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Sob o domínio do medo

O assassinato de cinco adolescentes no litoral do Rio expõe a brutalidade do cotidiano de quem vive nos territórios tomados pelas milícias

Por Fernando Molica
Atualizado em 1 jun 2018, 06h00 - Publicado em 1 jun 2018, 06h00

Às 5h55 da manhã de um domingo, o trabalhador autônomo Fábio Ferreira Vitipó, 47 anos, e sua mulher, a costureira Luciana Pacheco de Oliveira, 46, moradores de Maricá, no litoral do Rio de Janeiro, foram acordados por tiros vindos da direção de uma churrasqueira que fica a 50 metros do apartamento onde vivem, em um conjunto habitacional. Luciana correu para a janela, avistou os corpos ensanguentados de dois jovens no chão e murmurou: “Deus tenha misericórdia dessas mães”. Minutos depois, viria a saber que um dos mortos era seu filho Sávio, de 20 anos.

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A cena foi se revelando aos poucos. Quando o pai do rapaz desceu à calçada, percebeu que havia quatro corpos estendidos perto do de seu filho — todos abatidos por disparos à queima-­roupa naquela mesma manhã de 25 de março. Eram jovens comuns, reunidos ali por acaso, jogando conversa fora após uma noitada. Morreram porque uma milícia que quer ampliar seu domínio resolveu dar sinal de força, só para mostrar quem manda naquele naco fluminense. Passados mais de dois meses dos assassinatos, o suposto autor está preso e a investigação aproxima-se do fim. Morrer a troco de nada é a rotina nas franjas do Rio onde as quadrilhas impõem as regras.

Nascidos e criados na periferia conflagrada, os cinco engrossam uma estatística soturna que a ausência do poder público alimenta — a de jovens pobres e negros assassinados no Brasil. A nova edição do Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que, em 2016, quando a taxa de homicídios no Brasil chegou a 30 por 100 000 habitantes, no grupo com idade entre 15 e 29 anos ela cravou mais que o dobro. Entre jovens do sexo masculino, o índice alcançou o absurdo patamar de 122 homicídios para cada 100 000 pessoas. Setenta e um por cento são negros. “Esses são os chamados descartáveis, pessoas que muitas vezes morrem sem causar comoção”, diz o economista Daniel Cerqueira, do Ipea.

Primeiro a chegar ao local do crime, Vitipó, o pai de Sávio, reconheceu seu filho de longe, pela bermuda que lhe dera de presente. Sávio, o MC Soul, ia começar o ensino médio e gostava de compor — uma de suas letras fala em mudar o mundo. Na noite de sábado, Sávio abraçou o pai e foi assistir a um show do rapper Projota em praça pública. Estava acompanhado de seus melhores amigos, Marco Jonathan, 17 anos, e Mateus Bittencourt, 18. Marco trabalhava com um tio na instalação de pontos de TV por assinatura e, nas horas vagas, com o nome artístico de Do Quadrado ou Dançarino, participava de apresentações e concursos de dança. O dia havia sido difícil para ele: a namorada informara que iria embora levando o filho do casal, de 1 ano e 4 meses (sim, Marco era pai). Todos moravam no apartamento da mãe dele, July Silva, 34 anos. Antes de sair para o show, ele pediu: “Mãe, você jura que não vai deixar que ela se separe de mim?”. Também apaixonado por rap e hip-hop, Mateus, o DJ Mabi, começaria o 7º ano do ensino fundamental e morava com a avó, embora nos últimos tempos passasse a semana no Rio, trabalhando como ajudante de marceneiro.

Os três, que faziam parte de um movimento cultural organizado pela prefeitura, conheciam de vista Matheus Baraúna, 16 anos, e Patrick da Silva Diniz, de 18. Este Matheus — com h — também morava com a avó, que o criara depois da morte da mãe, quando ainda era bebê. Dos mortos, Patrick era o único que não morava no conjunto residencial. Vivia com a mãe ali perto e trabalhava como ajudante de obras. “Era uma criança grande, gostava de jogar futebol e bola de gude, de soltar pipa”, diz a irmã, Suellen. Nenhum dos cinco tinha passagem pela polícia.

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Ao voltarem do show, Sávio, Mateus e Marco pararam na churrasqueira construída para os moradores dos 184 blocos de dois andares que abrigam os 1 472 apartamentos de 45 metros quadrados do Residencial Carlos Marighella, inaugurado em 2015. Lá já estavam Matheus Baraúna e Patrick, que não tinham ido à apresentação do rapper. Dia claro, um Gol preto entrou na Rua Áustria, que dá acesso ao conjunto. O motorista parou o carro e caminhou até a churrasqueira — segundo policiais, um cúmplice no condomínio lhe avisou que os jovens estavam por lá. Vestindo camiseta regata e calça jeans, o homem pardo, altura mediana, rosto redondo, cabelos curtos e tatuagem em um dos braços exibiu uma pistola calibre .380 e ordenou que os cinco deitassem de bruços no chão.

O INEXPLICÁVEL - Ao lado da tia Maria Georgina, Michele visita o túmulo de Mateus, seu filho de 18 anos (Emiliano Capozoli/.)

