Deu nas manchetes dos jornais nesta semana: às vésperas do Enem, mais de 30 profissionais do instituto que elabora a prova pediram para deixar seus cargos.
Milhões de estudantes, depois de quase dois anos de pandemia, com escolas fechadas, traumas e perdas que ainda estamos longe de contabilizar, vão se sentar nas carteiras nos dias 21 e 28 de novembro e encarar mais uma incerteza, a de que aquele processo de seleção para as universidades vai realmente funcionar.
A situação é ainda mais cruel se lembrarmos quem são os candidatos deste ano. Eles estão com mais medo e mais despreparados do que é costume. Viram parte dos amigos desistir dos vestibulares —o Enem teve 3,1 milhões de inscritos, uma queda de 40% em relação a 2020. São sobreviventes de uma evasão escolar que deve ser recorde, chegando a 40% dos estudantes, desmotivados com as aulas remotas ou sem acesso a elas, e/ou que tiveram que trabalhar em razão da crise econômica. O mínimo que a garotada que conseguiu chegar ao Enem merece é entender o cenário sombrio.
Para que se compreenda o imbróglio, cabe lembrar, em primeiro lugar, que o exame, que seleciona candidatos para universidades públicas e privadas, é organizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), vinculado ao Ministério da Educação. Além do Enem, o órgão é responsável por provas para avaliar a educação pública e pelo levantamento de dados que servem de base para repasses de verbas.
A turbulência atual remonta ao início do governo Bolsonaro, desde sempre alçando a ministros da Educação nomes comprometidos com sua pauta ideológica —Milton Ribeiro, que hoje ocupa o cargo, é pastor. A indicação de bolsonaristas para a presidência e as diretorias do Inep deixou o órgão em polvorosa. A recente debandada de cargos de coordenação está relacionada a queixas de que o presidente atual, Danilo Dupas Ribeiro, comete assédio moral e promove um desmonte do instituto.
Em meio à turbulência, a preocupação mais urgente é com o Enem deste ano. O que se sabe é que a sua aplicação está menos comprometida, porque o processo para isso já foi organizado, ainda que incidentes possam ocorrer nos dias das provas e que a capacidade de os contornar esteja prejudicada pelo abandono dos postos-chave.
O ponto mais crítico é, no entanto, a correção, que envolve sistemas estatísticos complexos para balancear os resultados e pode ser comprometida pela saída dos profissionais. O Enem utiliza a TRI (Teoria de Resposta ao Item), que busca, a partir de métodos estatísticos, detectar, por exemplo, se os candidatos chutaram respostas, além de considerar o nível de acertos e de erros de todos em cada pergunta, a fim de averiguar se são "fáceis" ou "difíceis" e determinar sua pontuação. Estudantes que acertam o mesmo número de questões, portanto, podem ter notas diferentes.
A crise no Inep traz ainda a ameaça ao repasse de verbas para escolas públicas e a de que o Enem não se ajuste ao novo ensino médio. Caberia ao órgão repensar o exame para que se alinhe às mudanças que acontecem a partir de 2022 nas escolas, quando estudantes do ensino médio passarão a optar por itinerários formativos (matemática; linguagens; ciências da natureza; ciências humanas e sociais; formação técnica e profissional). Os alunos deverão aprender os conteúdos essenciais de todas as disciplinas, mas se dedicar mais a temas com os quais tenham afinidade. Aí entram as matérias eletivas para ampliar o aprendizado. Por exemplo: astronomia para o itinerário de matemática; cinema para linguagens; feminismo em ciências humanas.
As escolas também já terão de se ajustar à BNCC (Base Nacional Comum Curricular), documento com diretrizes pedagógicas elaborado entre 2015 e 2018, em conjunto pelo Ministério da Educação, governos estaduais, municipais e pela sociedade civil. A BNCC prevê que se desenvolvam nos alunos habilidades socioemocionais, como a de se comunicar e a de fazer análises. Os vestibulares, naturalmente, precisam se alinhar a essas mudanças. Não dá para investir em pensamento crítico e cobrar decoreba.
Diante disso, o Conselho Nacional de Educação votará uma proposta para que, a partir de 2024, o Enem esteja adaptado ao novo ensino médio e aplique, além de um teste geral, provas diferenciadas para os itinerários formativos, com ênfase maior nos temas ligados à área de escolha do aluno. Repensar o exame com esse grau de profundidade não seria simples em nenhum contexto. No Inep de hoje, soa improvável.
E isso tudo não deixa de ter sentido: as mudanças no Ensino Médio e na BNCC, vistas, por educadores, como estratégicas para resgatar o interesse dos estudantes e prepará-los para o futuro, são tidas como nefastas pelos bolsonaristas. E o problema é que, enquanto o Enem não muda, as escolas, ainda que implementem formalmente o novo ensino médio, podem ter de operar, na prática, à moda antiga. Estarão feito baratas tontas entre encampar as novidades e preparar o aluno para exames que as ignoram.
É difícil imaginar o fundo do poço quando o esforço do governo na educação se volta a aprovar o estudo domiciliar, para que crianças sejam educadas sem "más influências", e a disseminar o Escola Sem Partido, que prega um controle ideológico do ensino.
A elaboração do Enem, aliás, se dá sob clima de censura. Os bolsonaristas alocados no Inep ainda não conseguiram formalizar a comissão de revisão ideológica, planejada por eles, mas atuam desde sempre como censores informais. Sem pudor, Bolsonaro já falou que há questões proibidas, e ai de quem incluir no exame algo que o desagrade.
O vestibular da Unicamp, no domingo, tratou de temas como o movimento LGBTQIA+, fake news sobre cloroquina, o absurdo do terraplanismo e a ditadura. Isso tudo seria hoje impensável no Enem. Já este texto, que não passa pela censura bolsonarista, se encerra então com a seguinte pergunta, para o leitor escolher a alternativa correta.
O que o estudante precisa saber sobre a crise em torno do Enem?
a) Que há riscos para a correção da prova deste ano
b) Que a adaptação do exame ao novo ensino médio está ameaçada
c) Que o governo exerce uma censura ideológica nas provas
d) Que o culpado pelo caos é Jair Bolsonaro
e) Todas as alternativas anteriores
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