Flávia Oliveira
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Flávia Oliveira

Jornalista

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Flávia Oliveira

Por Flávia Oliveira

Pode ter sido revival do trauma pela eliminação da seleção brasileira da Copa de 1982, quatro décadas neste julho — só quem viveu sabe. Talvez uma versão brasiliense da água batizada supostamente servida a um jogador canarinho no Mundial de 1990, na Itália. A proximidade das férias, digo recesso parlamentar, é outra hipótese. Ou a dopamina liberada pela senha do orçamento secreto. É certo que só alguma causa externa explica a pane que fez do Congresso Nacional, especialmente do Senado, o festival de bolas fora e gols contra a Constituição Federal, a legislação eleitoral, a responsabilidade fiscal, a política social. Beira o escárnio o que as excelências cometeram nos dez últimos dias. Sete a um é pouco.

Começou com a aprovação constrangedora, por acachapante, da PEC Kamikaze ou da Pedalada Eleitoral, como tão bem batizou o pesquisador João Marcelo Borges, na Casa presidida por Rodrigo Pacheco, há uma semana. Foram 72 votos a 1 em primeiro turno, 67 a 1 em segundo — coube a José Serra a solitária dissonância. Remetido à Câmara, o pacotaço que anaboliza com R$ 41,2 bilhões o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro também passou batido. Não bastasse, ontem, o Senado ratificou o aval dado pelos deputados à Medida Provisória em que o presidente da República autoriza a concessão de crédito consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil.

Para quem não está ligando o nome ao esculacho, consignado é aquela modalidade de empréstimo que o cliente não tem como deixar de pagar. As prestações saem diretamente dos rendimentos depositados em conta corrente, caso de salário, aposentadoria, pensão e, agora, transferência de renda para vulneráveis. Foi a ciranda que levou idosos desinformados ao superendividamento, a ponto de o Procon-SP publicar uma cartilha com orientações sobre a violência financeira.

Bolsonaro propôs que brasileiros com rendimento domiciliar per capita inferior a R$ 210 — é essa linha de pobreza do substituto do Bolsa Família —possam se endividar com bancos. E o Legislativo concordou. A proposta já constava da MP de 2021 que implementou o Auxílio Brasil, foi retirada do texto durante a tramitação na Câmara e retornou no ano legislativo de 2022.

— Vários motivos justificavam a rejeição. O benefício não tem caráter necessariamente regular. É variável ou pode variar e sofrer interrupções por desatualização cadastral ou falta de frequência escolar, por exemplo — desenha a socióloga Leticia Bartholo, especialista em políticas públicas.

Só um governo pornograficamente liberal e um Congresso ignorante ou indiferente são capazes de propor empréstimo bancário com desconto em folha a quem carece de transferência de renda para comer. O Brasil voltou ao Mapa da Fome da ONU, tem 33,1 milhões de pessoas em situação de fome e 58% dos habitantes com algum nível de insegurança alimentar. As autoridades oferecem dinheiro a juros que, hoje, na modalidade destinada a aposentados e pensionistas do INSS, variam de 1,3% a 2,19% ao mês (16,8% a 29,68% ao ano), segundo o Banco Central.

A lei que vai à sanção presidencial permite que 40% do benefício do Auxílio Brasil sejam usados nas prestações do empréstimo. Significa que, no repasse mínimo de R$ 400 vigente atualmente, R$ 160 podem ser descontados. Sobrariam R$ 240 para a família se virar num país em que a cesta básica mais barata, em Aracaju, custa R$ 549,91 nas contas do Dieese.

Na PEC da Irresponsabilidade, o Congresso autorizou o governo a elevar em R$ 200 o piso do Auxílio Brasil até dezembro deste ano. O repasse mínimo sairá de R$ 400 a R$ 600 para quase 20 milhões de beneficiários: além dos 18 milhões que já estavam no programa, 1,6 milhão habilitados até o fim de maio. A inclusão não deve dar conta da demanda, porque diariamente mais famílias em situação de vulnerabilidade buscam a assistência social de estados e municípios. Na cidade do Rio, de maio para junho, o total de famílias cadastradas sem receber o Auxílio Brasil saiu de 67 mil para 109 mil.

Parlamentares aprovaram a distribuição de um caminhão de dinheiro sem freio na ladeira. O cheque em branco para Bolsonaro comprar o eleitorado periga nem alcançar os que mais precisam. Ao pagar o mínimo de R$ 600 de forma linear, o governo despreza a composição dos lares. Acaba destinando mais a famílias menores. A ex-ministra Tereza Campello, do Desenvolvimento Social, simulou o repasse complementar a partir da nova regra. Um adulto sozinho receberia R$ 106 em benefício de superação da extrema pobreza e R$ 494 de renda complementar. Uma família com dois adultos e três crianças (duas menores de três anos) ganharia apenas R$ 73 para chegar ao mínimo de R$ 600.

— É uma atitude que tende a gerar problemas gigantescos adiante. Há uma pressão para que famílias se cadastrem em frações, de modo a tentar receber mais. Isso tende a distorcer o Cadastro Único. Como o benefício complementar acaba em dezembro, haverá queda de renda na virada do ano. Qualquer novo programa estruturado que busque a equidade gerará desequilíbrio e redução de ganhos para vários beneficiários — enumera Campello, titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Sustentáveis da USP.

Governo e Congresso são cúmplices de uma política social mal desenhada e oportunista, que pode não solucionar a urgência do presente e, certamente, deixará legado nefasto no futuro, na forma de queda de rendimentos ou superendividamento.

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