Eles o conheciam — testemunhas garantem que se tratava de João Paulo Firmino, empregado de uma empresa de segurança que fazia bico vendendo cestas básicas no condomínio, comércio muito ativo em área de milícia. Surpresos, os rapazes obedeceram. Nenhum deles tentou fugir. O homem ainda gritou para que moradores saíssem das janelas. Pegou o celular e informou ao chefe que havia “mais três” no local. Ouviu as instruções e atirou. Matou os cinco com uma saraivada de tiros na cabeça. Não usou nenhum disfarce, pelo contrário — gritou “Aqui é a milícia”, em seguida “A bagunça acabou”, e foi embora sem ser incomodado pelos dois PMs aposentados que faziam a segurança de um posto de saúde e de uma escola ali perto. Dois outros seguranças tinham faltado ao serviço naquele dia.

Segundo as investigações, a chacina foi uma demonstração de poder e crueldade da milícia. Dez dias antes, no bairro de São José do Imbassaí, em Maricá, um homem chamado Paulo Gomes havia sido assassinado por traficantes de drogas que o acusavam de extorquir uma compradora que não pagara por cestas básicas adquiridas de milicianos. O delegado Gabriel Poiava, que apura o caso, explica que em favelas e áreas periféricas do Rio a venda de cestas básicas é uma variante da agiotagem tradicional: milicianos fornecem os produtos a preços abusivos a pessoas que não têm dinheiro para comprá-los no comércio regular. Eles dão um prazo para que as contas sejam acertadas. Quando o pagamento não é feito conforme o combinado, os clientes são ameaçados e intimidados — no conjunto Carlos Marighella, há relatos de devedores que tiveram janelas e portas quebradas. Patrick, um dos cinco mortos, frequentava São José do Imbassaí, nada além disso. Na lógica da milícia, porém, o simples ato de pisar em território inimigo era suficiente para ordenar um assassinato coletivo e espalhar o medo.

A delegada Bárbara Lomba, titular da Divisão de Homicídios de Niterói e São Gonçalo, não tem dúvida de que o assassino é Firmino. Preso quinze dias depois do crime, suspeito de trabalhar para a milícia chefiada por um PM e citado em outro inquérito de homicídio, Firmino negou qualquer participação. A polícia, na caça aos mandantes, tenta descobrir com quem ele falou por telefone minutos antes da chacina. No dia da prisão, houve operações de busca e apreensão nos endereços de dois policiais militares — um deles, o do sargento Wainer Teixeira Junior, sócio da empresa de segurança Equipe W, sediada em Maricá, e integrante do famigerado 7° Batalhão da PM, no qual 96 policiais — ele incluído — foram presos no ano passado sob a acusação de fazer acordos com traficantes de drogas. “Está muito claro que o motivo para este crime foi banal”, afirma a delegada.

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Matar e anunciar quem cometeu o crime são itens da cartilha dos chefões das milícias para alcançar controle absoluto do seu pedaço. Eles querem mostrar que são os próprios patrões e que não devem satisfação a ninguém. Vêm daí as execuções sumárias, o vandalismo, as janelas quebradas e o terrorismo contra quem deve dinheiro ou resiste ao monopólio no fornecimento de produtos e serviços nas favelas e bairros dominados: botijões de gás, galões de água, carvão, “gatonet”, cigarros contrabandeados, cestas básicas. Para circularem, vans e mototáxis têm de pagar taxas aos milicianos.

S.O.S. – Estação de trem no Rio: apelo da população contra o horror da milícia (Domingos Peixoto/Agência O Globo)

O delegado Vinicius George, que faz parte da assessoria do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu a CPI das Milícias, realizada há dez anos, diz que a repercussão dessa investigação e a consequente prisão de milicianos serviram para pôr a violência na sombra por um tempo. Ela seguiu brutal, mas mais discreta. Nos últimos tempos, a crueldade ostensiva voltou à tona. Um mês depois da chacina de Maricá, cinco pessoas foram fuziladas na saída de um baile funk em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Na semana passada, até tropas do Exército foram mobilizadas para tentar interromper uma guerra que envolvia traficantes e milicianos na Praça Seca, Zona Oeste do Rio. Em maio, moradores e comerciantes de subúrbios cariocas colocaram na Estação Piedade uma faixa contra milicianos — o protesto foi retirado em menos de 24 horas. A chocante execução da vereadora Marielle Franco — ao que parece, obra da milícia — pode se inserir neste contexto de barbárie.

O assassinato do jovem Sávio privou as moradoras da ajuda do rapaz, que sempre se oferecia para carregar sacolas de compras. Suellen, irmã de Patrick, cuida da mãe, que resolveu sair do condomínio depois do crime. A diarista Michele Bittencourt de Mendonça, 37 anos, mãe de Mateus, mostra no celular o clipe que contou com a participação do filho, um garoto que queria ser famoso. Ela, que vive em Magé, a 57 quilômetros de Maricá, enterrou o rapaz exatamente um ano depois de tatuar no peito o nome de seus dois meninos — o caçula, de 3 anos, não se conforma com a ausência do irmão, e aguarda sua volta.

A cozinheira aposentada Zilda Maria dos Santos, 73 anos, que criou o neto Matheus Baraúna, também deixou seu apartamento e foi para a casa de um filho, no Rio. Mas deve continuar visitando o conjunto, porque será bisavó: a namorada de Matheus, que tem 14 anos e mora lá, está grávida. Mãe de Marco, July só criou coragem para entrar no quarto do filho depois da prisão do suspeito. Ela se preocupa com o neto, que não para de chamar pelo pai. Quer agora divulgar as músicas compostas por Dançarino, arquivadas em um velho computador. Uma delas fala de violência e parece antecipar o destino do autor: “Seu caderno se tornou uma pistola / E tem gente que ainda acha isso da hora / Raciocina / Somos a base constituída / Da chacina por nós vivida”. É triste, é real e nada indica que vá mudar.

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Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585

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