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Opinião|Sem banheiro não há saúde

A falta dos serviços básicos de saneamento atinge milhões de brasileiros, e mais de 5,5 milhões de pessoas ainda não têm banheiro em casa. O que isso significa?

Atualização:

Data instituída para alertar sobre a precariedade dos serviços de saneamento básico, o Dia Mundial do Banheiro foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2003. Assim, 19 de novembro é uma data para fomentar ações que possam ser pensadas e elaboradas visando a alcançar a universalização do acesso à água potável e ao atendimento de coleta e tratamento de esgotamento sanitário. Dados do Unicef apontam que aproximadamente 4,2 bilhões de habitantes não têm serviços de saneamento básico ao redor do mundo.

No Brasil, a falta dos serviços básicos atinge milhões de brasileiros: cerca de 35 milhões dos habitantes não são abastecidos com água potável e quase 100 milhões sofrem com a ausência de coleta de esgoto – enquanto apenas 50,8% dos esgotos do País são tratados, ou seja, são mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento despejadas na natureza diariamente. Não obstante, o número de residências sem acesso a banheiro é de 1,6 milhão, isto é, se considerarmos a média de 3,5 pessoas por residência no País, são mais de 5,5 milhões de pessoas que vivem em locais sem um banheiro.

A ausência de banheiros chega também às escolas brasileiras. Segundo o Censo Escolar ano-base 2020, o número de escolas públicas sem banheiros é de 4,3 mil – indicador que aumentou em relação ao ano anterior, quando 3,2 mil ambientes escolares sofriam com essa ausência. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019, presentes no estudo do Trata Brasil intitulado Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento, mostram que o atraso escolar é uma das consequências da ausência dos serviços básicos. O relatório constatou que a falta de banheiro na residência aumentava em 1,5% o atraso escolar dos jovens, afetando diretamente o desempenho escolar de alunos e alunas.

O saneamento interfere no futuro profissional desses estudantes, influenciando nas chances de progressão para o ensino superior e na qualificação dos jovens que recém ingressaram no mercado de trabalho. Durante o período do vestibular, os estudantes que sofrem com a ausência dos serviços básicos sentem o impacto em seu desempenho nas provas. Isto é, informações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) revelam que os jovens que moram em residências sem banheiro de uso exclusivo têm desempenho pior que aqueles que moram em residências com banheiro.

Para as alunas, a precariedade do saneamento se torna ainda mais prejudicial, por consequência de não ter como se higienizar no período menstrual. Assim, as estudantes precisam se ausentar mais durante os períodos de aulas – o que reforça o atraso escolar dessas jovens. A pobreza menstrual é mais um dos problemas agravados pelas más condições de saneamento básico no País. De acordo com um estudo que conta com o apoio do Instituto Trata Brasil, entre 2016 e 2019 o número de mulheres sem banheiro em casa cresceu 56,3%, passando de 1,6 milhão para 2,5 milhões. E mais: 24,7 milhões de brasileiras não recebem água tratada com regularidade, e as mulheres que não têm acesso a esse serviço comprometem uma parcela maior da renda com a compra de absorventes e coletores menstruais.

No entanto, para a população feminina que vive sem banheiro em casa o esforço econômico é 64% maior do que para aquelas que vivem em residência com saneamento básico. O relatório aponta que o acesso ao banheiro exclusivo reduz em 45,4% a probabilidade de afastamento por doença ginecológica.

Fica claro que universalizar o saneamento vai muito além da saúde. Os serviços básicos são essenciais para que a população tenha uma vida digna para estudar, trabalhar e ter seu tempo de bem-estar. A precariedade da infraestrutura do saneamento básico reflete em diversos âmbitos da sociedade, seja na área da saúde, da educação, no rendimento do trabalho e no turismo, como também reforça a desigualdade de gênero.

O País aprovou, recentemente, o Marco Legal do Saneamento (Lei n.º 14.026/2020), com o intuito de corrigir este atraso histórico de ausência dos serviços de saneamento básico no País. Há décadas, a média dos indicadores não evolui na velocidade desejada, e isso pode ter várias explicações: ausência de políticas prioritárias de saneamento, baixos investimentos, baixa governança regulatória ou, ainda, concessionárias de saneamento deficitárias.

As metas impostas pelo Marco Legal do Saneamento visam à universalização dos serviços básicos até 2033, quando 99% da população brasileira deverá ser atendida com acesso à água potável e 90% com tratamento e coleta de esgoto. Mas como resolver o fato de ainda existirem 5,5 milhões de pessoas sem banheiro dentro de uma residência no País? A ausência de banheiro precisará entrar mais na pauta política para que seja resolvida concomitantemente ao avanço da universalização dos serviços de saneamento básico. Sem banheiro não há saúde.

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PRESIDENTE-EXECUTIVA DO INSTITUTO TRATA BRASIL

Opinião por Luana Siewert Pretto