Educar Tradicional

‘Ser professor no campo é ser militante pela defesa da educação de qualidade’

Para professora de assentamento da reforma agrária escolas são ferramenta para manter famílias no campo e para enfrentar a concentração fundiária do Brasil

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal
Lourdes Sanchez veio da Espanha e hoje é professora na escola rural Terezinha de Moura, de um assentamento da reforma agrária no interior de São Paulo

Conhecer, analisar e transformar. Essas são três palavras que definem o trabalho da professora Lourdes Sanchez Sanchez, de 58 anos, que topou o desafio de lecionar na escola de um assentamento rural após sentir de perto a importância da educação no campo no Brasil. “A educação no campo é importante porque ela é voltada para as características e especificidades do campo. Ela é parte da nossa realidade. O campo, o canteiro, o solo, a produção, a comercialização e as áreas de reserva ambiental passam a ser um laboratório de pesquisa de campo e de construção do conhecimento”, diz a professora.

A história de Lourdes, no entanto, vem de muito longe do assentamento Pirituba II, onde mora hoje, em Itapeva, no interior do estado de São Paulo.  Ela começa em Barcelona, na Espanha, na região da Catalunha. Foi lá que Lourdes nasceu, estudou e se formou professora. Ela trabalhou em escolas de periferias de grandes cidades e em uma vila rural. Porém, depois de 11 anos, sentiu necessidade de estar ao lado da população mais pobre. Então, pediu licença do trabalho e entrou em um avião para o Brasil, onde poderia trabalhar junto com movimentos sociais.

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Seu primeiro trabalho foi com a população de rua no centro de São Paulo, como voluntária. No projeto, conheceu a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e decidiu “entrar na briga”. A partir daí, Lourdes não quis mais voltar para seu país. Da luta pela terra, iniciada em 1995, tornou-se uma assentada da reforma agrária em 2015, na agrovila de número 6, do Assentamento Pirituba II, onde vive até hoje.

Educadora desde sempre

Toda essa mobilização pelo direito à terra levou Lourdes de volta à sala de aula, desta vez como professora do campo, profissão que para ela é também um meio de transformar a realidade fundiária do Brasil, uma das mais concentradas do mundo. “A educação ajuda a potencializar a identidade e a cultura camponesa, que vêm contra a padronização da cultura. Também valoriza a agricultura familiar e sua sustentabilidade e contribui para resgatar e manter viva a memória da comunidade. Porque um povo que não conhece a sua história não terá chance de construir um futuro melhor.”

Hoje, Lourdes trabalha como professora efetiva na Escola Municipal Terezinha de Moura Rodrigues Gomes, que fica dentro do Pirituba II. Ela é professora do 4º ano e leciona todas as disciplinas do Ensino Fundamental I para crianças de 8 a 10 anos. Apenas as aulas de educação física ficam a cargo de um professor especialista.

Quem só estudou em instituições de ensino nas cidades poderia ficar surpreso com a escola: ela é cercada por vários tipos de plantações e os alunos são, na maioria, filhos de agricultores e netos dos primeiros assentados. Por isso mesmo, desde cedo, já conhecem bastante sobre os ciclos da natureza e sobre a dinâmica do campo.

O que Lourdes conta é que, além da sua participação em movimentos sociais, foram seus três filhos que a motivaram a voltar para a sala de aula. “Em Barcelona, trabalhei 11 anos como educadora, então eu já carregava essa essência. Eu tive meus filhos nesses territórios da reforma agrária, como acampada e assentada. Eles frequentaram a escola do assentamento e acompanhando, enquanto mãe, eu via a necessidade de adequar a escola à nossa realidade”.

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Os três estudaram e se formaram na escola do assentamento. A mais velha já é graduada em Direito e outros dois estudam Biologia e Análise de Sistemas na universidade.

Professores e escolas para o meio rural

Para a professora, um dos grandes desafios da educação no campo é trabalhar os saberes do território e a cultura local camponesa, que não se restringem apenas a atividades de agricultura ou a manejo dos recursos naturais, mas sim a toda a vida no campo, desde a produção de alimentos até a política fundiária do país.

“O trabalho é também conhecer a essência de cada criança, da turma, da família, do meio de vivência delas. É conhecer o contexto de país e mundo onde estamos inseridos. E para quê? Para analisar quais são os problemas e os limites que vivenciam cada criança. Tanto na aprendizagem como nas relações humanas. Depois dessa análise crítica, podemos transformar conhecimentos e vidas através da prática educativa.”

Assim como Lourdes, outros 5.067 professores atuam nas escolas rurais de São Paulo, que reúnem 189.622 estudantes, segundo dados da Secretaria de Educação. No Brasil, as escolas públicas somam quase 57 mil unidades, pouco mais de 36% de todas as instituições de ensino da educação básica do país.

Entre elas, ao menos 2 mil estão dentro de assentamentos e acampamentos da reforma agrária, segundo o MST. Para a entidade, o direito à educação é uma reivindicação histórica, já que as escolas são vistas também como uma ferramenta para fortalecer o território e a comunidade.

Territórios de educação

A diretora da escola Terezinha de Moura, Selma Barbosa, mora no Pirituba II há cinco anos e compartilha deste ponto de vista. Ela lembra que a escola nasceu junto com o assentamento, pouco tempo depois de um grupo de 300 famílias de trabalhadores rurais ocuparem a fazenda Pirituba, uma área improdutiva no interior paulista. “A escola Terezinha de Moura, ela abriu em 1984, logo depois das primeiras ocupações de terra na fazenda Pirituba. Essas famílias passaram um tempo em um acampamento e a construção da escola fez parte das reivindicações dos camponeses desde o início.”

