CIEP, escola no Rio de Janeiro

 

Desde 2004 realizo, com uma equipe de estudantes de graduação e pós-graduação de antropologia, pesquisa de campo em escolas da rede de ensino médio do estado do Rio de Janeiro, selecionadas entre as de pior desempenho em avaliações em larga escala. Foram anos de observação do cotidiano procurando compreender qual era a cultura ou etos vivenciado pelos professores, diretores, estudantes, funcionários e familiares  dos estudantes dessas escolas. 

 

Ao longo desses anos nos perguntávamos sobre as razões do baixo desempenho e das dificuldades enfrentadas pelos professores e estudantes, embora o entorno delas também fizesse parte das nossas observações.

 

Entre as respostas que ouvíamos de professores sobre os motivos do mau desempenho e do elevado índice de repetência as que mais ouvíamos era, de um lado o mantra sobre as “famílias desestruturadas” dos estudantes e, de outro, o ambiente e a violência em que viviam. Nem todas as escolas situavam-se em favelas ou regiões conflagradas, mas algumas delas sim. Para exemplificar descrevo uma das falas da diretora adjunta de uma escola em um dos bairros mais violentos de Caxias. Conversando conosco depois de apartar uma briga ferrenha entre alunos do segundo ano do ensino médio com força e autoridade, afirmou: “Aqui dentro a gente faz o possível, mas lá fora ...” abrindo os braços em atitude de desânimo.

 

Uma das escolas pesquisadas era um Ciep na Cidade de Deus, Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. Não se diferenciava tanto das demais:  alto absenteísmo dos professores e os mesmos rituais cujos resultados geravam para os alunos baixa proficiência, alta repetência e gritante evasão depois de anos permanecendo nas mesmas séries.

 

Até a chegada da UPP na comunidade as salas de aula eram cheias no início do primeiro bimestre e iam se esvaziando aos poucos, como na maioria das outras escolas pesquisadas. O Ciep, com sua arquitetura monumental e espaçosa, nos parecia vazio. Depois da chamada pacificação, com a criação da UPP em fevereiro de 2009, os jovens foram voltando aos poucos e os professores se espantaram com as novas adesões. No entanto, a cultura da escola continuava a mesma. Nada mudara, ou muito pouco, apesar do esforço de alguns secretários estaduais de educação para receber o novo contingente, em sua maioria, meninos.

 

Embora nossa hipótese de pesquisa fosse a de que a cultura de gestão da escola era o fator mais importante para explicar os problemas enfrentados pelos professores e estudantes, tive a certeza de que o método utilizado pelas forças policiais da ocupação e das UPPs que consistiu em retirar o poder dos traficantes sobre o território era fundamental para que se pudéssemos melhorar a chamada “educação”. Acreditei que com mais alunos, menos evasão, e professores menos desestimulados, tudo iria se transformar. Mas, apesar dos esforços do secretário de educação Wilson Risolia que chefiou a pasta de 2010 a 2014 para modificar a concepção de que só reprovando se pode “controlar as turmas” e que sem reprovação não há como educar, não houve mudança alguma nos rituais escolares.

 

Na falta de transformação e investimento no interior da escola, com a lenta agonia do projeto das UPPs e a volta do domínio territorial pelos traficantes com a saída de Luiz Mariano Beltrame da Secretaria de Segurança Pública em 2016, os jovens abandonaram novamente a escola voltando para as atividades do tráfico. Vimos no Rio de Janeiro a vertiginosa corrida dos traficantes para adquirir armas de alto poder de destruição produzindo um aumento exponencial da violência e o resultado disso para as escolas. Juntou-se a escalada da violência, o conflito entre facções que antes conviviam num relativo acordo de paz. A tal ponto chegamos que o governador do Rio de Janeiro declarou depois do carnaval de 2018 que havia perdido o controle e não havia dimensionado o tamanho do problema abrindo caminho para a intervenção federal na segurança pública do estado.

 

Qual será o impacto desta intervenção no ambiente escolar? Sei do trauma com a ação dos militares desde a ditadura militar que reprimiu violentamente uma geração, porém quero acreditar que, hoje, sendo o princípio da intervenção militar o mesmo das UPPs, de retomar o território das mãos do crime organizado nas comunidades, haverá alguma esperança, agora com a experiência das Upps do passado a iluminar o presente.

 

Mas será preciso um enorme esforço para fazer com que o ambiente menos violento do entorno propicie uma mudança de cultura nas escolas, especialmente nas que se encontram nas zonas mais afetadas pelo tráfico. Todo o investimento possível e toda a inteligência deveria estar voltada para repensar a escola e apoiar os professores na difícil tarefa de educar jovens que não nasceram em berço de ouro. É preciso canalizar verbas para as escolas e atrair assim os estudantes e, sobretudo, investir em programas que ajudem a modificar os tradicionais rituais escolares que desestimulam os jovens com reprovações repetidas e o absenteísmo de professores. Tudo leva a crer que os responsáveis pela intervenção têm consciência disso, assim como tinha Beltrame.  

 

Será preciso muito empenho porque a escola ainda é de fato o locus da esperança desses milhares de brasileiros que querem ter uma vida melhor que a de seus pais, como repito há anos. Podem me acusar de ingênua, mas prefiro a ingenuidade ao cinismo ou a desesperança.