Semente da educação

André Baniwa, que lutou para estudar, lidera movimento que revolucionou a educação indígena

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo (SP) Juliana Pesqueira/UOL

Eu nasci e cresci já tendo escola, mas meus pais não tiveram isso. Sou a terceira pessoa da família. Meus irmãos mais velhos estudaram e meu pai queria deixar os filhos estudarem para que a gente explicasse as coisas para ele. Nós somos um projeto dele. Tudo o que acontece através da gente, eu digo que é um projeto do meu pai.

Essa foi a minha motivação para estudar, procurar respostas que meu pai não tinha. Tudo o que eu aprendia na escola, mostrava para ele. E ele ia me dizendo se o que estava nos livros parecia ou não com as coisas da nossa cultura.

Se os livros e a escolaridade desvalorizavam nossos conhecimentos, penso que a gente pode usar esses mesmos instrumentos para fazer o oposto e valorizar a nossa cultura. Por isso a educação para mim é muito importante, não do jeito que ela é pensada e ofertada, mas da forma que podemos transformá-la em nosso benefício.

É como a tecnologia, podemos usá-la de uma forma que nos beneficie, que leve para outras pessoas nossos conhecimentos e nossa forma de viver. (André Baniwa)

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Pai, eu quero estudar

André, que faz parte da curadoria de Ecoa sugerindo boas histórias para nosso site, divide a fala com um galo que canta ao fundo. Canta solto, aos oito cantos, enquanto ele conta sobre a infância. Na história, André é um menino bravo que desafia a professora. Ora, se fosse para escrever uma redação sobre a história indígena, ia escrever direito. Esculhambava — palavra que enfatiza — tudo o que diziam os livros. Mas ao invés de broncas, ganhava boas notas e convites para participar de eventos e falar sobre o que escrevia. "Tinha muitas coisas erradas nos livros sobre os indígenas", diz André Fernando Baniwa, que nasceu em 1971 na comunidade Tucumã Rupitáàs à beira do Rio Içana, na fronteira do Brasil com Colômbia e Venezuela.

Para estudar, André teve que sair de casa. Às margens do maior afluente do rio Amazonas, o rio Negro, ele foi alfabetizado por católicos e depois de terminar o terceiro ano, antiga segunda série, voltou com o pai à sua terra de origem.

Lá, continuou estudando. "Eu gostei de aprender, ler, escrever e cantar coisas da religião. Mas voltei a estudar com outros missionários, dessa vez evangélicos", lembra. Essa observação acerca de quais missionários o ensinaram, católicos ou evangélicos, faz toda a diferença quando pensamos nos baniwas.

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Os povos indígenas da região do Rio Negro conviveram com a presença de missionários católicos desde 1657. Entre as missões que se perpetuaram ao longo dos séculos está a Missão Salesiana. Para André, uma das partes negativas da presença dos salesianos é que eles proibiram a fala baniwa na região do rio Içana. Quando diz que foi alfabetizado na tenra infância por católicos, André quer dizer que ali aprendeu a ler e escrever em português.

Ao continuar os estudos já perto da família, André aprendeu com missionários evangélicos. "Eles nos ensinaram a ler e escrever na nossa língua. Traduziram a Bíblia e as músicas religiosas para a nossa língua também e isso foi uma coisa muito boa. A parte negativa fica a cargo do conhecimento da medicina, assim como os católicos, os missionários evangélicos diziam que nosso conhecimento era satânico, que nos levava para o inferno", explica.

Quanto aos estudos, não quis mais parar. Os irmãos mais velhos aprendiam em uma escola em Manaus e era para lá que André queria ir. Mas os pais o proibiram. Ver os irmãos longe da família não era só difícil para André, mas para seus pais também. Para eles, os filhos deveriam ficar na comunidade, perto da família. Dali por diante, nem ele e nem as irmãs iriam mais para a escola.

"Mas eu insisti, continuei estudando, e decidi estudar onde estavam meus irmãos", lembra. E lá foi ele. "Foi difícil. Eu falava muito mal o português naquela época. Meu pai não confiava muito em mim, dizia que eu ia desistir e voltar pra ele, mas eu consegui estudar. Levei um ano e meio para me acostumar com a escola. Mas passei quatro anos estudando", conta André.

Em 1991 o diploma veio. Agora, André estava formado na escola agrícola de Manaus. Formado no ensino fundamental profissionalizante com habilitação em agrozootecnia. Mais um ciclo se completava.

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O povo baniwa quer escola

André parou à porta. Não tinha como partir. Passara noites pensando na carta paterna. Agora, em São Gabriel da Cachoeira (AM), deveria ou não pegar o barco com os amigos rumo à escola em Manaus? Já passara seu período lecionando na cidade, conseguira um dinheiro. Mas o pai estava doente. Na carta, o patriarca dizia que se sentia fraco, que não sabia se ia aguentar. Mas e os estudos? E a possibilidade de se formar também no ensino médio? Ficou parado à porta da embarcação.

André não conseguiu partir, voltou para casa e cuidou do pai até que ele se recuperasse. Os estudos ficariam para depois.

