Sobral quer ter ensino 100% integral; veja como cidade pode inspirar outras redes pelo Brasil

Município no interior do Ceará é referência em políticas exitosas na área de alfabetização e agora traçou uma nova meta ousada

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Por Rafael Burgos

Ana Klyvia Ferreira, hoje com 15 anos, cursou do 6º ao 9º ano do ensino fundamental em uma escola de tempo integral em Sobral. “Foi tudo incrível. Numa época em que eu estava descobrindo muitas coisas sobre mim, estive na escola o tempo inteiro. E a sensação era de algo leve; nunca foi cansativo.”

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Hoje aluna do ensino profissionalizante em nível médio, Ana destaca que a modalidade integral foi fundamental em sua preparação. “Aqui os professores te ajudam na formação para o mercado de trabalho, além de desenvolverem a sua independência. Fazemos trabalhos acadêmicos, aprendemos a pesquisar, tudo isso apoiou muito o meu crescimento”, observa.

A estudante fez parte das primeiras turmas em horário estendido do município que se tornou referência em educação no Brasil: ocupa o primeiro lugar do País no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e tem a ambição de oferecer educação em tempo integral a todos os 35 mil alunos da rede.

Com um total de 85 escolas, Sobral quer universalizar, até o fim de 2024, a sua cobertura de ensino integral, atualmente em 30%. “No início do ano letivo de 2024, chegaremos a 62% de cobertura e, até o fim do ano, pretendemos deixar 100% pronto para que, no ano seguinte, o novo prefeito dê sequência ao projeto”, diz Herbert Lima, secretário de Educação do município.

Não é uma tarefa simples. Para o cumprimento da meta, será necessário o dobro de investimento por aluno em relação à modalidade tradicional, tendo em vista o alto custo com alimentação, contratação de professores, aquisição de material didático e infraestrutura física – incluindo a construção de salas em prédios já existentes e a inauguração de novas escolas.

Índice de evasão escolar em Sobral é inferior a 1%, mesmo com a pandemia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

“Isso só é possível com a cooperação das três esferas”, afirma Lima. “Serão recursos do município, juntamente ao financiamento do governo do Estado e do governo federal”, afirma o secretário.

Tudo começou em 2014, com a implementação do ensino de tempo integral em oito escolas das zonas rural e urbana. A princípio voltado para os anos finais do ensino fundamental, em 2022 o projeto se expandiu para todas as etapas, do infantil ao fundamental 2.

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“O processo no fundamental 2 está bastante consolidado. Atualmente, há 14 escolas que operam em tempo integral nesse período. Outras escolas, dos anos iniciais do fundamental, priorizavam estratégias de recomposição de aprendizagem, um esforço paralelo no contraturno. Assim, as turmas do 1º ao 5º ano já vivenciavam essa experiência de tempo integral, mas não com uma grade curricular – era uma estratégia”, explica Vilar Vasconcelos, professor na rede de Sobral e coordenador pedagógico do ensino fundamental 2.

Mas por que investir numa escola em tempo integral? Segundo o secretário Herbert Lima, “essa ampliação tem uma contribuição bastante significativa para o desenvolvimento cognitivo da criança – com permanência em dois turnos e currículos de base e diversificado – e também garante uma formação humana integral, porque prepara para a vida”.

Hoje, o Ministério da Educação é comandando por dois cearenses. O ministro é Camilo Santana, nascido no Crato e governador do Estado de 2015 a 2022. Izolda Cela, secretária-executiva do MEC, nasceu em Sobral. Foi secretária de Educação do município e é apontada como uma das responsáveis pelo sucesso educacional da cidade e do Ceará - também foi secretária estadual de Educação e governadora.

Aluno como protagonista

Em Sobral, a proposta pedagógica das escolas de tempo integral foi desenhada para fomentar o protagonismo dos estudantes. Para isso, os componentes curriculares foram divididos em três eixos: o obrigatório, que oferece as disciplinas básicas; o diversificado, com a oferta de educação artística, socioambiental, metodologia de pesquisa, entre outros; e os estudos orientados, que preparam o aluno para organizar sua rotina dentro e fora da classe.

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Tais conteúdos são mesclados sem uma concentração de aulas no período da manhã ou da tarde. “Priorizamos uma base diversificada, com componentes que buscam desenvolver o protagonismo (do aluno) e seu projeto de vida, além das competências socioemocionais”, diz Vilar Vasconcelos.

Nesse contexto, ganham destaque não somente o desenvolvimento pessoal, mas a cidadania – com foco em princípios como empatia e solidariedade e na reflexão crítica sobre os desafios socioambientais da cidade. Uma formação que, em última instância, busca aprimorar os indicadores sociais da comunidade, a partir de hábitos de higiene e vacinação, e fortalecer os valores democráticos.

A escola integral de Sobral concebe as competências socioemocionais de maneira transversal a todo o currículo escolar, o que se mostrou ainda mais importante no pós-pandemia. Dos alunos aos profissionais de educação, todos recebem a atenção de orientadores educacionais, voltados à escuta qualificada e ao diagnóstico do aluno.

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Essa orientação pauta, inclusive, a preparação de cada professor. “São as aulas chamadas de duplo foco, em que essa competência socioemocional é trabalhada em conjunto com a dimensão cognitiva do aluno. Ao apresentar um seminário, por exemplo, os estudantes precisam respeitar o tempo dos colegas e saber reagir adequadamente a eventuais erros”, explica Vasconcelos.

Professora da rede, Renata Araújo participou da implementação do projeto em 2014 e, desde então, se diz encantada com a perspectiva de tornar a rede 100% integral. “Depois que você é professora nesse modelo e começa a olhar o aluno para além do aprendizado das disciplinas tradicionais, você nunca mais é a mesma”, diz. “Quando o aluno não aprende uma competência, há muita coisa envolvida. É preciso ter a sensibilidade de observá-lo de forma mais cuidadosa, pensando no pessoal, no social e no emocional.”

Sucesso durante a pandemia

Com um índice de evasão escolar inferior a 1% mesmo em tempos de pandemia, a rede municipal foi bem-sucedida na implementação de aulas online, com estratégias como câmeras ligadas, uso do uniforme mesmo em casa e ambientes silenciosos. Em caso de dificuldade no acesso à tecnologia, os pais iam à escola buscar as atividades do mês.

Como resultado, a cidade permanece na liderança do Ideb e com estratégias voltadas à recuperação de aprendizagens, como avaliações diagnósticas e ampliação da jornada em contraturno. “O tempo integral fortalece mais ainda essa estratégia. Com alimentação, material estruturado e formação ampliada dos professores, as aprendizagens perdidas na pandemia são recuperadas com mais facilidade”, afirma o secretário de Educação.

Como é o modelo escola em tempo integral de Sobral

  • Permanência na escola. São cerca de 9 horas, sendo oito tempos de 50 minutos, dois intervalos de 20 minutos e 1h20min para almoço.
  • Componentes obrigatórios. Linguagens, Matemática, Ciências, História, Geografia, Educação Física, Artes e Formação Humana.
  • Componentes diversificados. Projeto de vida; protagonismo juvenil; metodologia de pesquisa; disciplinas eletivas.
  • Estudos orientados. Organização da rotina extraclasse dos alunos, com acompanhamento das atividades em cada dia da semana – do tempo gasto no celular ao período de sono, tudo é medido pela escola.
  • Sem divisão entre turnos matutino e vespertino. A base obrigatória e a base diversificada são alternadas entre os turnos para tornar a escola mais atrativa.
  • Custo por aluno. Cerca de 100% a mais do que uma escola de tempo regular.
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