza. Se não puder, o fato de que ele encoraja o filho a ir atrás, a estudar, já é muito bom, mas para isso ele tem que se despir da posição de autoridade. 

Porvir – Quais são suas expectativas em relação ao novo Ministério da Educação?

Renato Janine Ribeiro – São grandes e, ao mesmo tempo, tenho um pouco de dificuldade em imaginar o que vai ser feito, porque o trabalho a ser conduzido é gigantesco. A destruição foi muito longe no Brasil. O ex-presidente Jair Bolsonaro disse que não tinha como meta começar construindo, mas destruindo. E nisso ele teve muito êxito, desarticulando muitas instâncias do governo, conseguiu fazer com que o MEC, durante toda a pandemia, ficasse calado, sem fazer coisa alguma – quando ao MEC caberia a coordenação das atividades. Pense, por exemplo, no ensino remoto emergencial. Os professores não sabiam como fazê-lo. 

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Porvir – Qual deveria ter sido o papel do MEC?

Renato Janine Ribeiro – Tinha que ter ensinado, tinha que ter sido feito pelo menos um tutorial, tinha que ter criado uma linha de financiamento para concessão mesmo, não digo nem para venda, mas para distribuir material tablet ou celular aos professores. Algo banal: numa aula presencial, é melhor o professor estar de pé andando pela sala do que ele ficar sentado à mesa dele. Numa aula remota emergencial, você deixa o celular parado e vai ficar andando? Não. E isso é o mínimo. Mas muita gente nunca teve essa experiência. Isso tinha de ser explicado, os materiais para professores e para os alunos de baixa renda nas escolas públicas tinham de ser disponibilizados. A banda larga tinha de ter sido difundida, sobretudo nas periferias e nos bairros pobres.

Porvir – Qual sua visão sobre o governo anterior?

Renato Janine Ribeiro – Houve um trabalho muito bem articulado de destruição do país no caso da educação, sem contar o número de mortes acima da média mundial devido à Covid: tivemos quase 500 mil mortes acima dessa média. Tudo isso foi muito bem-feito, não foi por ineficiência apenas. Foi um governo inepto, do mal, com intenções péssimas em relação à vida, ao povo, à sociedade. Recompor isso agora é um esforço mais do que dobrado. Como diz [Winston] Churchill [ex-primeiro-ministro do Reino Unido], ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’. Vamos ter de fazer muita coisa, mas felizmente há pessoas boas na equipe do governo, e no Ministério da Educação, muito qualificadas. 


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direitos humanos, educação democrática, políticas públicas

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