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Rodrigo Hübner Mendes

A criatividade como catalisadora da inclusão escolar

07/08/2020 04h00

Há algum tempo, li um relato do professor Bruno dos Santos, que leciona na rede pública de Belém do Pará. Ele tinha acabado de receber um novo aluno em uma de suas turmas do Ensino Médio chamado André e estava se perguntando como faria para ensinar Física para essa turma, dado que o André era cego. Decidiu, então, apostar na capacidade criativa dos próprios alunos para encontrar respostas. Como falar sobre luz, cores e formação de imagens para quem não enxerga? Esse foi o desafio assumido pelos adolescentes que, ao debaterem possibilidades, decidiram produzir materiais que favorecessem a compreensão sobre conceitos da óptica por meio do tato.

Depois de se dividirem em pequenos grupos, o primeiro passo foi pesquisar na internet o que já existia no campo do ensino da física para pessoas com deficiência visual. Já com o repertório ampliado, partiram para a fase de criação dos materiais. A premissa era usar insumos recicláveis e de baixo custo. Além de participar de um dos grupos, André ficou responsável por testar a qualidade de cada produto, avaliando se correspondiam ao objetivo de permitir o entendimento dos fenômenos ópticos sem que fosse necessária a visão.

Para o ensino da formação de imagens em espelhos planos, por exemplo, os alunos criaram uma "maquete" com uma base quadrada de madeira, em que foram colocadas duas bonecas idênticas, frente a frente, em extremidades opostas. A base foi dividida por uma placa de acrílico, fixada verticalmente no centro da maquete. Uma boneca representava o objeto real e a outra a imagem virtual formada no espelho plano. Visando simular os raios de luz entre o objeto e a imagem, os estudantes conectaram as bonecas por meio de quatro linhas de crochê, amarradas em partes diferentes do corpo. Tais linhas atravessavam o acrílico por meio de furos. Chamou a atenção de Bruno a sofisticação e a eficiência do material inventado pela turma. Soluções com o mesmo nível de complexidade foram produzidas para as aulas sobre refração, dispersão da luz, formação das cores, enfim, uma série de conteúdos bastante complexos.

É importante citar que essa experiência levou os estudantes a transcender as fronteiras da Física e se interessar por temas candentes da vida contemporânea, como igualdade e respeito. Uma das indagações era "quem deveria se responsabilizar por garantir que André aprendesse? O Estado? A escola? A família?". Na busca por subsídios, fizeram pesquisas, leram artigos, assistiram a reportagens. Enfim, desenvolveram ações que denotam um processo genuíno de apropriação do conhecimento, que dialoga muito com o pensamento de John Dewey, que diz que "Dê aos alunos algo para fazer... e não algo para aprender; porque o ato de fazer é como o incentivo por pensar; e a aprendizagem resulta naturalmente".

Esse caso escancara a importância da criatividade como uma competência a ser desenvolvida no ambiente escolar. Além disso, ilustra o enorme potencial do engajamento dos jovens, quando convidados a formular propostas relacionadas a causas sociais, como a inclusão de pessoas com deficiência. Cabe lembrar que uma das dez competências gerais estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular, documento concebido para nortear a criação dos currículos adotados pelas redes de ensino da Educação Básica no Brasil, refere-se diretamente a esse assunto.

Diante dessa relevância, será que é possível identificarmos condições essenciais para que a criatividade floresça? Em 2010, fui visitar a sede do Project Zero (organização ligada à Universidade de Harvard que se dedica a pesquisar as relações entre a aprendizagem e a arte). Um dos seus fundadores, Howard Gardner, enfatiza bastante a percepção de que a nossa infância é espontaneamente permeada pela capacidade de criar. Muitos artistas, como Pablo Picasso, já haviam relatado essa percepção. Nesse sentido, no papel de educadores, precisamos perseguir formas de manter vivas a mente e a sensibilidade das crianças. Ao invés de impor percursos engessados, que enfatizam a memorização de certas informações, as escolas deveriam estimular também a criatividade, em todos os níveis de ensino. Para que isso seja possível, Gardner destaca alguns ingredientes que considera fundamentais, como desafiar os estudantes para solução de problemas, expô-los ao risco e tolerar erros. Segundo ele, se não formos instigados, dificilmente teremos a chance de ser criativos.

Já faz algum tempo que a criatividade deixou de ser um tema estratégico apenas para quem atua com arte, comunicação e entretenimento. Criatividade é hoje um tema substancial para muitos outros universos, como o da escola. E para que ela tenha condições de aflorar, precisamos inserir no cotidiano das instituições de ensino, de forma intencional, desafios que engajem o aluno, o educador e o gestor. Isso corresponde a garantir espaço para o risco, para o erro e para a inovação. A escola para todos, aquela com que sonhamos, só se materializará quando assumirmos a criatividade como um potente catalisador para o cumprimento de sua nobre missão.