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Hoje, o assentamento reúne seis agrovilas, nas quais vivem 500 famílias. A escola Terezinha de Moura fica na agrovila de número 1. Todas as crianças do assentamento estudam na unidade, que atende também estudantes de sítios e fazendas da região de Itapeva. Ao todo são 166 alunos. “Essas escolas são de extrema importância para esse território, pois garantem o direito dos meninos e meninas do campo, o acesso ao conhecimento, à educação. Sem essas escolas eles teriam que se deslocar até a cidade para estudar”, diz Selma.

Esse é um dos pontos mais importantes das escolas do campo: elas permitem que os alunos estudem próximo de casa, o que ajuda a combater a evasão escolar, e ainda garantem que as crianças estejam em instituições alinhadas com a sua cultura e modo de vida. É o que conta o especialista em educação no campo André Lázaro. Ele trabalhou por sete anos no Ministério da Educação, durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2011), e diz que sempre esteve em contato com movimentos do campo para discutir alternativas para a educação.

“Eu me lembro de diálogos com o pessoal da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares] em que eles diziam: olha professor, a gente vai perder a nossa terra, porque meu filho tem que ir para a cidade estudar e ele não quer voltar, porque o tipo de sedução que a cidade exerce, ainda que lá ele seja discriminado, faz com que seja difícil fazer com que ele volte”, conta Lázaro.

Os desafios do campo

Apesar de tão importantes, o número de escolas no campo diminuiu significativamente nos últimos 10 anos. Para se ter uma ideia, em 2010 eram pelo menos 78 mil unidades rurais públicas no país. Oito anos depois, esse número caiu para 56.954, segundo o Censo Escolar de 2018, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

“O Brasil está vivendo um processo de encerramento, de fechamento de escolas no campo, que decorre de lógica economicista, que não entende a educação como uma função cultural e que está olhando apenas a questão de custos”, avalia André Lázaro.

Ele afirma que até algumas características tradicionais e positivas dessas escolas são usadas como justificativa para seu fechamento, como por exemplo o fato de elas serem multisseriadas. “A escola multisseriada significa que um professor trabalha com alunos de diferentes séries e idades. Como se quer acabar com as escolas do campo, se diz que esse modelo é um atraso, que é ineficiente, o que não é verdade. O modelo da escola multisseriada é muito conectado com a vida comunitária e traz coisas que a escola convencional esqueceu, como a convivência de alunos de diferentes idades em uma mesma iniciativa.”

Preconceito e discriminação

Outro problema comum é a falta de infraestrutura nos colégios das zonas rurais. Na escola Terezinha de Moura, por exemplo, não há internet para os alunos nem laboratório de informática. A instituição conta com sala de leitura e aparelho de TV. Essa realidade se repete pelo país, onde apenas 34% das escolas rurais têm acesso à internet.

A situação se agrava quando analisamos o acesso a serviços públicos básicos, como água encanada, oferecida em apenas 30% das escolas do campo. Ou ainda coleta de esgoto e de lixo, que estão presentes em apenas 5% e 34% delas, respectivamente. Nas zonas urbanas esses valores são bem diferentes: 89% das escolas com internet, 93% com abastecimento de água, 65% com sistema de esgoto e 99% com coleta de lixo. Os dados são todos do Censo Escolar de 2018.

“O motivo disso é bem claro: se você olhar as escolas das favelas vai encontrar a mesma realidade. A razão é o preconceito e a discriminação”, defende Lázaro. “O Brasil é racista, tem um desrespeito estrutural com a pobreza, responsabiliza o pobre pela pobreza e não lhe dar condições de sair dela. E tem mais: como as escolas do campo envolvem uma questão brutal no país, que é a propriedade de terra no Brasil, que é de uma concentração ímpar no mundo. Governos estaduais e municipais tem compromisso brutal com o latifúndio e com o proprietário de terra”.

Pedagogia e resistência

Na escola em que Lourdes leciona, são ao todo 13 professores, mas apenas quatro deles são moradores do assentamento. Os demais vêm da área urbana de Itapeva. Muitas vezes, esses docentes não têm formação específica para atuarem nas escolas do campo.

Outra questão é garantir aos professores modelos de contratação efetivos e eficientes. Não é raro que, nas zonas rurais do país, elas ocorram sem concurso público, por meio de contratos pontuais e por tempo determinado.

A escola Terezinha de Moura, onde Lourdes trabalha, enfrenta outro desafio comum às escolas rurais: a falta de uma proposta pedagógica que aborde as especificidades do campo. Nela, o currículo escolar é o mesmo do município de Itapeva e fica a cargo dos professores desenvolver projetos ligados ao território. Como faz Lourdes, que trabalha com as crianças valores de coletividade que remetam à realidade do campo.

“Cada aluno é responsável por um compromisso da turma por 2 meses. Por exemplo, um será coordenador da sala, outro secretário, outro responsável pela biblioteca, outro pela jardinagem. Queremos garantir que a organicidade da sala seja um compromisso de cada um deles. Outro ponto é a leitura de livros próximos da nossa realidade. Trabalhamos títulos como Pasqualzinho Pé no Chão: uma fábula da reforma agrária ou Um Fantasma Ronda o Acampamento“, conta Lourdes.

Por todos esses desafios do campo brasileiro, onde as desigualdades são extremas, ser professor também é um ato de resistência, ou como diz Lourdes, é ser militante. “Militante pela defesa da universalização da educação pública de qualidade, desde a educação infantil até a universidade.”