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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ser aluno e professor não é apenas uma ocupação: é uma forma de viver

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Harim Brito

26/09/2021 06h00

Quando refletimos sobre as evoluções e progressos da nossa própria condição, é natural que nos deparemos com aspectos e características de nossa personalidade que foram se aprimorando com o passar dos anos. Eu tenho uma crença pessoal de que algumas dessas características são adquiridas por meio das vivências e algumas outras nos acompanham desde sempre, mas isso são apenas divagações minhas.

O importante é que nessa jornada da existência temos a oportunidade de experimentar as dores e as delícias de ser, e que nesse processo, embora seja por vezes muito solitário, há momentos em que contamos com a participação de outros, também solitários. E dos encontros maravilhosos surgem as tramas que vão dando sentidos para a existência, que nesse tear coletivo formamos em comum unidade, uma comunidade.

Percebi em mim algo que carrego desde meus primeiros passos nesse mundão e que certamente influenciou, e muito, na minha caminhada: sempre fui muito dado a estudar, pesquisar e querer conhecer as coisas pra entender melhor como esse mundo todo funciona. Não por acaso, segui a carreira de professor. E apesar de tudo que ocorre com a Educação em nosso país, sigo amando o que faço e não conseguiria me ver trabalhando em algo diferente.

E nessa trajetória de professor ouvi algumas metáforas bem interessantes sobre o ofício da docência. Dentre elas, existe uma que sempre me chamou mais a atenção, que é aquela que faz uma analogia entre o professor e o semeador.

Existe um jogo muito interessante entre o termo cultura e o verbo cultivar que vale uma meditação a respeito do cuidado e da persistência envolvidas nessas ações: se considerarmos a nossa cultura como um conjunto de hábitos e costumes que nos rodeiam e desse cultivar como um processo que vai desde a preparação do solo até a colheita dos frutos, é possível ver nessas construções um processo ativo e que guarda o seu próprio tempo para acontecer. Ninguém nasce sabendo das coisas e o fruto quando é colhido na época certa é mais doce.

Num esforço para ir mais além daquela ideia das sementes lançadas e do cultivo do solo com a metáfora do professor e os sonhos dos alunos, tem uma coisa muito bonita nessa analogia do semear e do educar, que é a importância do trabalho criativo e da força transformadora do tempo.

Costumo pensar que o meu trabalho, mesmo com todas as contradições existentes no panorama educacional, consiste em elaborar artesanatos intelectuais. E nem me refiro às abstrações teóricas e por vezes distantes de uma realidade mais prática, que normalmente preciso operar quando trabalho os pensadores da tradição filosófica, mas daquele esforço criativo para criar um ambiente em que as ideias — em alguma medida, os afetos — circulem livremente e possibilitem o surgimento coisas novas para todos os envolvidos nos processos. Para os alunos e para mim.

Porque a sala de aula, é o que vejo, é um espaço dinâmico onde a mente cria, vibra junto e com isso se rejuvenesce ao se deparar com as descobertas. A sala de aula é um lugar de inspiração e por essa razão é que eu procuro expandir esse lugar para fora dos muros das escolas. Na minha casa, na minha vizinhança. Fazer da condição de professor e principalmente a de estudante uma forma de viver e não apenas uma ocupação.

Foi assim que anos atrás, quando iniciei minha jornada profissional como professor, fazia questão de me conectar aos alunos por meio da internet. Para mim, era uma estratégia natural para suprir o tempo limitado que tinha na escola e, nesse pensamento expansivo, criar uma rede contínua de inspirações. Dessa forma pude me conectar aos meus alunos, de agora e de antes, fortalecendo essas ligações e recebendo com isso algumas gratas surpresas.

No começo do mês uma aluna me mandou uma mensagem dizendo que lá nos longínquos 2008 queria ser "Professor Harim" quando crescesse. Doze anos depois e já formada, disse-me que assumiu no mês passado mais de uma dezena de turmas numa Escola de Referência lá em Pesqueira, no sertão pernambucano. Ela veio me agradecer pelas aulas e pela inspiração.

Fiquei muito emocionado com esse relato e depois reflexivo sobre esse poder que temos em nossas mãos, da força dos bons exemplos e sobre o trabalho silencioso e amoroso que o tempo faz em todos nós. Olhei pro céu, agradeci pela vida e senti uma grande alegria pelas oportunidades que a jornada tem me proporcionado.

Nos últimos meses, com toda essa situação de distanciamento social ocasionado pela pandemia, precisei seguir minha rotina de trabalho. Entre uma aula e outra, na experiência do isolamento, senti a necessidade de refletir mais sobre esse momento e também de resgatar algumas utopias pessoais que deixei de lado para encarar uma realidade menos afável aos sonhos de um jovem professor.

Porque, naturalmente, já pensei em transformar o mundo inteiro portando uma caneta e um livro. Sei do lugar comum que é falar sobre a crise dos valores que assola o mundo de maneira geral, e principalmente quando os olhos miram patamares de maior destaque social. Há uma grande contradição entre o que se fala e como se vive. Entre o ser e o parecer.

Nessas reflexões mais amadurecidas sobre o trabalho e o lugar que um professor ocupa no mundo, passei a compreender melhor a importância do que fazemos quando entramos numa sala de aula. Mais do que assumir as responsabilidades de administrar conteúdos, desenvolver projetos e acompanhar processos, temos ali em alguma medida, a missão de orientar e inspirar esses estudantes que, numa época marcada por tantas crises e incertezas, às vezes tem na figura do professor um espaço de acolhimento, cuidado e segurança. Foi assim que pude me reconectar àquele professor de início de carreira que eu já fui um dia.

Hoje sei que sozinho eu não sou capaz de transformar o mundo inteiro com a minha arte, mas tenho ciência da minha capacidade para inspirar mudanças nas pessoas. E que essas pessoas inspiradas podem sim, atuar cotidianamente e fazer a diferença, transformando o seu próprio micromundo num lugar melhor.