"Naquele mesmo ano, meu povo criou uma organização indígena para lutar pelos seus direitos. Eu não entendia muito bem o que era isso, mas os caciques me pediram para ficar no grupo. Na assembleia do ano seguinte, ouvimos muito sobre a Constituição e os direitos dos povos indígenas e ajudamos a levantar propostas do que a comunidade baniwa queria enfrentar. Eu estava com 21 anos", conta.

Os baniwas queriam o mesmo que André: escola. Ele não ia negar isso a seu povo. Foi à prefeitura e até escreveu cartas ao Ministério da Educação. Mas ninguém o respondia. Decidiu-se, então, por outro caminho: com a ajuda de ONGs, conseguiu o que queria.

Liderou a reunificação de seu povo, de sua escrita e fala divididas por católicos e evangélicos. Ajudou a criar um curso de linguística. Uma gramática. Dicionários atualizados. Colocou para conversar os diferentes missionários. E teve mais.

Se antes não havia nenhum professor baniwa, com a criação do primeiro magistério indígena no Alto do Rio Negro, André conseguiu ajudar na formação de mais de 150 educadores de seu próprio povo. O próximo passo, então, seria a construção da escola.

Na escola dos missionários tinha que ter sapato azul, camisa branca, cabelo cortado. E eu dizia que para ser inteligente não precisa de tudo isso. A nossa escola é para a gente estudar e aprender. Nós podemos ser inteligentes mesmo não tendo essas roupas

André Baniwa, educador

A bicicleta de André deu carona para outros indígenas

"Um dia, um bispo da cidade nos disse que a gente não estava preparado ainda para a construção da escola, que isso era como aprender a andar de bicicleta. Você começa a andar, cai, levanta, cai mais uma vez, levanta. E ele disse que a gente precisava de alguém que nos ajudasse a não cair", André faz uma pausa e ri. "E eu respondi ?quanto tempo o senhor vai ficar ensinando a gente a andar na bicicleta? Isso já tem mais de 100 anos. Eu não quero essa bicicleta", e dá mais uma risada.

A Escola Baniwa e Coripaco Pamáali, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), se tornou a nova bicicleta de André. Resultado de uma mobilização coletiva, ela começou a funcionar em 2000. Com professores formados pelo magistério indígena, agora a educação não seria mais guiada pelos missionários. Católicos ou evangélicos.

Juvencio da Silva Cardoso foi um dos primeiros alunos da escola e se destacou. Foi selecionado como monitor e fez coordenação da área de desenvolvimento das práticas de criação de peixe, abelhas e manejo florestal na instituição. Mais tarde, participou do magistério indígena e passou a ser contratado como professor. Hoje, mestre em ciências ambientais, é um dos acadêmicos e educadores da região.

"Estou feliz por ter participado desse processo de escolarização dentro do território baniwa e coripaco e é nessa perspectiva que minha formação vem sendo construída. Essa formação me despertou o interesse pela formação acadêmica", diz.

Acredito que a escola Pamaáli foi um ponto de partida para que a gente continuasse construindo os nossos sonhos de lutar pelo nosso direito à educação. Precisamos ter formação para poder lutar pelos nossos direitos e permanência em nosso território.

Orlando Andrade Fontes, estudante da Universidade Estadual de Campinas

Juliana Pesqueira/UOL

Assim como Juvêncio, a Escola Baniwa e Coripaco Pamáali também formou Orlando Andrade Fontes, que desde 2020 se tornou aluno da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A universidade inaugurou, em 2019, o vestibular indígena. "Colocar pretos, pardos e indígenas disputando as mesmas vagas não assegura a inclusão da população indígena que pode ter um tipo de escolarização diferente", explica José Alves de Freitas Neto, professor do departamento de história e coordenador executivo do vestibular da Unicamp (Convest).

Com a medida, a universidade saltou de sete indígenas para 72 aprovados no primeiro vestibular específico, conta o coordenador. Como o problema dos povos vulnerabilizados em universidades não é só o ingresso, mas também a permanência, a Unicamp dispõe de políticas para garantir que os estudantes indígenas possam continuar seus estudos.

Segundo o coordenador, a universidade possui programas de permanência estudantil que envolvem recursos financeiros, moradia e alimentação, além de aulas de reforço de português e ciências exatas. Enquanto esteve em Limeira, no interior de São Paulo, onde está cursando administração, Orlando pode desfrutar desses programas. No final de 2020, com a pandemia, ele retornou para casa e foi contemplado com auxílio dado pela universidade para o estudo remoto.

Assim como Orlando, cerca de 30% dos concorrentes no vestibular indígena de 2020 foram de São Gabriel da Cachoeira. A decisão pela cidade tem em vista ao fato do município ter o maior percentual de população indígena no Brasil. "Após a primeira edição, a Comvest confirmou que a decisão foi acertada já que a maior demanda de inscritos e aprovados foi exatamente de lá", em nota, explica a entidade.

A presença da escola indígena na região foi importante para esse resultado. A Pamaáli chegou a ser reconhecida como instituição de inovação e criatividade para a educação básica pelo Ministério da Educação. Hoje, contudo, enfrenta dificuldades.

"A escola sofreu com falta de recursos públicos e passa por um processo de reestruturação", conta Juvêncio. E essa reforma conta com a identidade de André. "Ele sempre foi nossa referência", completa o educador.

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