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'Romantizar a pobreza é muito triste', diz jovem que passou em Medicina estudando sem eletricidade

Matheus Moreira prestou vestibular por oito anos consecutivos e, após ser aprovado, quer que a jornada seja mais tranquila para outros quilombolas

Por Laila Nery
Atualização:
Matheus estudava numa casa emprestada, sem rede elétrica ou internet. Agora ele incentiva outros jovens que querem exercer a medicina, através das redes sociais. Foto: Mayana Carvalho

Matheus Moreira, 26, viralizou nas redes sociais após realizar sonho de ingressar em medicina na Universidade Federal do Recôncavo Baiano. O garoto estudou em sua casa, numa comunidade quilombola do Sertão da Bahia, sem energia elétrica, sem incentivos. Matheus fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) oito vezes até atingir o objetivo.

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A história de Matheus emocionou muitas pessoas que hoje se espelham nele para perseguir seus próprios sonhos. São 70 mil seguidores no Instagram, que ele pouco postava. Atualmente, Moreira começou a incentivar jovens como ele a correr atrás dos quase mil pontos na redação do Enem.

Agora ele está lançando um Manual da Redação Quase Mil, para conseguir continuar cursando a faculdade. 980: a nota da redação do Enem foi determinante para que o jovem garantisse a vaga no curso que queria. O que Mateus deseja agora é que os jovens que se espelham nele não precisem se esforçar tanto e esperar oito anos até alcançar seus sonhos.

“Quando eu via meus colegas seguindo, me sentia desgastado, pensei em desistir e seguir a vida, cursar biologia, alguma outra área da saúde, cheguei a fazer um semestre de enfermagem. Eu quase desisti do meu sonho, foi muito duro”, contou o estudante de medicina ao Estadão.

Matheus é de uma comunidade quilombola da zona rural de Feira Santana, o Quilombo Antônio Cardoso. Foi lá onde ele cresceu e teve apoio durante esses anos em que regou o sonho da medicina. Ele se deslocava diariamente para estudar na biblioteca municipal de Feira de Santana, onde ele também dava aulas de reforço em redação, português e matemática para ajudar com as contas em casa.

Com a pandemia, a biblioteca foi fechada, ele ficou desesperado e sem emprego. Já as aulas em Feira de Santana haviam sido suspensas e ele ficou sem ter onde estudar. Uma amiga do Quilombo tinha uma casinha, inacabada, sem internet e sem energia elétrica. Foi onde o jovem depositou seus sonhos e livros, improvisou uma mesinha e estudou por mais de um ano até a aprovação.

Os vizinhos e amigos presenciaram o tempo que ele dedicou e a realização do sonho de Matheus se transformou na realização do sonho do Quilombo Antônio Cardoso. “Eu me lembro, foi no dia 5 de junho do ano passado, não acreditei. Fiquei dois meses aprovado sem contar para ninguém, só queria contar após matriculado. Fiquei com medo de dar azar. A galera ficou em êxtase quando soube, tudo era motivo para comemoração. A primeira vez que apareci na TV, a minha aprovação, comemoramos juntos”.

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O Quilombo Antônio Cardoso comemora cada conquista de Matheus. Ele pensa em se especializar em saúde da família e continuar no quilombo. Foto: Mayana Carvalho

Os Quilombos sempre foram símbolos de sobrevivência dos povos negros em diáspora no Brasil. Para Matheus, os incentivos da sua comunidade quilombola foram primordiais para a sua emancipação. Agora, ele sonha com dividir essa profissão com a sua comunidade.

“Eu penso em trabalhar com saúde da família, saúde de comunidades rurais, quilombolas como a minha. Quero trazer para eles tudo que eu aprender lá na UFRB”. O discurso de Matheus reflete a prática dos Quilombos, tudo acontece na base do “Nós por nós”.

Com pouco incentivo público e convivendo com a falta de medidas de reparação histórica, os povos quilombolas quase sempre cria uma rede de apoio para continuar sobrevivendo como Quilombo. 134 anos após a sanção da Lei Áurea, quem nasce num Quilombo ainda conhece o preço da emancipação e sabe o quanto é difícil sonhar com espaços distantes da subalternidade.

Assim que Matheus começou a contar sua história na TV e nos jornais, o garoto se viu colocado em um novo ambiente: o do "coitadismo", da superação. O estudante de medicina viu muita gente repostando o que ele havia dito e usando sua história contra o seu próprio povo. “Vitimismo”, foi a palavra usada por Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares.

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“Quem quer dá um jeito, se esforça que consegue”, mas não é bem assim que Matheus pensa. “Fiquei oito anos, estudei numa casa que só tinha água, sem luz, sem internet, como posso me comparar com um estudante que tem todas as facilidades? Eu trabalhava dando aula e depois ia para a biblioteca ficar lá até fechar. Como poderei ser comparado aos meus colegas na faculdade que fizeram cursinhos caríssimos?”.

“Romantizar a pobreza é muito triste, eu não desejo que ninguém precise se esforçar tanto para alcançar seus objetivos. Quero oferecer uma educação de qualidade para os meus, contribuir com a minha família. Daqui a dez quinze anos eu quero estar estabelecido e ter uma ONG aqui, para que outros Matheus não precisem passar por tudo isso, preciso promover uma mudança na vida dos meus familiares e da minha comunidade. Agora, eu sou uma pessoa que influencia muita gente, aqui, nas redes sociais, quero que os jovens de escola pública que me acompanham e se inspiram em mim vejam um futuro possível através da educação.”

Manual da Redação Quase Mil

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E tem muita gente se inspirando na história de Matheus Moreira. O futuro médico emocionou a atriz Taís Araújo, que está ajudando na divulgação do livro do rapaz Manual da Redação Quase Mil, um e-book lançado para ajudar a custear a mudança e, pelo menos, o aluguel durante o primeiro semestre na faculdade. 

Nas redes sociais, a atriz pediu que todos seguissem o garoto nas redes sociais e compartilhassem o e-book: “Matheus passou pra Medicina estudando numa casa emprestada e sem energia elétrica. Hoje, ele precisa se mudar para assistir às aulas presenciais do curso, já que a universidade fica a 3h da sua casa”. 

“Isso diz muito sobre acesso aos direitos básicos, suporte que a educação pública não dá para os estudantes e sobre o Brasil atual, perceberam? Talvez algumas pessoas não estejam preparadas para essa conversa… O que eu sei, é que o Matheus é talentoso, inteligente e está determinado a não só mudar a vida dele, como a de muitas outras pessoas”.

 

O Esporte Clube Bahia, time do coração do estudante, também convocou sua torcida para estudar redação com Matheus. No perfil do Instagram, o time compartilhou fotos do jovem assistindo ao jogo na Arena Fonte Nova, à convite do time. “O Esquadrão enviou camisa e dará ingresso pro jogo de sábado, mas a Nação pode colar na campanha. Matheus escreveu um Manual de Redação, após tirar nota máxima no Enem, e está vendendo o livro online”.

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